Denis Russo Burgierman
Cresce a desconfiança de que uma proteína defeituosa, infiltrada na carne de vaca,teria a capacidade de provocar demência nos cidadãos.
Domingão, a picanha estala na brasa e nem lhe passa pela cabeça, leitor, que você pode estar prestes a ser apresentado ao que o médico americano Lewis Thomas apelidou de “a coisa mais estranha da Biologia”. Essa coisa é uma proteína chamada príon, e o que ela tem de esquisito é que seria capaz de transmitir doença de um organismo para outro – algo que, de acordo com a ciência, só os micróbios poderiam fazer.
De acordo com essa hipótese, o príon teria proliferado no cérebro das vacas inglesas nos anos 80, e, a partir daí, escondido nos bifes, teria infectado os neurônios dos consumidores, causando uma forma de demência denominada encefalopatia espongiforme. As 21 vítimas observadas desde 1993 perdem a coordenação motora até morrer.
Mas atenção. No Brasil, não é preciso aposentar a churrasqueira porque aqui não se come carne inglesa e nunca houve o menor sinal de contaminação no país. O problema é a Europa, onde a produção inglesa só foi proibida em 1996. Mesmo assim, lembre-se: ainda não há prova conclusiva de que o príon é mesmo culpado. “Vamos ter de fazer mais experiências para saber”, explicou à SUPER o médico suíço Charles Weissmann, que é um dos craques mundiais no assunto.
Então, enquanto espera uma definição da ciência, fatie a picanha, vire a página e conheça essa personagem incrível da Biologia, o príon.
Proteína fora-da-lei dá cabo dos neurônios
No princípio, não foi fácil identificar os sintomas. Os pacientes levavam tombos, tinham dificuldade para mover os braços e, depois de perder a coordenação motora até para andar, também ficavam incapacitados para falar ou comer. Após alguns meses, a autópsia registrava um traço marcante: muitos neurônios haviam sido mortos, deixando o cérebro cheio de microburacos, com uma consistência mole e porosa.
Essa doença desconhecida, surgida na Inglaterra em 1993, foi o primeiro indício de que os ingleses poderiam estar sendo contaminados pela carne que consumiam. Desconfiança, aliás, bem natural, já que, desde 1986, o rebanho bovino do país vinha sofrendo de uma demência pouco conhecida, batizada de encefalopatia espongiforme bovina. Com um agravante: tanto nos cidadãos quanto nos animais, o cérebro ficava esburacado e amolecido. Ou seja, com o aspecto esponjoso que deu nome ao mal.
Nasce uma hipótese ousada
Na tentativa de confirmar essa hipótese, o desafio era descobrir como a doença estaria sendo transmitida. Dos micróbios conhecidos, fossem vírus ou bactérias, não se via sinal nos pacientes. Daí, imaginou-se uma hipótese ousada: a de que o contágio era feito por uma simples proteína, chamada príon. A idéia era radical. Até dá para imaginar que alguém fique intoxicado por uma substância infiltrada na carne, mas infecção é algo diferente, que só micróbios podem realizar. Ao invadir um organismo, eles são bem poucos, e só depois de procriar e aumentar o seu número conseguem provocar doenças. Mas as proteínas são inertes: em princípio, não fazem cópias de si mesmas nem podem se multiplicar. Então, como produziriam o mal?
A resposta, dizia desde 1982 o médico americano Stanley Prusiner, é que o príon representa uma exceção. De algum modo, ele consegue duplicar a sua estrutura e assim gerar moléstias, transmitindo-as para outros organimos. Durante anos, Prusiner estudou várias doenças mentais em que o príon parecia estar presente. O descrédito contra suas idéias só diminuiu com o aparecimento da encefalopatia na Inglaterra. Em 1997, enfim, ele recebeu o Prêmio Nobel de Medicina. Foi um reconhecimento público de que a sua teoria merecia todo o respeito da ciência.
Da ovelha para a vaca, da vaca para o homem
Se ficar confirmado que os cidadãos ingleses estão mesmo pegando a doença da vaca louca, muita coisa vai mudar na Medicina, explicou à SUPER o médico brasileiro Ricardo Brentani, diretor do Instituto Ludwig de Pesquisas sobre o Câncer, em São Paulo. “Com isso, fica provado que, além dos micróbios, também as proteínas são capazes de causar infecção.”
Por enquanto, a única proteína que parece ter essa capacidade é o príon ao ficar defeituoso. Mas é o que basta para configurar uma novidade tremenda. Se o poder do príon ficar comprovado, será mais uma precupação para as autoridades de saúde pública. De agora em diante, além de caçar e combater vírus, bactérias e protozoários, seria preciso, também, dar um jeito nessas estranhas moléculas rebeldes.
A praga estaria escondida na ração
Elas podem surgir basicamente de dois jeitos. Primeiro, por mutação genética: é que os neurônios dos mamíferos têm genes para fazer príons, que, normalmente, são pacíficos. Mas, se um gene desse tipo enguiça, a molécula nasce torta e fica perigosa. Outra possibilidade é um príon que nasceu deformado encostar num normal. Aí, este último desanda para o mau caminho.
Parece ter sido desse segundo jeito que as vacas inglesas enlouqueceram. Elas teriam sido contaminadas pela ração que comiam, na qual foram detectados príons defeituosos. Para entender esse quebra-cabeças, é preciso saber, primeiro, que a ração bovina é uma farinha feita de ossos e miúdos de ovelhas. E, depois, que as ovelhas sofrem de uma demência relativamente comum, chamada scrapie (este nome se deve ao fato de que os pobres bichos, aflitos, se esfregam onde podem até arrancar os pêlos. E em inglês arrancar o pelo se escreve scrape off).
Juntando a ração estragada à ovelha demente, ficou fácil deduzir que os príons deviam estar na raiz das duas doenças. Nas ovelhas, as moléculas da loucura devem ter surgido por mutação genética. Depois, embarcadas na ração, contaminaram as vacas.
Basta seguir esse raciocínio para supor que, de carona nos bifes e picanhas, os príons estariam chegando ao corpo humano. E ainda bem que o aviso chegou. Agora, a Medicina pode tentar impedir que esses estranhos personagens da Biologia – se é que são mesmo perigosos – virem temperos indesejáveis dos churrascos.
Dublê de molécula
Veja como nasce e age o príon, a única proteína capaz de se reproduzir.
1. Os príons normalmente não fazem mal. São pacíficos componentes da membrana dos neurônios. Mas ficam perigosos ao reagir com príons defeituosos, vindos de outro organismo.
2. Este príon invasor pode ter sido criado devido a uma mutação no gene que normalmente manda fazer a molécula nos neurônios. Aí o príon nasce com defeito. E se o príon anormal toca um normal, este fica com o mesmo defeito (veja acima).
3. Assim começa uma reação em cadeia que amplia o número de moléculas ruins. Como se o príon gerasse “filhotes”. Para piorar, na forma nova o príon fica imune às proteases, que são enzimas protetoras, e aos anticorpos.
4. A proliferação de invasores prossegue até sobrecarregar o neurônio contaminado com as proteínas defeituosas. A célula cerebral, aos poucos, perde a capacidade de funcionar e morre.
5. Uma multidão de agentes infecciosos escapa para o cérebro. Cada neurônio morto é um buraco que fica, pois essas células não se regeneram. São os furos que dão ao cérebro um aspecto esponjoso.
6. Os príons parecem migrar de uma espécie para outra, espalhando o mal entre diversos organismos. Já existem mais de dez demências associadas ao príon, tanto em animais quanto em gente. Todas elas mortais.
Contaminação incerta
Ainda não dá para saber se a nova demência pode fazer muitas ou poucas vítimas.
Ninguém tem uma idéia muito clara de quantos cidadãos, até hoje, teriam comido carne contendo príons, que é o mais provável agente dessa nova forma de demência, a encefalopatia espongiforme. O motivo é que o contágio pode ter começado em 1986, quando surgiram as primeiras vacas loucas, mas só foi percebido sete anos depois, em 1993. De lá para cá, apenas 21 cidadãos teriam manifestado a doença. Esse fato sugere duas possibilidades. A primeira, pessimista, é de que muita gente foi atingida, mas poucos ficaram doentes até agora porque o príon demora para agir. De acordo com essa interpretação, vão aparecer mais vítimas, daqui para a frente. “No extremo, teríamos uma epidemia”, prevê o suíço Charles Weissmann. Ele imagina milhares de mortes ao ano. A segunda possibilidade, bem menos sombria, pressupõe que o príon só afeta quem o engole em altas doses ou é mais suscetível ao mal. Por isso, poucos adoeceram, até agora, e o número de pacientes, nos próximos anos, não deve crescer.
A forma do bem e a do mal
Se a molécula muda de geometria, deixa de ser inofensiva.
1. Ao reagir com um príon ruim…
2. …o príon normal começa a entortar…
3. …e ganha uma construção perigosa
Mais um na gangue da infecção
O príon, recém-chegado, é milhares de vezes menor do que os outros bandidos.
Os chefes da turma
Embora tenham só uma célula, os protozoários são evoluídos. Guardam os genes dentro de um núcleo e têm órgãos internos, chamados organelas, para executar várias tarefas. OPlasmodium berghei, causador da malária, mede 4 micrômetros de diâmetro, ou 4 milésimos de milímetro.
As mais simples
Bactérias são feitas de células simples, que não têm núcleo para guardar os genes (eles ficam soltos dentro da células) e não têm órgãos. São dezenas de vezes menores que os protozoários. A Treponema pallidum, causadora da sífilis, mede 0,15 micrômetro (0,15 milésimo de milímetro).
Proteína com genes
Os vírus não são seres celulares. São apenas uma caixinha de proteínas com alguns genes dentro. Por isso, não podem se reproduzir sem, antes, invadir uma célula. Dentro de uma bactéria cabem centenas deles. O vírus da póliomielite, com 25 milionésimos de milímetro, é de um tamanho típico.
O novato
O príon não tem célula, nem caixa de proteínas, nem genes. É uma única proteína isolada, e das pequenas, reunindo apenas uns 20 000 átomos. Dezenas de milhares de vezes menor que os vírus, o príon é medido na escala dos bilionésimos de milímetro.
Esquizofrenia em foco
Descoberta no Brasil possível presença de príon nos pacientes.
O médico brasileiro Ricardo Brentani anunciou, no final de 1997, que alguns pacientes de esquizofrenia parecem carregar partículas de príons em suas células. “Pode ser o primeiro caso de uma doença ligada ao príon que não é fatal”, disse ele à SUPER. Esses doentes não teriam sido contaminados por príons vindos de fora do corpo. Eles teriam surgido por um defeito no gene que faz príons normais dentro do próprio organismo: depois de uma mutação, o gene teria passado a gerar príons perigosos.
Será um bicho?
A substância perniciosa parece mesmo um micróbio.
Os biólogos já começam a discutir se o príon deve ou não ser visto como uma nova categoria de micróbio. Aparentemente, não, pois ele não tem genes nem DNA, que é a molécula responsável pela reprodução de todos os organismos, das bactérias ao homem. Mesmo assim, o biólogo Marcos Menck, da Universidade de São Paulo, raciocina que os príons, de um jeito ou de outro, se igualam aos seres conhecidos. E explica: “Mesmo sem ter genes, eles conseguem se perpetuar e até evoluir”.