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O enigma da anestesia

Ela faz você apagar no ato, como se desligasse o seu cérebro. Mas até hoje a ciência não sabe ao certo como a anestesia geral funciona. Duas experiências sugerem uma resposta intrigante: talvez o paciente fique acordado o tempo todo – e não se lembre disso.

Por Eduardo Szklarz e Bruno Garattoni
Atualizado em 18 nov 2020, 10h10 - Publicado em 22 jan 2019, 16h58

Texto Eduardo Szklarz e Bruno Garattoni

Ian Russell não era um anestesista qualquer. Além de trabalhar em partos e cirurgias no hospital público de Hull, uma cidade portuária quatro horas ao norte de Londres, também escrevia artigos científicos sobre o tema. Já tinha publicado mais de 20, todos bem técnicos (como “Analgesia subaracnoide em cesarianas”). Até que, em 1993, resolveu tentar algo menos ortodoxo. Monitorar 32 mulheres, na mesa de cirurgia, para tentar responder à seguinte pergunta: quando uma pessoa toma anestesia geral, ela perde a consciência? É óbvio que sim, você dirá. Afinal, a anestesia – que tem ação sedativa, analgésica e relaxante muscular – faz qualquer pessoa apagar em segundos. Mas Russell, do alto de sua experiência, suspeitava que não fosse bem assim. E criou uma experiência insólita para tentar descobrir.

Antes de cada cirurgia, ele colocou um manguito (medidor) de pressão arterial, bem apertado, no antebraço direito da paciente. O instrumento servia como um torniquete, impedindo o fluxo de sangue – e evitando que o relaxante muscular chegasse à mão da mulher. O objetivo era preservar os movimentos da mão (você já vai entender o porquê disso). Em seguida, a mulher recebia a anestesia geral, apagava, e os médicos começavam a cirurgia. Russell punha fones de ouvido na paciente, e tocava uma mensagem que ele havia gravado numa fita cassete. “Se você consegue me ouvir, abra e feche os dedos da sua mão direita.”

O plano era o seguinte. Se a mulher mexesse a mão, Russell tiraria o fone e lhe diria ao  ouvido: “se você puder me ouvir, aperte meu dedo”. Se a paciente fizesse isso, ele lhe pediria que apertasse seu dedo de novo caso estivesse sentindo dor. E aí, se a paciente fizesse esse último gesto, ele lhe daria mais sedativo para que ela voltasse a dormir. O resultado foi impressionante. 70% das mulheres apertaram o dedo de Ian, ou seja, estavam conscientes mesmo sob anestesia geral. E 62% indicaram que estavam sentindo dor. Depois de acordar, nenhuma delas se lembrou de nada. Mas Russell ficou tão abalado que interrompeu o estudo no meio (a meta era testar 60 pacientes).

“A definição de anestesia geral inclui inconsciência e ausência de dor durante a operação – fatores não assegurados por esta técnica”, escreveu. Para ele, o procedimento nem sequer deveria ter esse nome; seria melhor chamá-lo de “amnésia geral”. Russell conta a história no livro Anesthesia: The Gift of Oblivion and the Mystery of Consciousness (“Anestesia: o dom do esquecimento e o mistério da consciência”, sem versão em português), da australiana Kate Cole-Adams. E esse caso não é o único. Nas últimas décadas, outros cientistas observaram fenômenos similares – e ainda mais intrigantes.

Num estudo de 1985, o psicólogo Henry Bennett, da Universidade da California, colocou fones de ouvido em pessoas sob anestesia geral, durante operações de vesícula e coluna. Elas foram divididas em dois grupos. Metade ouviu, pelos fones, sons típicos de sala de cirurgia. A outra, uma mensagem gravada por Bennett: “Quando eu vier conversar com você daqui a alguns dias, você vai puxar sua orelha”. Alguns dias depois, Bennett foi conversar com os pacientes. Eles não se lembravam de nada – mas quem tinha ouvido a mensagem deu seis puxadinhas na orelha, em média (as outras pessoas, no máximo, uma vez).

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Em 1993, cientistas da Universidade Ludwig-Maximilians, na Alemanha, colocaram fones de ouvido em 30 pacientes de cirurgia cardíaca. Quando as pessoas estavam inconscientes, sob anestesia geral, os fones tocavam um resumo do clássico Robinson Crusoé, bem como a seguinte instrução: “Quando você for perguntado sobre a palavra ‘sexta-feira’, vai mencionar Robinson Crusoé”. Três dias depois, nenhum deles se lembrava de nada. Mas, ao ouvirem a palavra “sexta-feira” – que é o nome de um personagem da história –, sete pacientes a relacionaram com Robinson Crusoé.

Há estudos mostrando que, mesmo sob doses normais de anestesia, muitos pacientes ouvem e entendem o que os médicos estão dizendo na mesa de cirurgia. E, ainda que não se lembrem de nada depois, alguns traços emocionais desses episódios permanecem. É a chamada “memória implícita” – um tipo de memória que não podemos acessar de forma consciente, mas que de alguma maneira está em nossa mente e pode provocar mudanças em nosso comportamento. Ao contrário da memória explícita (que você se lembra de ter), a memória implícita só pode ser detectada em testes psicológicos.

Será, então, que os pacientes desses estudos estavam parcialmente conscientes durante a cirurgia? Pode ser. Ou talvez algo mais assustador. “Eu diria que muitos dos pacientes no estudo do Robinson Crusoé estavam plenamente conscientes durante a anestesia geral, mas tiveram amnésia posterior”, diz Michael Wang, professor emérito de psicologia clínica da Universidade de Leicester, na Inglaterra, que há décadas trabalha com pacientes que acordaram durante operações. “É como acontece quando usam drogas do tipo ‘boa noite, Cinderela’, ou quando alguém fica muito bêbado. No dia seguinte, essas pessoas não têm memória do que ocorreu, mas isso não significa que estivessem inconscientes”, afirma Wang.

Trata-se de uma tese polêmica, longe de ser comprovada. Mas os pesquisadores concordam num ponto: ainda não sabemos exatamente como os anestésicos gerais funcionam. Afinal, o que essas drogas fazem conosco quando nos mandam para o “andar de baixo”? De que forma “desligam” nossa mente? Os cientistas não têm todas as respostas, mas algumas estão surgindo. Novos estudos revelam o que acontece no nosso cérebro quando estamos sob a ação desse coquetel poderoso. Você não dorme; é bem mais complexo que isso.

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(Francisco Martins/Superinteressante)

Do alívio ao nocaute

Ao longo da história, os médicos tentaram de tudo para evitar a dor dos pacientes. Apertaram nervos, pressionaram artérias, usaram ópio, álcool, hipnose, acupuntura, extratos de plantas… Cirurgias só eram feitas em último caso, pois tinham risco de morte elevado e causavam sofrimento brutal. Imagine amputar um braço sem anestesia; era preferível morrer. Isso só começou a mudar em 1772, quando o químico inglês Joseph Priestley descobriu o óxido nitroso. O gás relaxava o paciente e produzia uma incontrolável vontade de rir – daí o nome “gás hilariante”. No século 19, o físico inglês Michael Faraday viu que o éter tinha um efeito similar, e os dentistas passaram a usar esse gás para extrair dentes. Em 1841, o médico americano Crawford Long realizou a primeira cirurgia usando éter como anestésico geral. Long retirou dois tumores da nuca de um paciente – que apagou e não sentiu nada.

Mas quem levou a fama como o “pai” da anestesia geral foi o dentista americano William Morton. Em 1846, ele aplicou éter ao jovem Gilbert Abbott com um inalador de vidro, fazendo-o dormir calmamente enquanto o cirurgião John Collins Warren retirava um tumor de seu maxilar. A demonstração foi feita no Hospital Geral de Massachusetts, em Boston, e virou manchete. No mesmo ano, o médico americano Oliver Holmes se apropriou do termo grego anaesthesia para descrever aquele efeito mágico do éter de “tornar insensível” o paciente.

A anestesia geral é um procedimento altamente seguro, e que evoluiu muito de algumas décadas para cá. “Nos últimos 20 anos, a taxa de mortalidade de causa anestésica caiu dez vezes, sendo agora de 1 para cada 100.000 casos”, diz Sérgio Logar, presidente da Sociedade Brasileira de Anestesiologia. Isso é resultado da melhora na qualidade das drogas, do monitoramento e da formação dos profissionais (além da faculdade de medicina, o anestesiologista faz mais três anos de especialização), além de medidas que minimizam a chance de falhas no equipamento e erros humanos. “Nas últimas décadas, a evolução na segurança da anestesia foi comparável ao progresso na segurança da aviação”, diz Logar.

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Anestesia funciona, e bem. Mas só recentemente a ciência começou a descobrir como funciona. “A anestesia geral é muito diferente do sono. Ela tem mais semelhanças com o estado de coma”, diz a neurocientista Laura Lewis, do MIT. De fato, a anestesia geral busca vários objetivos simultâneos: que a pessoa fique inconsciente, que não se mexa, não sinta dor e nem tenha respostas fisiológicas à dor, como hipertensão e taquicardia. E, finalmente, que não se lembre de nada. Os anestésicos fazem isso. Mas como?

As primeiras pistas vieram nos anos 1980, quando os cientistas Nick Franks e William Lieb, da Imperial College de Londres, descobriram que as moléculas desses remédios se ligam aos receptores de GABA (ácido gama-aminobutírico) no cérebro. Essa substância é produzida naturalmente pelo organismo,  e sua função é frear a comunicação entre os neurônios (que, em excesso, pode causar convulsões e ataques epiléticos). O álcool também se liga aos receptores de GABA, e por isso causa torpor – um estado mais profundo do que o sono. Se você estiver dormindo, certamente acordará se alguém cortar sua pele com um bisturi. Já uma pessoa muito bêbada pode até ser operada sem anestesia, e mesmo assim não despertar. O álcool e os anestésicos funcionam como uma espécie de GABA artificial, mais potente, e por isso nos fazem apagar. Mas isso não explica tudo. Há algo a mais.

O enigma só começou a ser desvendado em janeiro de 2017, quando pesquisadores da Universidade de Queensland, na Austrália, publicaram um estudo sobre o propofol, um dos anestésicos mais usados atualmente (e que, numa dose letal, matou o cantor Michael Jackson). Os cientistas descobriram que esse remédio restringe a mobilidade de uma proteína chamada sintaxina 1A. “A proteína parece ficar presa num ‘engarrafamento’ dentro das sinapses [extremidades dos neurônios]”, diz o neurologista Bruno van Swinderen, líder do estudo. Com isso, haveria ainda menos descarga de neurotransmissores e, portanto, menos comunicação entre os neurônios.

Todos os neurônios dependem da sintaxina 1A para se comunicar. Por isso, os cientistas suspeitam que esse congestionamento aconteça no cérebro inteiro, afetando até 100 trilhões de sinapses (são cerca de mil delas por neurônio).

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Mas não para aí. Estudos recentes provaram que os anestésicos também dificultam a ação da cinesina, uma proteína essencial para o funcionamento dos neurônios, e inibem a produção de uma enzima chamada Complexo I – que é vital para a produção de energia nas mitocôndrias, dentro das células. Todas essas descobertas têm ampliado o foco dos cientistas.

“A anestesia geral não produz inconsciência só tornando os neurônios menos ativos. Ela pode quebrar as conexões entre várias regiões cerebrais”, diz Laura Lewis, do MIT. Isso pode ajudar a explicar aqueles casos impressionantes, sobre os quais falamos no começo desta reportagem, em que a pessoa mantém algum nível de consciência enquanto está anestesiada. Uma possibilidade é que o neocórtex, região cerebral ligada à consciência, continue funcionando em algum grau – e o hipocampo (área que coordena a formação de memórias) não consiga monitorar sua atividade. Mas isso ainda é mera especulação.

A anestesia geral só será plenamente desvendada quando a ciência resolver o maior mistério de todos: o que é a consciência. Somente entendendo isso poderemos saber como trilhões de sinapses podem se desligar na mesa de cirurgia e depois voltar a funcionar perfeitamente, sem sequelas. E por que, em muitos de nós, algo continua ligado – mesmo que não nos lembremos de nada depois. 

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