O que a demência frontotemporal faz – e como ela arrasou uma família
A doença surge do nada, aos 40 e poucos anos – e começa a destruir, em ritmo lento e cruel, as mentes de suas vítimas. Ganhou as manchetes, recentemente, após atingir o ator Bruce Willis e o jornalista Maurício Kubrusly. Também pode ser hereditária, e afetar famílias inteiras. Conheça a história de uma.
Texto Robert Kolker, da “The New York Times Magazine” (tradução e infográfico Bruno Garattoni)
Design e colagens Caroline Aranha
Fotos Studio Oz
É difícil imaginar algo mais terrível que o Alzheimer. Mas existe. A demência frontotemporal (DFT) é assim, por várias razões. Ela começa bem mais cedo, impondo décadas de sofrimento ao paciente e sua família.
É ainda menos compreendida do que o Alzheimer – e, ao contrário dele, ainda não possui nem esperança de tratamento. Não afeta só a memória, mas quase todas as funções avançadas do cérebro. E age de modo especialmente sinistro, porque transforma a personalidade da vítima antes de destruí-la.
A seguir, você conhecerá a história de uma família americana tomada pela DFT – e como a doença, ou o risco de tê-la, escreveu seu destino. (BG)
***
BBarb era a caçula. Ela foi um bebê temporão, o nono filho, nascido dez anos após o oitavo. A família, de ascendência irlandesa, vivia nos subúrbios de Pittsburgh. O pai era engenheiro, a mãe, do lar.
E Barb, a mascote da casa, via os irmãos e irmãs mais velhos terminarem os estudos e começarem suas respectivas carreiras. Era a única filha que ainda morava com os pais quando o casamento deles terminou.
O pai simplesmente foi embora, e a mãe se fechou: ficava sentada em silêncio vendo televisão, sempre fumando, geralmente com uma bebida na mão. Barb observava aquilo com um certo distanciamento.
Então em 1990, quando ela tinha 14 anos e a mãe descobriu que estava com câncer de mama, morrendo poucos meses depois, Barb ficou devastada e perdida. Mas também se sentiu protegida. Porque os irmãos estavam presentes: três deles tinham voltado a morar com ela e a mãe. Juntos, tiraram uma conclusão da tragédia. A mãe poderia ter vivido mais tempo se bebesse menos, tivesse ido ao médico, ou não fumasse.
Seis anos depois, Barb estava na faculdade quando outro parente precisou de ajuda: sua irmã Christy*, a segunda mais velha. Ela tinha 44 anos e era a estrela da família, em vários aspectos. Havia trabalhado como executiva de uma empresa farmacêutica, e criado dois filhos junto com o marido, em uma bela casa no subúrbio de Nova Jersey.
(*Os sobrenomes foram omitidos para preservar a privacidade da família.)
Christy tinha sido uma pessoa capaz, ambiciosa e consciente. Mas agora ela estava sozinha, vestindo roupas velhas e rasgadas, com o cabelo sujo e o casamento acabado.
A família voltou a se reunir. Susan, a terceira irmã, se ofereceu para tomar conta de Christy em tempo integral, e Jenny, a oitava, foi atrás de um médico. O especialista primeiro suspeitou que fosse depressão, depois esquizofrenia, mas os diagnósticos não pareciam corretos.
Christy não estava triste ou delirante; não estava nem incomodada. É como se ela regredisse a um estado infantil, perdendo a capacidade de autocontrole. Sua personalidade estava se dissolvendo – sem nada, aparentemente, para colocar no lugar.
A Christy que sobrou era caótica e imprevisível. Se recusava a tomar banho, e parou de fazer refeições. Invadiu a festa de um vizinho, e teve conversas esquisitas com pessoas que não conhecia. Entupiu a privada de casa com absorventes, alagando o banheiro.
Agia de forma totalmente impulsiva: gastava milhares de dólares por ano em assinaturas de revista, por exemplo. Esse comportamento estranho e perdulário fez Barb se lembrar da mãe – que, nos últimos anos de vida, dizia “sim” para toda e qualquer ligação de televendas. Barb pensou: que coisa terrível, mas também interessante, que houvesse essa semelhança. Uma característica de família.
Em 2006, Barb já tinha terminado a faculdade, estava com 30 e poucos anos, casada e com dois filhos, trabalhando como corretora de imóveis em Denver. Uma noite, ao colocar as crianças para dormir, o telefone tocou. Era Mary – a quinta irmã, 17 anos mais velha do que Barb – que havia aparecido na cidade sem avisar. “Você pode vir me buscar?”, perguntou.
Barb sempre adorou Mary. Ela foi uma criança-prodígio, que tocava piano e era muito comunicativa. Na idade adulta, Mary se tornou engenheira de trânsito e trabalhou em projetos mundo afora, de Nova Orleans a Abu Dhabi. Ela e o noivo se fixaram em Chicago, onde Barb os visitou algumas vezes.
Mas, nos últimos anos, sua vida tinha mudado. Mary se separou, casou de novo, teve um filho pequeno, foi morar em Omaha [cidade no meio-oeste dos EUA], e passou a ter pouco contato com a família. E agora ali estava ela, em Chicago, sem explicação.
Naquele fim de semana, Barb viu tudo, o mesmo filme passando na sua frente. Mary parecia indiferente, sem a alegria de antes. Não dava mais atenção aos detalhes do cotidiano. Dizia ter vindo a Chicago para uma reunião do trabalho; mas não se preocupara em reservar um hotel ou avisar a irmã com antecedência.
Ao descrever o projeto que iria coordenar, usava uma linguagem infantil e simples; não o vocabulário de uma pessoa com diploma de mestrado e anos de experiência. Barb ligou para o marido da irmã – e ele disse que as coisas estavam muito ruins. Mary parecia desconectada de tudo. Ela estava desaparecendo.
Foi ali que a ficha caiu para Barb. O que era aquilo, exatamente, ela não sabia – ninguém sabia. Mas duas irmãs tinham a mesma coisa que havia alterado, de forma tão drástica, a mãe delas.
Isso é genético, pensou ela.
Isso é herdado.
Todos nós podemos ter isso.
O
Os outros ignoraram as preocupações de Barb. E não só porque ela fosse a caçula, com opiniões de menor peso. É que, alguns anos antes, Christy havia feito testes genéticos na Universidade da Califórnia, em São Francisco, e eles não encontraram nada.
Com o conhecimento científico disponível na época, os médicos não conseguiram achar uma explicação para as mudanças de comportamento dela. Mas Barb se lembrou de algo que um deles havia dito: o estudo das doenças neurológicas ainda estava engatinhando. E só porque eles não haviam encontrado uma explicação genética, não significava que não existisse.
Barb resolveu pesquisar por conta própria. Contactou o National Institutes of Health, do governo americano, e descobriu uma condição incrivelmente parecida com os sintomas de Christy e Mary: a demência frontotemporal, ou DFT, que se manifesta na flor da idade – em alguns casos, já a partir dos 40 anos – e ataca as áreas do cérebro responsáveis por planejar, organizar, se comunicar, entender dinâmicas sociais e exercer julgamentos [veja no quadro abaixo].
Ao contrário de doenças como o Alzheimer, a DFT é relativamente rara: pesquisadores acreditam que, nos EUA, talvez 60 mil pessoas a tenham [contra 6,7 milhões que sofrem de Alzheimer].
Fazer uma estimativa precisa é difícil, porque o diagnóstico da doença também é. Na metade dos anos 2000, os cientistas ainda estavam começando a identificar e isolar os vários tipos de DFT. Isso só aumentou a determinação de Barb.
Em dezembro de 2006, ela pediu a todos na família, incluindo o pai, que fornecessem amostras de sangue para uma nova rodada de análises. Christy, Jenny e Susan toparam. Os cientistas não encontraram nenhuma das mutações genéticas relacionadas à DFT.
Mas o National Institutes of Health encorajou Barb a continuar fazendo testes. A família estava no escuro, enquanto via Mary seguir a mesma trajetória de Christy.
Aí, no ano seguinte, uma informação apareceu do nada. Foi quando Teddy – o sétimo irmão, 11 anos mais velho que Barb – recebeu um email. A remetente era uma mulher que estava tentando localizar parentes distantes, que tivessem o mesmo problema médico da família dela.
A mensagem incluía uma foto do avô materno deles, um ancestral genético em comum. “Nós não fazíamos ideia de que esse ramo da família existisse”, diz Barb. “Foi incrível.” O problema médico, a tal mulher explicou depois, era a demência frontotemporal.
Surpresa e com medo, Barb contactou a Mayo Clinic [um complexo hospitalar e de pesquisa em Rochester, Minnesota], que testou os dois grupos familiares – duas vertentes do mesmo “pool” genético. Desta vez, todos os irmãos de Barb participaram, e alguns filhos deles também.
Agora os cientistas tinham uma boa quantidade de amostras, atravessando várias gerações e ramos familiares. Os pesquisadores descobriram que, nos dois grupos, aparecia uma mutação na proteína tau, uma das três associadas à DFT hereditária [veja no infográfico]. “Quando eles vieram com a notícia, deu pra ver que estavam empolgados”, diz Barb. “Acho que porque é algo muito raro.”
Aquilo também era, óbvio, uma catástrofe. Não existe lado bom em um diagnóstico de DFT – não há cura, nem tratamento. Com muito poucas exceções, todos os que herdam a mutação irão, como Christy e Mary, perder a capacidade de trabalhar, cuidar dos filhos, fazer tarefas domésticas ou de higiene pessoal, e tudo isso bem antes de se tornarem idosos.
Com o passar dos anos, se tornarão incapazes de falar, comer, se vestir ou ir ao banheiro sozinhos (é o caso de Christy, que atualmente tem 71 anos e passa os dias na frente da TV. Ela tem uma Apple AirTag amarrada nos tênis, para que a família possa localizá-la se sair de casa).
Ao contrário dos pacientes de Alzheimer, que quase sempre são diagnosticados já idosos, as pessoas com DFT podem viver muitos anos após se tornarem sintomáticas, exigindo décadas de cuidados médicos. E seus filhos, bem como os descendentes deles, podem herdar a mutação.
Todos os irmãos da família, exceto Susan, tiveram filhos. Kathy, a mais velha, teve até um neto. Todos receberam, em essência, um cara-ou-coroa: 50% de chance de carregar a mutação. Aqueles que a tiverem irão desenvolver DFT, e passarão os mesmos 50% de risco para seus respectivos filhos.
“Naquela época, os meus tinham quatro e dois anos, e me lembro de pensar: eu não deveria tê-los tido”, diz Barb. “Isso é uma coisa muito pesada para uma mãe. É uma sensação devastadora, de que eu posso ter passado algo prejudicial a eles.”
Até hoje, muitos membros da família lutam para entender a situação. Há a parte objetiva, os fatos – é algo herdado, qualquer um de nós pode ter –, e existem as questões mais profundas que isso levanta. Como você pode se sentir seguro, sabendo que a sua família é frágil, efêmera, ameaçada de extinção?
Como você leva a vida, sabendo que tudo o que forma a sua consciência pode desaparecer? Se você fosse se desintegrar – em um ano, dois, 10 – você gostaria de saber?
A
Assim que os cientistas identificaram a mutação, eles encorajaram todos os membros da família a fazer um segundo teste, individual, para descobrir quem de fato a carregava. Agora, cada um dos irmãos poderia descobrir de qual lado a sua moeda iria cair.
Mas nem todos quiseram fazer isso. Teddy nunca mais voltou à Mayo Clinic. E até Barb, que tinha convencido os outros a fazerem o primeiro teste, não tinha coragem de ir adiante. Seu futuro parecia uma bifurcação com dois caminhos ruins. No primeiro, você se transforma em uma sombra de si mesmo, e fica dependente dos outros para o resto da vida. No segundo, você também é obrigado a dizer adeus – só que, agora, para os irmãos que desenvolverem a doença.
Então Barb decidiu não decidir. Ela estava com 32 anos quando a família descobriu a mutação, em 2008; mesmo se tivesse DFT, os sintomas provavelmente levariam uma década para aparecer. Barb resolveu esperar até os 40 e poucos anos antes de tomar qualquer providência.
“Pensei: ok, eu tenho mais uns dez anos bons”, conta. Ela cresceu vendo a mãe definhar, e não queria repetir isso com os próprios filhos. “Queria dar uma infância o mais normal possível para eles. Se eu soubesse que estava fadada a ter essa doença horrível, quão normal essa infância seria?”
Mas aí, conforme Barb via Christy e Mary piorarem, e mais duas irmãs descobriram que tinham a mutação (Jenny em 2010, e Peggy em 2015), a sensação de que havia alguma coisa vindo se tornou impossível de ignorar.
Em 2016, prestes a fazer 40 anos, Barb estava certa de que carregava a mutação. Começou a se preparar para o pior, vivendo como se seus dias estivessem contados.
Oito anos após aquele primeiro diagnóstico da Mayo Clinic, ela foi lá e fez o teste individual, o exame de sangue que escreveria a história do resto da sua vida. Os médicos exigem que os pacientes recebam pessoalmente os resultados, sejam eles positivos ou negativos. Mas Barb nunca voltou para pegar o exame.
A
A filha de Christy também não queria descobrir. A mãe dela havia sucumbido à doença, e se transformado, fazia muito tempo. Ela tinha 12 anos quando o problema se tornou impossível de ignorar: Christy parou de tomar banho, fazer compras ou cozinhar.
A menina, que prefere ser identificada apenas pela inicial do seu nome, “C”, ficou assustada. O pai se divorciou da mãe e foi embora, morar em outra cidade, deixando a filha e um irmão menor, de 8 anos, sozinhos com Christy. “Uma vez nós estavamos voltando pra casa de carro, e o pneu furou. Ela simplesmente continuou dirigindo”, conta C. “Eu falei: mãe, você tem que parar o carro.”
“Lembro que um cano estourou lá em casa, e ela não mandou consertar. Nós ficamos vários dias sem água”, conta. Após um ano tumultuado, ela e o irmão acabaram indo morar com o pai, e Susan foi ficar com Christy, para tomar conta dela.
Ao longo dos anos seguintes, C assistiu à distância os problemas da mãe se desenrolarem. Ela ficou devendo US$ 10 mil em impostos. Ganhou muito peso, chegando a 114 quilos, até que Susan colocou um cadeado na geladeira.
Certa vez, Christy fugiu de um shopping, durante um passeio, e andou 7 quilômetros na chuva até ser encontrada pela polícia numa lanchonete. Susan foi avisada e chegou lá aos prantos – mas Christy, nem aí, estava até alegre.
A família ficou sabendo sobre a demência frontotemporal quando C tinha 20 e poucos anos, e estava começando sua vida adulta. “Pensei: se eu fizer o teste e souber que eu tenho, não vou ter motivação nenhuma. Não vou ter nenhum desejo de seguir em frente.”
Então C resolveu que iria adiar o exame até completar 30 anos, e tentou não pensar no problema. Quando os 30 chegaram, ela tinha um noivo, com o qual já havia conversado sobre a DFT. “Eu queria que ele tivesse a chance de me largar, caso quisesse.”
Os dois estavam juntos quando C recebeu a notícia. O noivo segurou a mão dela, em silêncio. “Eu lembro do geneticista falando: ‘vocês são um casal tão legal, lamento muito ter de contar’.”
C
C encara a vida com pragmatismo. “Tem gente em situação pior que a minha”, diz com frequência. Ela e o noivo se casaram, como planejado, e fizeram os preparativos possíveis. “Conversamos sobre planos de saúde e testes genéticos para crianças”, diz C. “Mas nós dois sabemos que não dá para controlar a DFT.”
Quando eles decidiram ter filhos, recorreram a uma técnica para não passar a doença: a reprodução assistida. Os médicos iriam analisar embriões do casal, e só implantariam aqueles que não carregassem a mutação.
Mais de um ano se passou, com uma série de tentativas árduas: tratamentos para estimular a fertilidade, coletas de embriões e quatro tentativas de implantação, nenhuma das quais deu certo. C estava se preparando para uma quinta, quando descobriu que havia engravidado naturalmente.
Ela e o marido ficaram obviamente preocupados, mas já estavam acostumados a lidar com o medo. Em vez de focar naquilo que o filho poderia herdar, C pensou no relógio. Estava com 36 anos, e quatro tentativas nas costas. Era agora ou nunca.
Hoje ela tem 40, a mesma idade em que a mãe começou a apresentar os primeiros sintomas. Visita Christy e Susan nas festas de fim de ano, e passa o resto do tempo cuidando da própria vida. Tem uma profissão desafiadora e estimulante, em que cada dia é diferente.
Uma vez por ano, com outros membros da família, faz exames para checar a progressão da doença: ressonância magnética do cérebro, testes neurológicos e cognitivos, uma punção lombar para colher fluido cefalorraquidiano.
Recentemente, seu médico perguntou como ela estava indo no trabalho. “Olha, eu não quero me gabar, mas as minhas avaliações profissionais sempre são ótimas.” A resposta do médico foi cortante: “Elas serão o primeiro sinal de que a doença está começando.” Mais um dado, útil e aterrorizante, para monitorar.
O casal não testou o filho para saber se ele tem a mutação. Querem que seja decisão dele. “Um dia ele vai ficar sabendo da possibilidade”, diz C. “Não quero estragar a vida dele com essa preocupação.” E se o filho for diagnosticado um dia? C sonha que avanços da medicina, como a técnica de edição genética CRISPR, poderão salvá-lo – com um corte simples e elegante em seu DNA, que eliminará a mutação. “Ele tem chances melhores do que eu. E, definitivamente, melhores do que a minha mãe.”
Também é provável, claro, que o filho vá assistir às mudanças de C, assim como ela presenciou as da mãe. C e o marido fizeram um planejamento para quando ela começar a precisar de cuidadores.
A mutação genética determina partes da vida de C, mas ela diz que ainda tem opções – que incluem levar uma rotina não tão diferente do normal. “Não tive uma mãe de verdade. Mas eu amo meu marido. Amo meu filho, meu cachorro, minha profissão. Meus amigos, minha família. Vou focar em coisas ruins?”
B
Barb tinha me avisado sobre sua irmã Jenny, que não aceita a realidade. “Ela pensa que está tudo bem”, disse. Jenny é a oitava irmã, e a mais próxima em idade de Barb, dez anos mais velha do que ela.
Por muitos anos, foi executiva de uma grande multinacional; Jenny e o marido, Bill, que trabalha no mercado financeiro, moravam numa cidade ao lado de Nova York, onde criaram seus dois filhos. Quando a vida de Christy começou a se despedaçar, em 1995, Jenny foi a primeira a acudi-la, limpando a casa da irmã e procurando um neurologista. Mas em 2010, aos 43 anos, Jenny ficou sabendo que também carregava a mutação.
Ela seguiu a vida como se nada tivesse mudado. Não contou aos filhos, que ainda eram pequenos, sobre o diagnóstico. Disse a parentes que ia lutar contra a doença, e que mudanças no seu estilo de vida iriam estancar os sintomas. Os cientistas estavam perto da cura, declarou, embora não houvesse nada disso no horizonte.
Mas Jenny estava tão confiante em continuar sendo ela mesma que até revelou o diagnóstico aos colegas de trabalho – e foi demitida pouco tempo depois. Nunca mais teve um emprego fixo.
Jenny e Bill moram numa casa espaçosa, ao final de uma rua bem arborizada. Durante o almoço, sentada ao lado do marido, Jenny é alegre e bem falante. Conversa animadamente sobre a DFT, seus parentes e a mutação, mas parece não se preocupar com o impacto da doença na própria vida.
Ela mudou os hábitos alimentares, conta, para evitar a progressão da doença. E tem orgulho dos anos que passou fazendo trabalho voluntário com uma organização de apoio a famílias com DFT, aconselhando parentes das vítimas. “Eu costumava ser a diretora regional, mas aí eles mudaram para outra pessoa.”
Logo percebo que Jenny está repetindo muitas frases. Ao falar sobre algum parente com DFT, sempre diz que a pessoa “perdeu a cabeça”. Como sua irmã Peggy, uma ex-professora que tocava violino e resolvia equações matemáticas complexas.
Hoje, Peggy não consegue cozinhar nem dirigir, e vive sob os cuidados do namorado. Jenny sempre competiu com Peggy, e quando discorre sobre ela e alguns dos outros, é com ar de triunfo. “Fui eu quem descobriu que a Mary tinha [DFT], eu que descobri que a Peggy tinha”, diz. “Eu via as mudanças de comportamento delas.”
Pergunto ao casal se eles acham que Jenny foi demitida por causa da DFT. “Eu acho que sim”, diz o magro e delicado Bill. “Eu não acho”, discorda Jenny. “Não. Não. Eu era muito boa no meu trabalho.”
“Você era, sim”, responde o marido. Ele parece estar medindo as palavras. “Mas é que, sabe, eles viram a possibilidade de que você ficasse mal, no futuro.”
“Mas eu ainda não tenho a doença”, diz Jenny, sem emoção na voz. Bill faz uma expressão amarga. Jenny se vira para mim e sorri, como quem diz caso encerrado. “É isso aí.”
Durante nossa conversa, as frases de Jenny vão ficando cada vez mais curtas. É como se nada do que Bill e eu dizemos possa instigar novos pensamentos ou abordagens na cabeça dela. Até o sorrisão de Jenny começa a parecer limitante – não exatamente uma armadura, mas um reflexo, um substituto para emoções mais complexas. Parece não haver nada por trás dele, a não ser um estoque de memórias que vai se esgotando.
Mas Jenny insiste que está bem. “Eu tenho um sono superprofundo”, diz. “O que isso faz é reduzir a inflamação do cérebro. Isso reduz completamente a inflamação do cérebro. Então, mantém o seu cérebro realmente saudável.”
Ela diz que tem provas. Todo ano, é avaliada pelos mesmos especialistas que Christy e C consultam. Jenny me mostra um print do seu último exame cognitivo. Bill também parece interessado no papel. Leio e encontro várias categorias com a observação “declínio”.
Quando as aponto, Jenny sorri e desconsidera. “Não estão realmente em declínio”, diz. “É só, tipo, meu cérebro faz um jogo comigo, tipo, ele bloqueia memórias às vezes.”
Penso em como Christy, por tanto tempo, parecia alheia à própria condição, e como isso era uma bênção, de certa forma. Não perceber que a demência está entrando na sua vida não é a pior coisa do mundo. Mas para as pessoas que amam você, a DFT é não só apavorante, mas também exaustiva – como assistir a uma tragédia e ver quão impotente você é.
Bill está nesse precipício agora. Ele luta para encontrar um jeito gentil de ajudar a esposa, sem revelar a ela que se tornou seu cuidador. Mas sabe que as coisas vão caminhar numa única direção.
A filha do casal, Annika, cita o filme O Estranho Caso de Benjamin Button ao se referir à DFT: quem tem a doença envelhece ao contrário. Jenny era uma pessoa workaholic, empenhada e competitiva. Após o diagnóstico, ela se tornou impulsiva, como os irmãos afetados pela doença. Passa seus dias vendo TV e indo comprar comida, visitando vários supermercados. Qualquer coisa além disso é complexa demais.
Annika tem 20 e poucos anos e mora em outra cidade. Está começando a vida. Ela se preocupa não só com a mãe, mas também com o pai, que tem seus próprios problemas de saúde. Quem vai cuidar dos dois se ele adoecer? Essa pergunta ajuda Annika a postergar, por enquanto, algo que um dia ela terá de encarar: descobrir se carrega, também, a mutação.
Alguns meses após minha visita, a família tomou decisões importantes. Bill e as crianças resolveram que Jenny não podia mais ficar sozinha em casa. Ele quer levá-la para um exame de motorista, na esperança de que alguém consiga convencê-la a parar de dirigir.
Jenny mudou nos últimos meses, não fica mais irritada ou nervosa. “Ela está se comunicando menos”, diz Bill. “Com frequência, ela simplesmente não responde.” Mesmo assim, Jenny ainda não aceita que precisa de um cuidador, e é difícil dizer como aceitará um.
B
Barb estava sozinha, na porta de casa, quando a carta chegou, em 26 de setembro de 2017. Na maioria dos casos, resultados tão importantes como este só são revelados pessoalmente. O autor da carta admitiu isso, disse que estava indo contra a política do laboratório. Mas achou que, considerando o resultado, Barb realmente tinha que ver o exame.
Ela havia passado oito anos sem saber, e mais um ano se esquivando dos telefonemas do laboratório. Mas aquele envelope, que apareceu do nada, era grosso o suficiente para que ela não o jogasse no lixo. Barb abriu a carta e começou a ler. Estava convencida do que ela iria dizer, e do que aquilo significaria para ela e sua família. “Nunca me ocorreu”, conta, “que eu poderia receber uma notícia boa.”
A primeira sensação foi de incredulidade. Depois, uma ligação para o marido, que fez aquilo parecer mais real. Os dois choraram ao telefone. Naquela noite, contaram tudo aos filhos, então com 11 e 13 anos. Eles sabiam que algumas tias tinham problemas, mas não sabiam exatamente quais, e também nunca haviam perguntado. “Nós fizemos eles brindarem conosco”, conta Barb. “Eles falaram, ‘que legal, vamos experimentar champagne’.”
Hoje, Barb pensa sobre o tempo que passou fugindo do diagnóstico. Ela entende por que fez isso, mas também percebe como a mera possibilidade de ter DFT mudou sua vida. Estreitou seu mundo, tolheu sua ambição, borrou sua visão do que seria ou não possível.
Ela se lembra de momentos no trabalho em que não levantou a mão, não tentou ir além, não quis assumir responsabilidades por causa da doença, com os sintomas podendo aparecer a qualquer momento. “Eu acho que isso me impediu de assumir cargos de chefia, porque eu tinha receio de não conseguir terminar as coisas. Tudo aconteceu num nível bem subconsciente. Quando descobri que não tinha [a doença], eu me senti tão confiante”, diz.
Dos nove irmãos e irmãs, cinco já apresentam sintomas de DFT: Christy, Mary, Jenny, Peggy e Oliver – o quarto filho. Ele manteve um comportamento estranho por muitos anos, até que sumiu durante a pandemia: acabou morando na rua por mais de um ano.
Essas são as pessoas que, décadas atrás, socorreram Barb quando ela mais precisava, quando a mãe deles morreu. O que vai acontecer com elas? De quem é a responsabilidade de cuidar delas? “Pensei muito sobre qual é o meu papel. Se tivesse um irmão para tomar conta, eu conseguiria. Mas agora são cinco. Como vou cuidar de cinco pacientes de DFT? E se eu quiser ajudar um, como escolho?”
Alguns deles provavelmente vão tentar resistir à ajuda. Como Oliver, que trabalhou muitos anos como caminhoneiro, até que começou a ter problemas. Hoje ele mora num asilo; Barb cuidou da internação.
A vida de Mary também está abalada. Ao contrário de Christy, que foi ficando mais dócil ao longo dos anos, Mary se tornou confrontadora, paranoica até. Ela se divorciou pela segunda vez, e hoje mora com o terceiro marido na região de Pittsburgh. Não atende mais aos telefonemas da família, nem vai às consultas médicas com os irmãos. (Três dos nove irmãos – Teddy, Mary e Oliver – não quiseram dar entrevista para esta reportagem.)
A família inteira se reorganizou em torno da doença: alguns se distanciaram, outros se apagaram cognitivamente. E também há aqueles que estão ilesos – e tentam manter tudo sob controle.
N
No último dia de Ação de Graças, quinze membros da família se reuniram nas montanhas Adirondack, ao norte de Nova York. Alugaram uma casa de campo, com pé direito alto e uma grande lareira. Barb e sua família estavam lá, assim como Kathy (a mais velha das irmãs, que não carrega a mutação) e seu filho Charlie (também livre da mutação), junto com a esposa e o filho dele. Jenny e a família dela também foram. Susan dirigiu oito horas e meia até lá, levando Christy.
Na casa, enquanto a maioria da família se divertia com jogos, Christy ficava sentada perto da lareira, encarando as pessoas. “Eu acho que ela se lembra de nós”, diz Kathy, que mora a mais ou menos uma hora de Christy e às vezes ajuda a cuidar dela. “Acho que ela nos reconhece.”
Quando a conversa passa para a saúde de Christy, a família vai ficando em silêncio. Tem alguma coisa que eles não querem falar. Até que, finalmente, Susan faz a revelação. “A Christy está com câncer de mama”, diz. Exatamente como a mãe deles. “Apareceu há um ano e meio, um caroço no seio. E eu decidi, sabe, que nós não vamos tratar.”
Agora, depois de todo esse tempo, a família sabe como a história dela vai terminar.