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Príons: eles não têm código genético. E destroem seus neurônios.

Em 1993, o cientista suíço Charles Weissmann conversou com a SUPER sobre príons: proteínas infecciosas que atacam o sistema nervoso. Leia o papo histórico.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 24 out 2019, 19h31 - Publicado em 31 jan 1993, 22h00

A cada três, quatro anos no máximo, o cientista suíço Charles Weissmann aproveita as férias para visitar o Rio de Janeiro, cidade em que cursou o ginásio, na adolescência. Seus pais trocaram a Europa pelo Brasil, enquanto duraram os horrores da Segunda Guerra. Passado esse período, no entanto, a família retomou ao velho continente e, ali, em seu país de origem, Weissmann estudou Medicina e, depois, Química.

Hoje, aos 61 anos, ele dirige o Instituto de Biologia Molecular da Universidade de Zurique, na Suíça, que se destaca na investigação dos chamados príons – agentes infecciosos, capazes, de destruir as células do cérebro. Eles são considerados um verdadeiro mistério, por não terem a ver com todos aqueles tipos de microorganismos causadores de doenças já conhecidos, como os vírus e as bactérias.

Até surgirem as primeiras evidências de que existem os tais príons, os cientistas acreditavam que os vírus, responsáveis por seis em cada dez males em plantas e animais, eram os agentes infecciosos com estrutura mais simples. Um vírus, afinal, se resume a uma única molécula de material genético, RNA ou DNA, geralmente revestida por uma membrana. E nada, achavam os pesquisadores, poderia ser mais rudimentar do que isso.

Enganaram-se – como provaram os estudos de Weissmann e seus colegas. Segundo eles, os príons são partículas de proteína, ou seja, não contêm nem sequer material genético. Em suma, não têm vida. Ainda assim, são capazes de invadir os neurônios cerebrais, atrapalhar os comandos de seu núcleo e, a partir daí, detonar os maiores estragos. “A descoberta de que uma proteína, sem DNA ou RNA, consegue provocar uma infecção nos obriga a rever uma série de conceitos em Biologia”, disse Weissmann, em sua última viagem ao Brasil, no final do ano passado, quando· deu uma entrevista exclusiva à SUPER.

Ele veio para participar do Simpósio sobre Fatores de Crescimento promovido pela Roche, indústria suíça de produtos farmacêuticos. A jornada acabou sendo um tanto corrida: entre as palestras que apresentou no Rio de Janeiro e em São Paulo, o cientista mal teve tempo de caminhar pelas praias cariocas. “Esse costuma ser meu programa predileto, quando estou por aqui”, revelou, em português perfeito. “Mas falar sobre os príons também me dá um enorme prazer. É um privilégio, para qualquer pesquisador, trabalhar com algo absolutamente novo e desconhecido.”

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Como surgiu a suspeita de que haveria uma nova forma de agente infeccioso, diferente de tudo o que se conhecia?

Há cerca de quinze anos, os cientistas começaram a prestar atenção a um grupo de doenças degenerativas do sistema nervoso, chamadas encefalopatias espongiformes, que ocorrem tanto em bichos como em seres humanos. Nelas, as células do cérebro se deformam e, depois, começam a desaparecer. A questão é que seu agente infeccioso nunca ficou muito claro. Centenas de testes mostravam que não era uma bactéria, um fungo, um vírus, enfim, não era nada conhecido.

Esse agente, culpado e misterioso, terminou batizado com o nome de príon, que em si não significa algo em especial. Simplesmente, a palavra príon designa uma forma ou espécie de agente transmissível que a ciência ainda não conseguiu identificar. Contudo, é bem verdade, de uns dez anos para cá, começamos a ter cada vez mais certeza de que o príon é uma partícula de proteína. Eu próprio sou um defensor dessa teoria.

Seria possível uma partícula de proteína transmitir doenças?

Sim. E isso é o mais espantoso. Afinal, um vírus, por exemplo, sempre carrega material genético – DNA ou RNA. Mas, agora, temos diante de nós um agente transmissível sem bagagem hereditária. E a primeira vez que se observa esse tipo de coisa.

Quando se desconfiou de que o príon seria uma partícula de proteína?

Foi há dez anos, quando cientistas dos Estados Unidos conseguiram purificar uma proteína extraída das células de animais doentes. Nessa época, minha equipe, na Suíça, passou a realizar um trabalho de cooperação com os pesquisadores americanos. Em nosso laboratório, localizamos um gene que poderia ser o fabricante da proteína. Ela existe em diversas espécies de aves e mamíferos, incluindo o homem, e surpreendentemente também nos organismos sadios.

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O fato de a proteína ocorrer em organismos saudáveis não derruba a tese de que ela seria a culpada por essas doenças nervosas?

A teoria é de que sua molécula pode mudar de conformação e, só quando isso acontece, ela causa doenças. Até hoje não sabemos exatamente em que consiste essa alteração, do ponto de vista químico. Mas observamos que, no cérebro de pessoas contaminadas, a molécula fica resistente à protease, uma enzima capaz de quebrá-la.

Qual a conseqüência disso?

Quando o neurônio de uma pessoa sadia produz essa proteína, ela vai direto para a superfície de sua membrana. Mas, na forma modificada, resistente à enzima, a proteína permanece no interior da célula nervosa. Isso provavelmente interfere em seu funcionamento e, com o passar do tempo, o neurônio afetado tende a morrer.

Como um defeito em uma molécula produzida pelo próprio organismo pode se transmitir de pessoa para pessoa, sem ser pela via hereditária?

De fato, existe um tipo de encefalopatia espongiforme que é hereditário: há famílias com uma alta incidência do problema e, nos doentes, aparecem mutações justamente nos genes associados aos príons. Nos seres humanos, porém, existem ainda dois outros tipos de doenças degenerativas provocadas por príons que não são herdadas de pai para filho. Ou seja, se uma proteína modificada consegue entrar na circulação sangüínea de um organismo sadio, ela pode modificar as moléculas normais, presentes no cérebro.

Muitas vezes, os príons são transmitidos por manipulações clínicas: o médico vai tratar o paciente e, passado algum tempo, ele próprio fica doente. Isso faz sentido, porque o príon – ao menos, essa partícula de proteína que temos estudado – é extremamente resistente à esterilização. Ele não desaparece mesmo quando os instrumentos são aquecidos a 120 ºC, que é a temperatura comumente usada no processo de esterilizar.

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Há também episódios de transmissão por transplantes. Sem contar casos esporádicos de transmissão por hormônio do crescimento, substância que costuma ser extraída de cadáveres. Em geral, são necessárias entre trinta e cinqüenta doações para se obter uma dose do hormônio; se uma delas tem a proteína modificada, já é suficiente para contaminar toda aquela amostra. Entre 1982 e 85, foram registrados cerca de vinte casos, no mundo inteiro, em que a transmissão foi dessa maneira.

Existem sintomas comuns aos três tipos?

Todos esses tipos de doenças degenerativas provocadas por príons levam à demência. Mas os primeiros sintomas costumam ser bem diferentes. Há casos, identificados há cerca de três anos, em que tudo começa com terríveis crises de insônia. No entanto, é bom esclarecer: as doenças provocadas por príons são raríssimas. Elas despertam um grande interesse na comunidade científica pelo fato de o agente patológico ser totalmente inusitado e não pela sua incidência.

Em que fase estão os estudos sobre príons?

Hoje em dia, queremos mostrar que o animal sem o gene dessa proteína suspeita é resistente à doença. Não adianta infectá-lo com sangue contaminado, por exemplo, que seu organismo não leva adiante a produção de príons. Isso sustenta a nossa hipótese, isto é, a partícula de proteína alterada induz o gene a produzir outras moléculas defeituosas como ela. Para realizar essa experiência, a gente tem extraído príons de ovelhas, que são animais capazes de fornecer grandes quantidades dessas moléculas. No entanto, as ovelhas demoram cerca de dois anos para desenvolver a doença degenerativa espongiforme. Por isso, aplicamos seus príons em camundongos, que levam apenas 120 dias para mostrar sinais de demência.

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