Transplantes de rosto completam 20 anos na medicina. Entenda como funcionam.
Em 2005, uma francesa foi a primeira pessoa a receber uma nova face. Desde então, cerca de 50 indivíduos passaram pela cirurgia, ainda considerada experimental. Saiba o que torna esse um dos procedimentos mais complexos – e controversos – de todos.

Travis é um dos chimpanzés mais famosos da História, e não por um bom motivo. Após seus pais terem sido capturados na natureza, o primata nasceu em cativeiro e foi comprado como pet por um casal de americanos. Em 2009, depois de 13 anos convivendo e adotando hábitos humanos, Travis foi autor do pior ataque de chimpanzé já registrado.
Charla Nash, uma amiga do casal, segurava um dos brinquedos favoritos de Travis quando o animal avançou em direção ao seu rosto. Ela teve todos os ossos da face quebrados, ficou cega, perdeu as pálpebras, nariz, lábios e nove dedos. O chimpanzé foi morto pela polícia.
O caso virou exemplo do perigo e da crueldade de manter animais selvagens como pets. E Charla Nash, que sobreviveu após horas de cirurgia, se tornaria uma das primeiras pessoas dos Estados Unidos a passar por um procedimento experimental: o transplante de face.
O primeiro do mundo ocorreu em 2005, na França. Nas duas décadas desde então, cerca de 50 pessoas receberam um novo rosto, em operações realizadas em onze países. A intervenção se destina a casos gravíssimos, de rostos desfigurados após algum acidente ou doença. Não estamos falando de cicatrizes e queimaduras leves – e sim de situações em que a vítima fica irreconhecível.
Não à toa, o transplante de face é uma cirurgia complexa, que facilmente passa das 24 horas de duração. Dezenas (às vezes, centenas) de profissionais trabalham em cada caso. Os pacientes serão objetos de estudo para sempre, resultados de uma operação que até há pouco tempo só existia na ficção científica – mas que, em um futuro não tão distante, pode se tornar corriqueira.

Máscaras de carne e osso
A 1ª Guerra Mundial transformou o rosto dos homens. Até então, deformidades faciais (quando existiam) eram geralmente causadas por doenças. Mas o avanço científico-tecnológico na virada do século 19 para o 20 permitiu a invenção de armas capazes de infligir ferimentos graves em uma enorme quantidade de soldados ao mesmo tempo. Uma das mais cruéis é um tipo de munição chamado shrapnel, que espalha estilhaços de metal no ar.
De repente, a Europa viveu uma epidemia de ferimentos faciais graves. Alguns soldados perderam porções inteiras do rosto, e outros tiveram lesões na mandíbula que os impediam de comer e beber. Foi nesse contexto que o cirurgião Harold Gillies começou a desenvolver técnicas de sutura e enxerto de pele para melhorar a rotina e a aparência dessas pessoas. Era o embrião do que hoje conhecemos como cirurgia plástica.
O problema é que alguns tinham ferimentos graves demais – e, mesmo após cirurgias de reconstrução, ainda atraíam olhares nas ruas. Por isso, alguns artistas plásticos passaram a confeccionar máscaras de gesso, feitas sob medida para ocultar apenas as partes mais afetadas do rosto dos soldados. Elas eram coladas às armações de óculos, que mantinham as próteses no lugar.
Hoje, as faces transplantadas são como as máscaras da 1ª Guerra: destinadas a quem já passou por diversas cirurgias de reconstrução, mas ainda está longe de ter um rosto considerado comum.
O procedimento, claro, começa com um doador. Nos EUA, o país que mais faz esse tipo de cirurgia, o rosto entra no mesmo sistema que administra a doação de outros órgãos. Mas não basta o doador ter expressado seu desejo em vida. A autorização da família também é obrigatória – afinal, a parte mais característica de um ente querido continuará caminhando e falando por aí.
Essa não é a única diferença em relação a outros transplantes. Um rim ou um coração, por exemplo, são órgãos únicos, chamados de “sólidos”. Já o rosto é um emaranhado de tecidos muito diferentes entre si, como ossos, cartilagem, músculos, dentes e pele. Dependendo do caso, toda essa estrutura é transferida ao paciente.
Até os anos 1990, acreditava-se que algo assim seria impossível. Não só pela complexidade do procedimento, mas pela alta chance de rejeição imunológica. Se a resposta dos glóbulos brancos a um vírus já pode matar, é fácil imaginar a opinião dos seus linfócitos sobre um órgão inteiro, recebendo seu sangue e nutrientes, formado por milhões de células que contêm um DNA estranho. Não à toa, pacientes transplantados com órgãos sólidos tomam medicamentos para suprimir o sistema imunológico após a cirurgia.
Quando o transplante envolve vários tecidos diferentes, a reação imunológica é ainda mais intensa. No primeiro congresso sobre o tema, realizado em 1991, especialistas consideraram que a toxicidade dos imunossupressores necessários para aguentar esse tipo de transplante era muito alta para justificar o procedimento.
Pouco tempo depois, porém, a ideia saiu do papel. Em 1998, cirurgiões fizeram o primeiro transplante de múltiplos tecidos, chamado tecnicamente de alotransplante composto vascularizado (VCA, na sigla em inglês). Esse primeiro VCA não foi de um rosto, e sim de uma mão. O membro transplantado não se mexia, sofreu com problemas de rejeição e precisou ser amputado três anos depois. Mas foi um começo.
Essa mão abriu as portas para que outros VCAs passassem a ser considerados seriamente pela comunidade científica. O cirurgião americano John Barker trouxe os transplantes de face ao debate público após dar uma entrevista à BBC em 1998 afirmando que o transplante de rosto logo seria como o de uma mão. No início dos anos 2000, a previsão se concretizou.

Quebra-cabeça
Encontrar um doador de face não é fácil. O mais importante é garantir uma boa compatibilidade imunológica – o que vai desde ter o mesmo tipo sanguíneo até verificar o tipo de proteína presente na superfície das células do sistema imunológico, o que diminui o risco de rejeição.
Depois vem a estética. O doador deve ser do mesmo sexo que o receptor, mas a idade pode variar um pouco. Em 2021, o americano Joe DiMeo, que fez o transplante aos 22 anos, recebeu o rosto de um homem de 47. Como ocorre com outros transplantes, o paciente não pode escolher as características do rosto que receberá.
O que os médicos garantem, no entanto, é que o paciente receba um rosto da mesma etnia. Robert Chelsea, o primeiro homem negro a passar por um transplante de face, esperou um ano e meio para encontrar um doador que tivesse o mesmo tom de pele que o seu – o tempo de espera para pessoas brancas costuma ser de alguns meses. Ele também é a pessoa mais velha a receber um novo rosto, aos 68 anos.
Quando um doador compatível é identificado, o procedimento deve ocorrer em no máximo algumas horas, para garantir a preservação dos tecidos. O paciente recebe uma ligação dizendo que ele deve se dirigir ao hospital. Enquanto isso, a equipe começa a retirar o rosto do doador, iniciando por incisões no topo da cabeça. O osso é cortado de forma a se encaixar perfeitamente no crânio do paciente. A última incisão, por sua vez, é a dos vasos do pescoço, que fornecerão sangue para toda a face.
“A cirurgia requer um conhecimento anatômico profundo da região craniofacial, o que é essencial para a retirada do rosto, sua inserção no paciente e a restauração das funções”, diz Benedetto Longo, cirurgião que participou do único transplante de rosto realizado na Itália, em 2018. “Devido ao pequeno calibre, o corte e a reconexão dos vasos sanguíneos são feitos sob microscópio. Por isso, o transplante de rosto requer tanto habilidades de microcirurgia avançadas quanto conhecimento maxilofacial aprofundado.”

Após a remoção, o rosto é enviado para uma outra equipe de cirurgiões, responsável por colocá-lo no paciente. Esse segundo procedimento rola ao contrário: começa de baixo para cima, com a ligação dos vasos do pescoço. Em pouco tempo, o rosto transplantado começa a corar, recebendo a irrigação necessária para sobreviver ao resto da cirurgia.
Segundo Longo, o momento mais delicado do transplante é a reconexão dos nervos. Ela é importante para que o paciente tenha sensações na face, como calor, toque e dor. E também é essencial para sorrir, franzir as sobrancelhas e expressar emoções. “Cada nervo deve se conectar com os do paciente. Para isso, usamos suturas ainda mais finas do que as dos vasos sanguíneos”, explica o cirurgião.
A equipe médica geralmente faz um modelo 3D do rosto do paciente e do doador antes da intervenção – que servirá de referência para os cortes e encaixes. O hospital NYU Langone Health, uma das referências em transplante de face, tem uma sala de simulação em que os médicos podem treinar cada etapa do processo. Já houve procedimentos que envolveram mais de 140 profissionais – de cirurgiões a fisioterapeutas e psiquiatras.
Apenas 18 instituições no mundo já realizaram transplantes de face. O número é baixo não só devido à complexidade da técnica mas também porque esse é um dos transplantes mais eticamente controversos de todos.

Diferentemente de quem precisa de um novo coração, fígado ou rim para viver, ter um novo rosto não salva vidas. Na verdade, esse transplante piora a saúde física do paciente. O indivíduo fica suscetível à rejeição crônica da face transplantada, e é obrigado a tomar doses altíssimas de imunossupressores pelo resto da vida.
Descumprir essa regra é fatal. A segunda pessoa a receber um transplante de face no mundo foi o chinês Li Guoxing, de 30 anos, que teve o rosto desfigurado por um urso. Depois do transplante, ele se recusou a tomar os imunossupressores, substituindo a medicação por ervas medicinais. Morreu dois anos depois, e permanece como o único chinês que já fez essa cirurgia.
Os médicos costumam falar que quem passa pelo procedimento vira um paciente profissional. “Não há dúvidas de que melhoramos a qualidade de vida dos pacientes imensamente”, disse o cirurgião Bohdan Pomahac, que já liderou dez transplantes de face, em depoimento (1). “Por outro lado, nós convertemos pacientes jovens e relativamente saudáveis em alguém que é cronicamente doente. A resposta imunológica não é completamente normal; eles ficam mais suscetíveis a infecções.”
Oitenta e cinco por cento dos transplantados sobrevivem aos primeiros cinco anos após a cirurgia, com o novo rosto intacto. Dez anos após o procedimento, a taxa de sobrevivência cai para 74% (2). Duas pessoas, inclusive, tiveram que passar por um segundo transplante de face após a rejeição da primeira. Ou seja: ao receber um novo rosto, o indivíduo está conscientemente reduzindo sua saúde e sua expectativa de vida. Em troca, ele ganha algo inestimável: a possibilidade de recuperar uma vivência (razoavelmente) normal.
Do outro lado
Todos os transplantes de rosto envolvem histórias trágicas. Isabelle Dinoire recebeu um novo rosto após uma tentativa de suicídio. Ela ficou inconsciente após tomar remédios para dormir, o que levou seu cão de estimação a morder e arranhar seu rosto (talvez na tentativa de acordá-la). Katie Stubblefield tentou tirar a própria vida com um tiro. Connie Culp, por sua vez, foi baleada pelo marido. Já no caso de Carmen Blandin, a tentativa de feminicídio foi com soda cáustica. Há casos com desastres de automóveis, ataques de animais, acidentes de trabalho etc.
São pessoas que perderam seu maior símbolo de identidade do dia para a noite. Sem poderem demonstrar emoções por meio de expressões faciais, elas também ficam sem uma das principais formas de comunicação não verbal e de conexão humana. Além disso, muitas delas têm dificuldade para respirar, falar, enxergar e comer.

“Devemos entender que esses pacientes não têm rosto, não saem do quarto ou de casa. Eles não querem encontrar outras pessoas, não têm muitos amigos, não têm interações sociais”, diz Longo. Mais do que um novo rosto, as pessoas se submetem a esses transplantes na esperança de ganhar sua vida de volta.
Ao se candidatar para o procedimento, o paciente deve passar por uma avaliação psicológica. Nesse momento, a equipe médica verifica se ele tem estabilidade mental e financeira para manter os remédios, os exames e o acompanhamento pelo resto da vida (3). O candidato também deve ter uma rede de apoio familiar, com pessoas que o ajudarão a se inserir no mercado de trabalho e em círculos sociais.
“Eles querem garantir que o paciente é resiliente e sabe no que está se envolvendo”, diz Fay Bound Alberti, historiadora que lidera um projeto de pesquisa sobre transplantes de face na King’s College de Londres. “É uma jornada de cura emocional, tanto quanto de cura do corpo.”
Ainda não há um estudo formal que tenha medido os impactos psicológicos dos transplantes de face. Trabalhando com esses pacientes desde 2019, Alberti diz que cada experiência é individual. Perguntamos sua opinião sobre um dos principais mistérios que rodeiam tais intervenções: como é se olhar no espelho e ver um novo rosto? “Eu entrei nessa pesquisa achando que as pessoas teriam dificuldade com isso, mas elas não têm”, diz Alberti. “Eu achava que seria uma das maiores questões. É estranho que não seja.”

Ela tem um palpite sobre esse resultado aparentemente contraintuitivo: a verdade é que nosso rosto muda o tempo todo, não importa o que aconteça. Todos estamos suscetíveis a mudanças de aparência e de identidade – isso, afinal, é envelhecer. “Não há um momento em que acordamos e temos uma nova identidade. É um processo longo para todas as pessoas”, diz Alberti.
“Todo mundo na indústria da beleza reforça a ideia de ser jovem e bonito para sempre […] E esses pacientes só querem ter as funções básicas e não ser encarados na rua”, diz a historiadora. Com cada vez mais pessoas fazendo cirurgias plásticas para apagar linhas de expressão, arrebitar o nariz ou aumentar os lábios, os pacientes transplantados nos lembram do privilégio que é, simplesmente, ter um rosto e vê-lo envelhecer.
Referências: (1) texto “Do Face Transplants Work? Review of First 50, Globally, Says Yes”; (2) artigo “An Update on the Survival of the First 50 Face Transplants Worldwide”; (3) artigo “International consensus recommendations on face transplantation: A 2-step Delphi study”