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A saga do queijo canastra

Ele quase caiu no esquecimento, e agora está ganhando o mundo. Entenda a ciência e as polêmicas por trás desse queijo artesanal.

Por Carolina Pinheiro e Luiza Monteiro
Atualizado em 24 jan 2020, 16h59 - Publicado em 26 set 2018, 15h33

Na Serra da Canastra, sudoeste mineiro, a força da natureza é uma expressão sólida como o quartzito que forma o chão do lugar. A região abriga tantas nascentes que cientistas definem o lugar como uma gigantesca caixa d’água. A principal delas, aliás, é a do São Francisco, o maior rio totalmente brasileiro. Entre os maciços da Serra da Canastra e o da Serra das Sete Voltas, mais de 200 cachoeiras se misturam a uma vegetação de árvores baixas, marcando a fronteira entre o Cerrado e a Mata Atlântica. O Parque Nacional da Serra da Canastra abriga 354 espécies de aves e 38 de mamíferos. Por planícies e capões passeiam animais silvestres como tatu-canastra, pato-mergulhão, onça-parda, tamanduá-bandeira, lobo-guará, ema e veado-campeiro – todos ameaçados de extinção.

Às margens dos ribeirões, os municípios de São Roque de Minas, Piumhi, Vargem Bonita, Tapiraí, Medeiros, Delfinópolis e Bambuí se destacam pela produção artesanal de queijo. Essas sete cidades formam um circuito em que cerca de 800 famílias não só mantêm viva uma tradição secular como têm mostrado ao Brasil que aqui se faz um dos melhores queijos do mundo.

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Foto: Fellipe AbreuYes, nós temos canastra
Os portugueses trouxeram o conhecimento da produção de queijos para o Brasil Colônia. Na região da Canastra, ele chegou há dois séculos. Pouca coisa mudou desde então. Ele é feito de leite cru, em vez de pasteurizado, o que faz toda a diferença. Mas não só: assim como os outros queijos artesanais, o terroir tem um papel fundamental. O termo, famoso no mundo do vinho, também aparece por aqui. Ele se refere às condições ambientais em que um alimento artesanal é feito: o solo, o clima, a fauna bacteriana do lugar.

No caso do queijo mineiro, o pasto que alimenta a vaca determina o teor de proteína e gordura do leite. Já a umidade relativa do ar mais baixa da região serrana ajuda a formar aquela casca durinha e amarelada do canastra. As bactérias e leveduras do ambiente são responsáveis pelo sabor forte e levemente ácido e picante.

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Aliás, sem esses microrganismos, o queijo artesanal não seria diferente daquele produzido pela indústria em qualquer lugar do mundo. “As bactérias são a alma do queijo”, diz Renata Golin Bueno Costa, pesquisadora da Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais (Epamig) – Instituto de Laticínios Cândido Tostes. Para que as bactérias façam seu trabalho, é essencial que a produção aconteça direto do leite tirado da vaca, sem pasteurização. Mas há outras etapas importantes nesse processo.

Nos sítios familiares da serra, quem em geral faz o queijo são as mulheres (leia mais abaixo). Após a coleta e o transporte do leite, o líquido é despejado em um tanque e filtrado. Depois, a produtora adiciona coalho, que contém enzimas que interagem com proteínas do leite chamadas caseínas. A aglomeração de caseínas é o que forma o coágulo, o leite solidificado que vai dar origem ao queijo propriamente dito.

A artesã acrescenta também o fermento lácteo natural, conhecido como “pingo”. Trata-se do soro cheio de bactérias que pingou do queijo de uma produção anterior. Na tradição do canastra, o pingo de ontem é usado no queijo de hoje. Para cada 100 litros de leite vai meio litro de pingo.

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Foto: Fellipe Abreu (foto/Fellipe Abreu/Superinteressante)

Esse processo dura entre 40 e 50 minutos, até que o produto atinja o chamado ponto de corte. A mulher bate na massa lentamente com uma pá e a deixa descansando por 15 minutos. Em seguida, retira o excesso de soro (que será usado para alimentação de animais) e coloca a massa nas formas.

A etapa seguinte envolve a salga. O sal grosso deve ficar na superfície por seis horas em cada lado. O papel dele é fundamental por causa do seguinte: quanto mais água no queijo, mais bactérias. Menos água, menos microrganismos. Ao controlar a quantidade de sal, você determina a população de bactérias. E é essa fauna, como dissemos antes, que vai determinar o gosto e a textura do seu queijo.

O sal dá início ao processo de cura. A palavra “cura” vem de “curar” mesmo, no sentido de curar-se de um machucado. Consiste em exterminar as bactérias do queijo, de modo que ele não estrague tão rápido – quando não havia geladeira, a cura era o único método de conservação, inclusive para carnes.

Em 2017, a Canastra levou três pratas no Salão Internacional do Queijo, na França.

Durante a cura, o número de bactérias e leveduras dentro do queijo baixa de 1 bilhão de “indivíduos” por grama para 10 milhões. Ao longo do processo, as bactérias vão consumindo o açúcar do leite. Conforme esse açúcar vai acabando, as bichinhas vão morrendo. E isso é ótimo: evita que o queijo estrague e, de quebra, dá mais sabor. É que a morte dos microrganismos (ou seja, o rompimento das células deles) libera substâncias que reforçam o aroma e o sabor. É como se o queijo fosse um cemitério de bactérias.

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A partir da primeira semana de envelhecimento, o queijo enrijece de fora para dentro e adquire uma coloração amarelada – eis o “meia cura”: o ponto em que o sabor do queijo está no auge. Quando ele passa de um mês nesse processo, vira um queijo 100% curado – mais duradouro, só que nem tão agradável ao paladar quanto o meia cura. Segundo a legislação de Minas Gerais, o canastra deve ser submetido a um período de, no mínimo, 22 dias de maturação para que os fabricantes possam vendê-lo. Antes desses 22 dias, há risco de que o queijo ainda apresente bactérias que causam doenças.

O fora da lei
São Roque é a principal produtora de canastra. A cidade, que de tão pequena lembra um presépio incrustado na montanha, concentra quase a metade dos fabricantes. É o caso de Ivair e Maria Lúcia Oliveira. O queijo do casal é, hoje, um dos mais reconhecidos da serra. Mas nem sempre foi assim, e a história deles representa a saga do queijo nas últimas décadas.

O isolamento da Serra da Canastra sempre dificultou as oportunidades para a economia da região. Os produtores, enfrentando a concorrência da indústria, acabavam vendendo seu produto a preços irrisórios para fábricas de pão de queijo. Para completar, a criação do parque nacional, em 1972, expulsou famílias de suas terras. Muitas seguem sem indenização. O marasmo econômico dividiu a comunidade. Afinal, ela está em cima de uma enorme reserva de diamantes, mas explorá-la traria graves consequências ambientais. O projeto que liberava uma mina dentro do parque foi cancelado.

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Nos últimos anos, porém, essa realidade começou a mudar. O parque passou a dar retorno com o turismo e os produtores se uniram para valorizar seu queijo. Ivair tratou de resgatar a tradição do avô e do bisavô. O pai de Maria Lúcia deu a terra e eles montaram o sítio.

Em 2002, o governo estadual selou uma parceria com produtores franceses para que auxiliassem no desenvolvimento de uma cadeia produtiva de queijos artesanais. Regiões produtoras foram identificadas. O canastra, assim como o queijo da região do Serro, ganhou a denominação de origem controlada. Ou seja, só o queijo produzido na área dos sete municípios, e seguindo regras específicas, é um legítimo canastra. Os produtores criaram a Aprocan e, mais estabelecidos, fizeram fama e conquistaram chefs famosos, como Alex Atala e Helena Rizzo. Nos últimos anos, premiações internacionais colocaram o canastra entre os melhores queijos do planeta.

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Foto: Fellipe Abreu (foto/Fellipe Abreu/Superinteressante)

Ele ganhou o mundo, mas não venceu a burocracia brasileira. Os produtores precisavam enfrentar exigências de órgãos federais, isso depois de passar pelo crivo de órgãos estaduais. Para vender fora de Minas Gerais, só com o aval do Sistema Brasileiro de Inspeção de Produtos de Origem Animal (Sisbi). Na teoria, isso é importante para o controle sanitário da produção. Na prática, um caminho burocrático e oneroso. A legislação gerou episódios lamentáveis. No Rock in Rio 2017, Roberta Sudbrack, uma das mais badaladas chefs brasileiras, viu 160 kg de alimentos artesanais, como queijos e linguiças, serem descartados de seu estande por não terem o selo federal (embora estivessem dentro do prazo de validade e das normas do Estado de origem). “Sou clandestina”, protestou à época. A polêmica jogou luz sobre o que especialistas consideram um atraso que impede o crescimento dos produtores artesanais no Brasil.

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Mas isso pode mudar. Em junho de 2018, a legislação que vigorava desde 1950 e que exigia um selo federal para queijos de leite cru e outros produtos alimentícios artesanais de origem animal foi alterada. A fiscalização agora fica a cargo dos órgãos estaduais de saúde pública. Resta esperar para que a medida desburocratizante funcione para valer. “É um futuro promissor. Se pensarmos que a luta se estende por quase 50 anos, é motivo para celebrar”, diz Paulo de Almeida, da Aprocan. Se tudo der certo, as prateleiras dos mercados terão mais não só queijos, mas outros produtos artesanais, o que pode incentivar o crescimento do setor. Outras regiões mineiras estão na fila pelo certificado de “denominação de origem”. O queijo brasileiro aos poucos conquista seu lugar ao sol. Como o canastra se tornou o mais famoso deles, ele pode ajudar a puxar essa fila e popularizar outros queijos artesanais, como os de Araxá e da Serra do Salitre.

A valorização do produto regional passa pelo reconhecimento de que ele integra a cultura local. É o que os turistas procuram na Serra da Canastra. Isso inclui a forma como o queijo é concebido. Cada propriedade coloca no mercado cerca de 20 unidades por dia. O tradicional, mais vendido, pesa cerca de 1,2 kg. São 15,9 mil peças produzidas por dia. Todo ano, cerca de 6 mil toneladas saem da serra. Um trabalho que exige dedicação integral, 365 dias por ano. É o trabalho de gente como Roque Pedro. Estirado ao lado da cerca, olhos claros, sorriso vasto e um galão de 200 litros vazio na mão, ele arruma o curral para o início da ordenha. As vacas se agitam e, uma a uma, entram, comem, soltam o leite e dão de mamar aos bezerros. De chapéu de palha, o produtor de queijo recebe um grupo de visitantes: “Viram a Lua ontem, meninada? Estava feito um queijo curado.” A fazenda estava na empolgação de sexta-feira. Dali a algumas horas, Roque Pedro se juntaria aos amigos para a noite de truco, angu, feijão tropeiro, cachaça e frango caipira. O descanso é merecido e o futuro aponta ventos favoráveis para a Canastra. O verdadeiro diamante dessa serra é amarelo e redondo.

Agradecimentos Beatriz Martins Borelli, microbiologista e pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); Renata Golin Costa, pesquisadora do Instituto de Laticínios Cândido Tostes, da Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais (Epamig). Edição Felipe van Deursen

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