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Como a ciência explica o ódio eleitoral

Fomos programados para sentir prazer quando alguém repete nossas crenças. Num mundo dividido em bolhas, esse é um belo atalho para o obscurantismo.

Por Rodrigo da Silva
Atualizado em 4 nov 2022, 11h44 - Publicado em 19 out 2018, 16h34

Este texto foi publicado originalmente em outubro de 2018.

As pesquisas de rejeição nas eleições presidenciais de 2018 deixaram claro: Jair Bolsonaro e Fernando Haddad eram odiados. A questão era por quem: os que votaram em um rejeitavam total e absolutamente o outro. Para entender exatamente por que isso acontece, não tem outro jeito. Precisamos esquecer por alguns instantes os valores e planos de governo de cada um e focar num objeto inquestionavelmente mais complexo: nosso cérebro. E ele traz à tona uma resposta incômoda, a de que somos mais intolerantes do que admitimos.

É o que aponta o neurocientista americano Joshua Greene, de Harvard, em seu livro Tribos Morais: A Tragédia da Moralidade do Senso Comum. Greene defende um pilar da psicologia evolutiva: o de que nosso cérebro não foi projetado para encarar a tarefa de viver em grupos complexos. Nossos instintos não toleram a ideia de conviver com quem pensa de forma distinta – muito menos oposta.

A evolução nos conduziu para a vida tribal. Entenda “tribal” não como algo primitivo, mas como uma família estendida. Fomos programados para conviver em grupos pequenos, com indivíduos que encaram a vida de uma forma parecida com a nossa – que comungam das mesmas crenças, hábitos e valores. Quem não comungasse era um inimigo, um predador humano, alguém pronto para roubar sua comida e matar você ao longo do processo.

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Foi dessa forma que organizamos nossa vida coletiva por centenas de milhares de anos. O cérebro criou mecanismos para proteger os laços tribais. Um deles é o “viés de confirmação”. Somos recompensados com pequenas doses de dopamina, o neurotransmissor do prazer, cada vez que ouvimos alguém repetir crenças e valores iguais aos nossos. Isso indica que o sujeito é um membro em potencial da sua família estendida. Alguém que irá lhe proteger.

Por volta de dez mil anos atrás o mundo começou a ficar melhor, e menor. A agricultura, o comércio e as primeiras cidades nos obrigaram a conviver com outras tribos, outras famílias estendidas, que cultivavam valores distintos.

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O comportamento tribal enfraquece a razão na hora do voto: coloca superstições no centro das nossas escolhas.

Era uma vitória do neocórtex, a parte mais complexa do cérebro – que nos difere basicamente de qualquer outro animal. Graças a ele conseguimos manter os instintos na rédea curta e conviver de forma civilizada (não é à toa que a palavra “civilizada” vem de “cidade”).

Mas esses dez mil anos não bastaram para reprogramar a massa cinzenta. Como diz Steven Pinker, colega de Greene em Harvard, nossos cérebros jamais saíram para valer das cavernas. O viés de confirmação segue firme. E os predadores humanos só mudaram de nome. Para quem vota em Haddad, esses predadores foram batizados como “bolsominions” e “fascistas”. Para quem vota em Bolsonaro, eles atendem por “petralhas”, “comunistas”.  

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Algumas diferenças, de acordo com Greene, são menos conciliáveis que outras. As “tribos morais” de hoje tendem a discordar com mais veemência justamente nos temas que atiçam nossos instintos primitivos: sexo e morte. A sexualidade alheia gera estresse basicamente por lidar com um impulso primitivo. Logo, o homofóbico espuma ao falar sobre homossexualidade. E o defensor dos direitos LGBTs também irá reagir de forma sanguínea se detectar algum sinal de homofobia no discurso alheio – mesmo que se trate de um alarme falso.

Outro tema que aciona o lado selvagem é o combate ao crime, pois é algo ligado ao conceito de morte. Daí o tom alto de quem defende a pena capital, o fim das políticas de direitos humanos para presidiários, o atirar para matar. Cada expressão dessas é uma torrente dopaminérgica para quem compartilha dessas crenças e valores. As reações são destemperadas do outro lado também. Às vezes, basta não seguir certas cartilhas de pensamento para virar alvo. Exemplo: quem acha que a prisão não serve apenas para recuperar o condenado, mas também para puni-lo, pode acabar tachado de “assassino”.  

Se sexualidade e morte ativam ódios, aborto talvez seja o mais espinhoso de todos os temas, já que envolve sexo e morte. Desnecessário elencar aqui os argumentos pró e antiescolha. O ponto é que se trata de um debate que, não raro, decai para a barbárie – o neocórtex sabe que quem é a favor da legalização do aborto não é “matador de crianças”; sabe que o povo contra não é “nazista”. Mas o sistema límbico, o pedaço primitivo da massa cinzenta, não sabe de nada. E parte para o ataque sujo contra quem vai contra a posição da sua bolha, seja ela qual for.

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Para deixar as coisas ainda piores, agora temos uma máquina anticivilizatória. Uma ferramenta criadora de bolhas, que nos faz voltar aos tempos tribais: as redes sociais. Como o algoritmo do seu Facebook, interessado em vê-lo dedicar longas horas conectado a ele, apresenta conteúdo com base naquilo que você se interessou no passado – textos que parou para ler, vídeos que assistiu, imagens que curtiu –, a tendência é que ele reforce ideias preconcebidas, concentrando no seu perfil postagens de páginas e amigos que replicam conteúdo que em geral você concorda.

Ou seja, as redes sociais alimentam um isolacionismo das tribos morais. Nós não estamos apenas ouvindo cada vez menos uns aos outros, interessados em alcançar exclusivamente o nosso próprio grupo social; nós também estamos acirrando os ânimos em relação a quem pensa diferente, reforçando os nossos preconceitos.

Esse comportamento tribal enfraquece a nossa capacidade de usar a razão na hora do voto, colocando superstições no centro das nossas escolhas.

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A cada dia que passa, então, nós aumentamos a possibilidade de sermos engolidos pela histeria, provocados por uma leitura maniqueísta da realidade.

É nesse cenário que chegamos às eleições presidenciais de 2018 – enviesados pelos códigos morais excludentes das nossas tribos; influenciados por apelos estéticos; radicalizados pela crença de que nossos opositores políticos representam um clã selvagem inimigo, perfeitamente capaz de destituir as normas que regem a organização de nossa tribo da noite para o dia.

Bolsonaro e Haddad representam as principais tribos morais em evidência no País. Salvo exceções, a vasta maioria de seus eleitores é formada por pessoas absolutamente normais que frequentam os mesmos postos de trabalho, cruzam as mesmas esquinas e alimentam os mesmos sonhos sociais. Mesmo assim, cada uma delas afirma defender o lado mais virtuoso dessa equação.

Entender as motivações que levam essas pessoas a essas escolhas – sem a condescendência arrogante da superioridade moral – passa necessariamente pelo processo de distanciamento das bolhas que condicionam as nossas tribos. Ouvir não é o bastante – é preciso colocar-se no lugar do outro. Caso contrário, corremos o risco de internalizar de forma inconsciente o mantra autoritário eternizado por Millôr Fernandes: “Democracia é quando eu mando em você, ditadura é quando você manda em mim”.

Rodrigo da Silva é autor do Guia Politicamente Incorreto da Política Brasileira (Leya, 2018).

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