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Como a falta de moradia nas cidades alimenta a política – e a máfia

Não faz sentido manter prédios abandonados em áreas cheias de infraestrutura. Mas a forma como lidamos com esse problema só colabora para que nada mude

Por Edison Veiga
Atualizado em 21 jan 2019, 17h03 - Publicado em 25 Maio 2018, 13h54

Para muitos é invasão. Para outros, ocupação. Semântica ideológica à parte, a questão do uso não autorizado de propriedade privada alheia é maior do que a tragédia ocorrida na madrugada do dia 1o. de maio de 2018 no Edifício Wilton Paes de Almeida, no Largo do Paissandu, centro de São Paulo – e não estamos relativizando aqui as mortes nem os mais de 300 desabrigados.

Vamos lá. São Paulo tem 16 mil sem-teto. Um número grande, mas não alarmante – há mais de 100 mil em Nova York, por exemplo. O problema imobiliário da cidade é outro: um em cada dez paulistanos mora em favelas. São 1,2 milhão de pessoas sem moradia digna numa cidade de 12 milhões de habitantes. Moradia indigna e, invariavelmente, distante: 70% da população vive nas regiões periféricas, onde estão apenas 20% dos empregos. Daí que vem a demanda gigantesca por moradia no centro. Demanda que serve de combustível para as invasões.

“Eu pagava R$ 450 de aluguel num cômodo em São Mateus [zona leste de SP], e meu marido gastava cinco horas para ir e voltar do trabalho. Hoje, pago R$ 200 e moro no centro. O que você acha que eu prefiro?”, disse Neide Leonel Vidotto, moradora de um prédio ocupado numa reportagem da Folha de S.Paulo sobre invasões, feita em 2015.

Também há quem ocupe por questões completamente ideológicas. Em 2017, estive em um edifício invadido na Rua do Ouvidor, centro de São Paulo. Ali viviam artistas. Eles tinham rebatizado o prédio como Centro Cultural Ouvidor 63.

Entre os grafiteiros, músicos, escultores, circenses, pintores, atores e artesãos que residem ali, nenhum está lá por falta de moradia. Eles acreditam que o local, antes vazio por longos 15 anos, precisa funcionar como uma usina de criação artística. São cerca de cem os moradores – alguns com filhos pequenos. No térreo funciona uma galeria – lojinha onde os artistas podem vender suas obras. Proprietário do imóvel desde os anos 1950, o governo do Estado tenta vendê-lo em leilões. Mas nunca aparecem interessados, justamente por conta da dor de cabeça que seria tirar as famílias de lá.

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Isso também acontece no resto do mundo. Principalmente na Europa. Em 1999, artistas ocuparam um edifício em ruínas, que pertencia a um banco, na Rua Rivoli, em Paris. Sete anos depois, a prefeitura comprou o imóvel e o oficializou como centro cultural. Em Berlim, o edifício Tacheles se tornou um epicentro da arte alternativa. Mas o desfecho foi outro: despejaram os artistas em 2011.

São Paulo tem 16 mil sem-teto. Nova York, mais de 100 mil. O problema da maior cidade do País é outro. E pior

Já grupos como o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), liderado pelo candidato a presidente Guilherme Boulos, usam as invasões como forma de pressão política. O objetivo ali é forçar desapropriações não só de prédios, mas também de terrenos vazios, além de levantar dinheiro para a construção de moradias populares. E eles têm conseguido. Em 2014, o MTST recebeu R$ 89 milhões do Minha Casa Minha Vida para construir moradias em São Paulo, Pernambuco e Goiás (o dinheiro entrou via entidades parceiras, já que o movimento em si não pode receber esse tipo de recurso). Parte foi aplicado na construção de um edifício para 348 famílias em Taboão da Serra, na Grande São Paulo.

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Um exemplo do uso das invasões para fazer pressão é a Nova Palestina, maior ocupação do MTST em São Paulo, com 1 milhão de metros quadrados.Visitei o lugar em 2015, e tratava-se de uma cidade-fantasma. O lugar era um amontoado de barracas vazias – a maior parte dos ativistas vivia em outros lugares. A cozinheira Simone Peres Borges, uma das pessoas com quem conversei ali, admitiu. “É assim porque o objetivo não é favelizar o terreno, mas lutar por moradia digna”, ela disse, explicando que “as coisas são que nem feijão: só funcionam com pressão”. Na época, a Nova Palestina contava oficialmente com 4,5 mil famílias. Mas só 50 realmente moravam nas lonas do terrenão.

Ok. Todo grupo tem direito de fazer pressão. Mas eles também deveriam cumprir o que propõem. Há três anos, o governo federal liberou R$ 33 milhões ao MTST para a construção de moradias num terreno desapropriado em Itaquera. As obras, porém, jamais começaram. Dessa forma, o recado que a organização passa é um só: o de que a prioridade ali não é prover moradia, mas angariar prestígio político. No fim, temos um paradoxo – uma organização criada para o bem dos que não têm onde morar colaborando com a perpetuação da falta de moradia.

Disparate urbano

Não há um número definitivo de quantos movimentos de sem-teto existem no Brasil. Um estudo da Unicamp estima serem mais de cem. E, se as motivações de cada um são diferentes, o cerne da questão é o mesmo: faz sentido a existência de imóveis sem uso em espaços urbanos? Não. Não faz. Mesmo assim, a cidade de São Paulo tem 2 milhões de metros quadrados ociosos, muitos deles em regiões centrais, com água, luz, esgoto, metrô, escolas gratuitas, praças.

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O poder público tem, desde 2014, uma ferramenta para coibir esses disparates. Trata-se do IPTU progressivo: o imposto vai aumentando se o proprietário não der uso ao seu bem. A legislação em vigor prevê ainda que, a partir do quinto ano de abandono, o imóvel pode ser desapropriado – em troca, o proprietário recebe títulos da dívida pública. Ainda não deu cinco anos, então ninguém chegou a esse ponto. Mas, de acordo com dados da Secretaria Municipal de Urbanismo, 1.285 imóveis já foram notificados.

Não à toa, a capital paulista se transformou num celeiro para grupos de sem-teto. São Paulo tem mais de 70 prédios ocupados só na região central. Quatro mil famílias vivem nessa situação. O Wilton Paes de Almeida, que pertencia ao governo federal, estava vazio desde 2003. O controle do prédio abandonado acabou nas mãos de uma das tantas organizações que se identificam como movimentos sociais por moradia. Alguns desses grupos – como parece ser o caso do que explorava o prédio do Paissandu – transformaram a administração de edifícios invadidos num negócio. Cobram aluguéis quase a preço de mercado (até R$ 500), enquanto largam os moradores em meio a ratos e fios desencapados.

Os inquilinos do Wilton Paes, antes de serem vítimas do incêndio, já sofriam nas mãos dessa máfia – para a qual tanto as autoridades como os movimentos legítimos fazem vista grossa. Enquanto mafiosos e alpinistas políticos estiverem à frente da luta contra a falta de moradia, uma coisa é certa: seguiremos longe de uma solução concreta.

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