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Larfiagem: a saga da língua criada no interior de Santa Catarina

Conheça o dialeto inventado por crianças catarinenses nos anos 1950 – e que luta para se manter vivo.

Por Gabriela De Toni, editado por Tiago Jokura
Atualizado em 8 jan 2021, 10h26 - Publicado em 24 jan 2018, 16h16

Herval d’Oeste, cravada no miolo de Santa Catarina desde 1910, parece isolada do mundo. Os trilhos enferrujados à beira do Rio do Peixe há muito não carregam os viajantes e as mercadorias que movimentavam a cidade. A estação de trem, primeira construção local, atendia três linhas, incluindo a São Paulo-Rio Grande.

A história seguiu muito parecida à de outros entroncamentos ferroviários, até que, nos anos 1950, um grupo de 15 meninos, de 8 a 12 anos, em sua maioria negros, inventou uma maneira própria de se comunicar: a larfiagem (“fala”, ou “falagem”, mal traduzindo para o português). Os garotos, que faziam bicos de maleiros ou engraxates, chamavam a atenção dos viajantes com um idioma próprio que nunca saiu de Herval, mas viajou no tempo, e ainda tenta sobreviver.

Adão (Arôndio), Getúlio (Gerundio), Tomaz (Mortais), Carlão (Larquião) e Padilha (Parídia) são dos poucos larfiantes ainda vivos. (Filme Larfiagem/Reprodução)

Mirco roivos conratie a hirlóstia (Eu vou contar a história)

João Maria de José, o Corvo, foi quem surgiu com a tal larfiagem. Era um pouco mais velho que os outros meninos, usava preto da cabeça aos pés e tinha a malandragem como vocação. Colocou a ideia de uma nova língua na cabeça de outros e ela foi se alastrando boca a boca até virar brincadeira séria.

“Costumo chamar esses pioneiros de catedráticos”, diz Carlos Tratsk, um senhor de 74 anos, enquanto pega um dicionário para ler em voz alta: “‘Indivíduo muito versado em determinado assunto ou área de conhecimento’. Eles foram isso, os professores da larfiagem”. Carlão (chamado Larônquio ou Larquião na lárfia) não se inclui na conta, embora também tenha sido um dos “catedráticos”, junto com Tupira, Moacir, Petry, Coringa, Tino, Tomaz e Padilha – muitos deles já falecidos.

Quando um trem estava para chegar, o ferroviário tocava a sineta duas vezes e os meninos se preparavam para correr. Eles pulavam na maria-fumaça em movimento e começavam a chamar clientes. “A gente engraxava sapato, carregava mala e reservava lugar para os passageiros que dessem um troco”, diz Adão Luiz de Oliveira (Arôndio, na lárfia), 64 anos, um dos poucos falantes vivos.

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Para impressionar – ou enganar – os viajantes, eles larfiavam. “Os forasteiros gostavam de ouvir. A gente aproveitava e fazia a malandragem. Se o passageiro parecia ser rico, um falava para o outro que podia pedir mais dinheiro”, explica. “Podia ser zérdio (dez), rence (cem), ou até riusme (mil) cruzeiros, dependendo do cliente.”

Rentie jórnica? (Tem lógica?)

A construção da larfiagem tem um padrão, embora pareça haver mais exceções do que regras. “A gente se reunia ali ao redor da estação quando não tinha trem e inventava palavras. Começava a misturar as sílabas e de repente achava graça de uma palavra e ela ficava. Se você parar para pensar, sempre lembra das coisas que te fazem rir”, conta Carlão. A inversão de sílabas era muito comum, assim como a inserção de uma letra “coringa” para dar liga na palavra. As letras coringa mais comuns são R, I e E.

Por exemplo, temos a palavra “casa”. “Ao contrário ficava ‘saca’, muito simples. Então a gente colocou um ‘r’ ali no meio. Como seguia o som das letras, o ‘s’ se transformou em ‘z’ e o ‘c’ virou ‘qu’. ‘Casa’, então virou zarquia”, ensinam os larfiantes. A mistura de sílabas com acréscimo de letras coringas também vale para “salame” (larciame), “buraco” (lurbiaco) ou “cinema” (minércio). Existem também expressões que se resumem a uma palavra só, como “mulher bonita” (rômbia) – que se fosse traduzida ao pé da letra seria “rosmié bunirontcha” – e palavras com dois significados, como vrolo (ovo e oito).

No filme Larfiagem (2017), a diretora Gabi Bresola imaginou como seriam HQs traduzidas para o dialeto catarinense. (Filme Larfiagem/Reprodução)

Em termos técnicos, a larfiagem não é um idioma, mas um argot. O professor Gilvan Muller de Oliveira, do Departamento de Língua e Literatura Vernáculas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), detalha: “Um argot, como a larfiagem, é um código inventado localmente, de maneira oral e que não é transmitido de uma geração para outra. Geralmente é usado para esconder o que os falantes pretendem comunicar. Há relatos de construção de argot no antigo presídio do Carandiru e em campos de concentração na 2ª Guerra Mundial.”

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A larfiagem segue três pilares da gramática portuguesa: morfologia, fonologia e sintaxe. No caso da morfologia, os verbos seguem um radical, variando de uma pessoa para outra: “eu vou e ele vai” viram mirco roivos e ledo raives. Do mesmo modo, entonação e pronúncia são convencionais. A estrutura das palavras nas frases (sintaxe), com sujeito seguido de verbo e predicado, também se mantém. A diferença entre a larfiagem e o português é outro pilar: o vocabulário. Ou seja, as palavras são diferentes, mas a estrutura é a mesma. A larfiagem só poderia ser considerada uma língua se tivesse características e estruturas próprias nesses quatro pilares. Além disso, um idioma precisa de um número de falantes considerável ou de aceitação política para ser reconhecido como tal.

Com o resgate da larfiagem e a criação de dicionários com vocabulário da língua, ela passou a ser enquadrada também como um criptoleto: um argot com elementos escritos, não apenas orais. Esse termo é usado pelo pesquisador Dennis Radünz no encarte do documentário Larfiagem, dirigido por Gabi Bresola. A hervalense fez um longo trabalho de pesquisa que começou em 2013 e culminou na primeira exibição pública do filme em março de 2017. “Estudei a vida toda na periferia da cidade e quando fui fazer o Ensino Médio no centro, em 2005, comecei a conviver com adolescentes que larfiavam. Eu perguntava o que eles estavam falando e é óbvio que não iriam me dizer. Foi assim que me interessei pela larfiagem. É engraçado que, mais de 50 anos depois do surgimento da língua, ela ainda seja usada para falar sem que os outros entendam”, diz a diretora. “Vejo a larfiagem como uma possibilidade de percebermos a nossa cultura. Retratar essa narrativa marginal, que não vai aparecer nos livros de história, é importante”, completa.

O furuntio da lárfia (O futuro da fala) 

Nas ruas de Herval, as pessoas se cumprimentam com sirne, morne (“sim, cara”). Quando algo não vai  bem, responde-se rone, morne (“não, cara”) em tom conformado. Essas saudações foram incorporadas ao dia a dia local, mesmo entre quem não “lárfia”. Com a divulgação do linguajar pelo filme, há um desejo, entre os larfiantes, de que a linguagem torne-se a segunda língua local, ensinada em sala de aula. A Prefeitura, porém, não acredita na aprovação de um eventual projeto de lei a respeito. “Existe a possibilidade de criação de oficinas semanais no Departamento de Cultura, onde a larfiagem seria ensinada voluntariamente. Incluí-la na grade curricular de ensino é pouco provável”, conta o vice-prefeito e secretário de cultura municipal, Mauro Sérgio Martini. Por ironia, Martini despacha do prédio em que a larfiagem nasceu:  a antiga estação de trem, tombada pelo patrimônio histórico e atualmente sede do Departamento de Cultura de Herval.

Enquanto isso, Carlão está organizando por conta própria o que ele diz ser um “dicionário definitivo, com vocabulário completo” – a obra já tem mais de mil palavras. Se ao menos um desses projetos se concretizar, quem sabe a estação de Herval D’Oeste volte a ser parada obrigatória nas viagens linguísticas dos “catedráticos”, com a larfiagem novamente a pleno vapor.

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