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Moradia popular: falta o Brasil querer

Mais de 6 milhões de famílias vivem em favelas, cortiços ou ocupações ilegais. Isso não aconteceu à toa. É resultado de políticas sociais – que podem mudar.

Por Alexandre Carvalho
Atualizado em 28 abr 2021, 15h35 - Publicado em 15 jan 2021, 12h48

“Saudosa maloca” é uma composição de 1951, de uma década em que São Paulo, confundindo progresso com gentrificação, demoliu cortiços no centro da cidade, abrindo espaço para vistosos arranha-céus. A canção de Adoniran Barbosa fala do lamento de três moradores de um imóvel ocupado de forma irregular, que um dia o verdadeiro dono resolveu pôr abaixo para construir um edifício. “Peguemos todas nossas coisas/ E fumos pro meio da rua/ Apreciar a demolição”, canta o personagem, agora sem teto. “Cada tauba que caía/ Doía no coração.”

Não tem como ser pequena essa dor. Mas ela parece não sensibilizar o poder público no Brasil, onde há mais de 6 milhões de famílias sem habitação adequada (1) – um déficit que atravessa governos sem a devida prioridade. Não se trata de pessoas em situação de rua (que são 222 mil no país (2)), mas de favelados, moradores de cortiços ou ocupações ilegais, gente sem banheiro próprio, amontoada em cubículos e, na maioria das vezes, distante da região central, onde se concentram os serviços de saúde, educação e lazer.

Não dá para resolver o problema sem antes admitir que esse déficit não vem de um terremoto ou um furacão. A crise é fruto de políticas sistêmicas de desigualdade social e elitismo. E não é de hoje. No começo do século 20, o centro do Rio de Janeiro era recheado de cortiços – tipo de habitação precária que marcou a transição do período escravocrata para a jovem República. O então prefeito Pereira Passos foi convocado pelo presidente Rodrigues Alves para implantar uma grandiosa reforma urbana (lembremos que o Rio era o Distrito Federal) baseada em dois princípios: saneamento e modernidade.

Além de um cuidado inédito com água e esgoto, surgiram as grandes avenidas, os lampiões foram substituídos pela eletricidade e edifícios suntuosos saíram do chão. Um projeto de “cidade linda” que não era para todo mundo. Casebres e gente miserável destoavam nesse cartão postal, e os cortiços foram demolidos sem dó – fazendo com que a reforma ganhasse o apelido de “Bota Abaixo”. Essa limpeza social do centro expulsou os mais pobres para os morros que circundam o Rio, privando-os das melhorias na rede de esgoto e no abastecimento de água – e dando impulso à favelização carioca.

Aqui no século 21, a especulação imobiliária segue de mãos dadas com o descaso governamental. Por incrível que pareça, no Brasil há mais casas sem gente do que gente sem casa. São quase 8 milhões de imóveis abandonados (3) – 80% deles em áreas urbanas. Proprietários largam prédios vazios, às vezes por décadas, esperando uma valorização que pode vir com um metrô no bairro, um shopping ou outras benfeitorias. É na direção desses fantasmas de concreto que miram os movimentos populares organizados.

Mas é também a esses locais que chegam os desorganizados, que muitas vezes não conseguem se estabelecer em segurança num prédio que está carente de reformas. Um exemplo disso aconteceu em maio de 2018, quando um curto-circuito em um sistema elétrico improvisado provocou um incêndio em um edifício ocupado irregularmente no Largo do Paissandu, em São Paulo. O prédio desabou e sete moradores morreram.

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Tem jeito?

Claro que tem. Desde os anos 1980, o país possui um ordenamento jurídico urbanístico avançado. O artigo sexto da Constituição diz que a moradia é um direito que o Estado precisa garantir a todo cidadão. Desde 2001, o Estatuto da Cidade trata da função social do imóvel (o direito a ele deve atender ao bem coletivo), visando a uma gestão mais democrática dos municípios. Falta é vontade política de fazer acontecer.

E visão para se tocar de que a hora é agora. Com a pandemia, erguer e reformar imóveis para a população mais pobre poderia fazer parte de um “New Deal” – conjunto de medidas implantado por Franklin D. Roosevelt, presidente dos EUA de 1933 a 1945 – para ressuscitar a economia. Mobilizaria construtoras, geraria empregos, além de prover mais condições para o isolamento social. Infelizmente, não temos um Roosevelt na presidência.

Também não basta ter um teto em cima de cada um dos quase 210 milhões de brasileiros. Segundo o Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU, moradia adequada é um lugar salubre, seguro, com boa localização e disponibilidade de serviços em seu entorno. Daí vem um dos pontos críticos do Minha Casa, Minha Vida. O projeto se concentrou em produzir novos conjuntos habitacionais, mas colocou muitos em regiões periféricas. Ter uma casa com privada e luz elétrica é bom, mas a situação continua precária se você tem de viajar três horas até o emprego, se não tem um posto de saúde próximo, uma escola, um mercadinho, parque, Sesc…

Uma política habitacional consistente precisa combinar diferentes estratégias. Além de construir casa onde não tem, os governos precisam melhorar o que já existe: urbanizar favelas e reformar cortiços. Precisam ainda avançar na regularização de assentamentos irregulares. Está na lei, a 11.977/2009, que estabelece “a ampliação do acesso à terra urbanizada pela população de baixa renda, com prioridade para sua permanência na área ocupada”. Essa legislação prevê o Estado intermediando conflitos entre moradores e antigos donos, e ainda dá prioridade à mulher no direito à posse.

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Outro caminho é a locação social. Nesse sistema, o governo reforma edifícios desabitados e os coloca para alugar por um valor acessível às pessoas de baixa renda. É uma opção, aliás, que rende parcerias com a iniciativa privada. Nova York, por exemplo, é uma referência nesse tipo de locação com subsídio. No Bronx, o conjunto habitacional Arbor House tem 124 apartamentos construídos por um consórcio privado num terreno doado pela prefeitura. A contrapartida é alugar por preços abaixo da média, e só para trabalhadores pobres cadastrados – gente que estava à beira do despejo em suas antigas residências.

Lei para tudo isso, existe. O Brasil só não faz a lição na hora de colocar em prática. Aqui, a política habitacional – excetuando iniciativas pontuais – sempre foi voltada para aquecer o mercado imobiliário. Mas é preciso que os chefes do Executivo – seja na União, Estados ou municípios – se lembrem de que políticas públicas existem justamente para atender à população de baixa renda. As classes média e alta se viram bem com a oferta formal do setor de imóveis. São elas, afinal, que a mão invisível do mercado costuma alcançar. Não os personagens de Adoniran.

***

Fontes 1. Fundação João Pinheiro. 2. Estimativa da População em Situação de Rua no Brasil. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). 3. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD. IBGE, 2015.

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