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Nxivm: a irmandade que prometia ajuda, mas escravizava mulheres

A promessa era auxiliar jovens profissionais a entrar no mercado de trabalho. Mas a realidade era outra: lavagem cerebral, rituais sinistros e até escravas – marcadas a ferro quente.

Por Barry Meier, do New York Times (tradução: Bruno Garattoni)
Atualizado em 7 abr 2022, 07h32 - Publicado em 19 dez 2017, 13h42

Em 1998, o empresário americano Keith Raniere montou a Nxivm (pronuncia-se nécsium) para fornecer cursos de aperfeiçoamento profissional a executivos. Mas a organização acabou se transformando numa seita, com rituais secretos, castigos, ameaças e chantagens contra seus membros – em especial as mulheres. Entre elas, as duas herdeiras da multinacional de bebidas Seagram, que supostamente transferiram US$ 150 milhões para o grupo (o dinheiro teria sido usado para fazer investimentos, comprar terrenos, um jato e pagar despesas jurídicas).

As práticas do culto foram reveladas, no final de 2017, graças a uma investigação do The New York Times, cuja reportagem você lerá a seguir.

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Cinco mulheres foram até uma casa. Estavam lá para ingressar numa irmandade secreta que, haviam dito a elas, tinha como objetivo o empoderamento feminino.

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Para que fossem aceitas, elas tiveram que fornecer fotos nuas, ou outras informações comprometedoras, a sua recrutadora – ou “Mestra”, como era chamada. Também foram advertidas de que, se elas revelassem a existência do grupo, esse material seria divulgado.

As mulheres, todas entre 30 e 40 anos de idade, estavam entrando numa organização chamada Nxivm, que é sediada em Albany, no Estado de Nova York, e tem sucursais espalhadas pelos EUA, no Canadá e no México.

Sarah Edmonson, uma das cinco, achou que iria receber uma pequena tatuagem como parte do ritual de iniciação. Mas não estava preparada para o que aconteceu a seguir. Cada mulher teve de tirar a roupa e se deitar numa maca, enquanto as demais seguravam suas pernas e braços. Uma alta oficial da Nxivm a instruiu a dizer: “Mestra, por favor me marque, será uma honra”. Então, uma médica usou um cauterizador para queimar um símbolo de 5 centímetros nos quadris da iniciada, um procedimento que levava de 20 a 30 minutos. Gritos abafados e o cheiro de carne queimada preencheram a sala por horas. “Eu chorei o tempo inteiro”, conta Sarah. “Era como se eu tivesse saído do meu corpo.”

Estima-se que 16 mil pessoas tenham feito cursos oferecidos pela Nxivm. Segundo ela, seu treinamento elimina barreiras psicológicas e emocionais, levando a pessoa a um nível maior de bem-estar. A maioria dos participantes assiste a alguns workshops, como os “Programas de Sucesso Executivo” do grupo, e para por aí. Mas alguns mergulham mais fundo, e abandonam empregos, famílias e amigos para se tornarem seguidores do líder da Nxivm, Keith Raniere, 57 anos, que é conhecido pelos membros como “Vanguard” (vanguarda, em inglês). Segundo ex-integrantes da organização, Raniere manipula suas seguidoras, faz sexo com elas e as força a manter dietas rigorosíssimas, quase passando fome, para que fiquem muito magras, biotipo que considera atraente.

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Sarah denunciou a médica osteopata Danielle Roberts, que marcou o corpo dela com o cauterizador, ao Departamento de Saúde de Nova York. O governo decidiu não investigar o caso, alegando que Roberts não estava atuando como médica quando fez a marca. Sarah também procurou a polícia, junto com duas ex-participantes do grupo, mas as autoridades não aceitaram sua queixa criminal, pois o procedimento teria sido consensual.

O Departamento de Saúde também recebeu denúncia contra Brandon Porter, outro médico pertencente à Nxivm. Como parte de uma “experiência”, Porter teria exibido vídeos violentos a duas mulheres, enquanto as filmava e monitorava suas ondas cerebrais com um aparelho de eletroencefalograma. As cobaias dizem que não foram avisadas sobre o teor dos clipes, que incluíam cenas de mulheres sendo mortas e desmembradas. Depois de investigar o ocorrido, as autoridades concluíram que os atos de Porter não podiam ser enquadrados na definição de “más práticas médicas”, e arquivaram o caso.

Uma mensagem de texto enviada por Raniere, o líder do grupo, a uma seguidora dá pistas sobre o significado do símbolo [queimado no corpo das mulheres]. “Não era para ser as iniciais do meu nome, mas mudamos um pouco, para que se torne uma reverência”, escreveu ele. “Se fossem as iniciais do Abraham Lincoln, ou do Bill Gates, ninguém se importaria.”

Sarah, que mora em Vancouver, diz que ficou muito animada quando Lauren Salzman, a “mestra” do grupo, chegou à cidade para organizar workshops. Durante a visita, Lauren disse a ela que tinha algo “realmente incrível” para compartilhar. “É meio estranho, e altamente confidencial, e para que eu te conte você precisa me dar alguma informação pessoal [comprometedora] como garantia.” Sarah escreveu uma carta revelando indiscrições, e então Lauren contou sobre a sociedade secreta.

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“Eu chorei o tempo inteiro. Era como se eu tivesse saído do meu corpo”, afirma Sarah, uma ex-participante que passou pelo terrível ritual de iniciação – com um símbolo queimado na pele. (Estevan Silveira/Superinteressante)

Segundo ela, o grupo havia sido formado com o objetivo de fazer o bem, e poderia crescer a ponto de influenciar as eleições. Seus membros tinham de superar fraquezas que, segundo Lauren, eram comuns nas mulheres, como o caráter excessivamente emotivo, a incapacidade de manter promessas e a tendência a se vitimizar. A submissão e a obediência seriam ferramentas para alcançar esse objetivo. A irmandade era composta de círculos, cada um chefiado por uma Mestra, que deveria recrutar seis “escravas”. Com o tempo, as escravas poderiam recrutar suas próprias servas. “Ela fez aquilo parecer um programa de treinamento para mulheres”, diz Sarah.

Durante o processo, as iniciadas eram obrigadas a enviar mensagens de texto desejando bom-dia e boa-noite para a Mestra [à qual se referiam, apenas, pela letra M]. A Mestra enviava mensagens com uma interrogação, e elas tinham 60 segundos para responder dizendo: “Pronta, M”. Segundo duas ex-participantes, quem falhasse sofria punições, incluindo jejum e castigos físicos.

Em março de 2016, Sarah foi a uma cerimônia de iniciação na casa de Lauren. Depois de se despir, ela foi levada até um recinto iluminado por velas, onde ela tirou a venda e viu as outras escravas de Lauren pela primeira vez. Depois as mulheres foram para outra casa, perto dali, onde foram marcadas.

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A Nxivm cresceu ao longo do ano, com escravas ingressando em vários círculos. Elas tinham de adicionar informações e arquivos comprometedores, todos os meses, em contas do Dropbox, e alcançar uma meta de recrutamento de novas escravas. Mais ou menos nessa época, Catherine Oxenberg descobriu que sua filha tinha sido iniciada na sororidade. “Foi de revirar o estômago”, diz Catherine, que é atriz e nos anos 1980 estrelou a novela americana Dynasty. Ela já tinha percebido que a filha India, de 26 anos, estava extremamente magra. A garota disse à mãe que não menstruava havia um ano, e seu cabelo estava caindo. Catherine confrontou a filha, que defendeu as práticas do grupo. “Ela me disse que aquilo era formação de caráter”, conta.

Da pirâmide à seita

“Keith Raniere é um ativista, cientista, filósofo e, acima de tudo, um humanista”, afirma o documentário Acender o Coração, produzido pela Nxivm. Antes de criar o grupo, Raniere montou uma empresa chamada Consumers Buyline, que oferecia descontos em produtos de supermercado. Na década de 1990, o negócio foi investigado por autoridades de vários Estados, que constaram tratar-se de uma pirâmide financeira. Raniere e seus sócios fizeram um acordo, e fecharam a empresa.

Na Nxivm, ele se transformou num ensinador new age, com cabelos compridos e falas típicas de guru. “Os seres humanos podem ser nobres”, diz no site do grupo [atualmente fora do ar].

“A questão é: nós estamos dispostos a fazer o que é necessário?”. Segundo ex-membros, ele costuma dormir durante o dia, e sai durante a noite para jogar vôlei ou fazer caminhadas com seguidoras. Várias mulheres o descrevem como afável, engraçado e bom ouvinte. Outras dizem ter visto seu lado ruim. A Nxivm entrou na Justiça contra vários ex-membros, alegando quebra de confidencialidade.

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As informações sobre o grupo secreto foram reveladas pelo empresário americano Frank Parlato, que montou um site para publicá-las. Parlato está sendo processado por Sara e Claire Bronfman, que são herdeiras da multinacional de bebidas Seagram e membras da Nxivm. Elas contrataram Parlato como consultor, mas alegam que ele roubou US$ 1 milhão. Parlato teria publicado as informações como uma forma de retaliação.

Com os vazamentos, o pânico começou a se alastrar dentro da Nxivm. Escravas receberam ordens de deletar mensagens de texto e apagar documentos. Várias pessoas decidiram sair do grupo. Uma delas foi Soukina Mehdaoui, 25 anos. Ela diz que as mulheres do seu círculo não eram marcadas, e que ficou apavorada ao saber da prática. Resolveu deixar a Nxivm, mesmo temendo possíveis represálias, como um processo judicial ou a divulgação de informações pessoais dela. Quando foi se despedir de Raniere, ele pediu que ficasse.

“Você acha que eu sou mau? Eu não concordo com abusos”, teria dito o líder, para depois acrescentar que a Nxivm “dá ferramentas para que as mulheres recuperem seu poder”.

Nos últimos meses, a Nxivm entrou na Justiça contra Sarah Edmonson e duas outras ex-participantes. Ela diz que está tentando se recuperar da experiência, e retomar sua vida. “Não existe um manual de instruções que ensine a deixar uma seita”, diz.

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Atualização: Após a publicação desta reportagem nos EUA, e sua consequente repercussão, a polícia de Nova York finalmente decidiu investigar a Nxivm. Em outubro de 2020, Keith Raniere foi condenado a 120 anos de prisão. 

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