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O arquiteto que queria transformar o Rio num imenso viaduto habitado

Conheça esse e outros antecedentes históricos de The Line: a megacidade de 170 km que a Arábia Saudita quer construir no meio do deserto.

Por Bruno Vaiano Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
12 jul 2024, 14h00

Texto: Bruno Vaiano | Design: Yasmin Ayumi

Em 2022, o príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Mohammed bin Salman, deu início à construção de uma cidade planejada chamada The Line. “A Linha.”

Caso saia do papel, essa obra faraônica consistirá em dois arranha-céus gêmeos de 500 m de altura – o que os tornará, juntos, a 12ª construção mais alta do mundo. Eles terão 200 m de largura cada um e se estenderão por 170 km; mais ou menos a distância entre São Paulo e Campos do Jordão.

Entre os dois, haverá um vão colossal. Ali dentro, um cenário de Blade Runner: jardins suspensos, passarelas cortando o céu e a sensação de que não há terra firme – apenas andares e mais andares de concreto e aço.

Por fora, mal se verá o prédio: uma fachada espelhada vai refletir com tal perfeição as dunas e o céu que um desavisado poderia trombar com a muralha pensando que o deserto continua. Não há ruas, e carros são proibidos: todos os deslocamentos de longa distância dependem de uma única linha de metrô subterrânea.

O objetivo é que essa cidade distópica seja autossustentável. Em tese, será possível nascer e morrer lá dentro, usando energia elétrica de fontes renováveis gerada no próprio prédio e seus arredores. O plano atual é construir “só” 2,4 km para abrigar 300 mil pessoas até 2030, o que dá 2% da meta final (o objetivo original logo se provou impossível: deixar tudo pronto até 2030).

Na estimativa mais pessimista, a “cidade” inteira sai US$ 1 trilhão e só a construção exige 460 mil operários. Quando estiver pronta – caso fique pronta –, The Line terá espaço para 9 milhões de pessoas, o equivalente a 25% da população saudita.

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Se saírem do papel, os arranha-céus gêmeos terão 170 km de comprimento e 500 m de altura.

Ilustração vetorial de um mapa apontando a localização do The Line entre Egito e Arábia Saudita.
(Design: Yasmin Ayumi/Superinteressante)

Nas imagens de satélite mais recentes do Maps, que já datam de 2024, vê-se apenas a silhueta na areia: a área da construção está demarcada e as escavações começaram, mas não há nada do prédio em si – apenas escritórios e outras estruturas de apoio rodeando o canteiro de obras.

The Line é a parte mais ambiciosa de um plano maior chamado Neom. Trata-se de um esforço da monarquia para urbanizar um pedação de deserto na província de Tabuk, de modo a diversificar a economia da Arábia Saudita e torná-la menos dependente do petróleo. Tabuk fica na fronteira com a Jordânia, e é separada da Península do Sinai, no Egito, por um estreito braço do Mar Vermelho, o Golfo de Aqaba.

Além da Linha em si, o Neom inclui um distrito industrial flutuante em forma de octógono, uma pista de esqui a céu aberto em pleno deserto, um arranha-céu de 450 m enterrado no chão, um resort de luxo, gigantescas usinas de dessalinização de água e um aeroporto ligando tudo isso ao resto do mundo.

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Várias dessas construções já estão atrasadas há quase cinco anos, e autoridades sauditas desalojaram violentamente mais de 20 mil nômades da etnia Huweitat para dar lugar às obras – pelo menos quatro manifestantes que resistiram ao despejo acabaram assassinados ou condenados à morte.

Colagem abstrata de elementos arquitetônicos.
(Design: Yasmin Ayumi Fotos: Getty Images e Reprodução/Superinteressante)

Embora um edifício dessa escala seja inédito na história humana – nunca houve uma construção simultaneamente tão longa e alta –, a ideia de cidades lineares é muito mais antiga do que Bin Salman.

Entre o século 19 e a 2ª Guerra, vários urbanistas mundo afora propuseram a organização artificial em eixos como uma alternativa utópica às cidades comuns, com centro e periferia. Imaginar cidades ideais foi uma reação a todos os problemas de higiene, desigualdade e superpopulação das metrópoles europeias após a Revolução Industrial.

A ideia de forçar uma população a crescer ao longo de uma linha parece surreal hoje, mas soava possível no clima cultural dessa época. De um lado, os filósofos positivistas acreditavam na supremacia da ciência e da racionalidade. Do outro, os planejadores soviéticos sonhavam em diagramar suas cidades artificialmente, com a mesma precisão que queriam guiar a economia.

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Políticas públicas higienistas demoliam cortiços, alargavam ruas para torná-las mais iluminadas e arejadas e desalojavam moradores pobres dos grandes centros para construir edifícios públicos suntuosos – caso do prefeito carioca Pereira Passos, que reconstruiu o centro do Rio inspirado numa reforma similar em Paris.

Muitas cidades brasileiras carregam consequências boas e más desse período – que o digam as favelas cariocas, formadas nos despejos de Pereira Passos –, e experimentaram vários formatos além da linha.

O exemplo máximo é Brasília: com 2,8 milhões de habitantes, a capital de Lúcio Costa é a maior cidade linear do mundo, construída ao longo de duas vias perpendiculares. As habitações se distribuem no Eixo Rodoviário, vulgo “Eixão”, enquanto os prédios administrativos ficam no Eixo Monumental.

O Plano Piloto pode ser o capítulo mais famoso dessa história, mas não é o mais excêntrico. O caminho até lá teve aberrações tão megalômanas quanto o projeto saudita – como a ideia de transformar o Rio num único, gigantesco viaduto. E tudo começa na Espanha.

A Ciudad Lineal

Esse é o nome de um distrito periférico no leste de Madrid, construído em 1894 com base nas ideias do urbanista Arturo Soria y Mata. Visto no mapa, ele se destaca das redondezas: trata-se de uma avenida larga ladeada por duas fileiras de quarteirões e nada mais. É como se a via principal fosse um longo corredor de hotel – e as quadras, os quartos, distribuídos ao longo de sua extensão.

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Na concepção de Soria, tudo de essencial circularia pela superfície e o subsolo dessa avenida: pessoas, cavalos, charretes, bondes e as redes de eletricidade, água e esgoto (algo inovador numa época em que ter um banheiro em casa era luxo, não regra).

Ele queria que lojas, escolas, hospitais etc. se distribuíssem uniformemente ao longo da linha, para evitar a formação de centros privilegiados – e imaginou que as cidades lineares poderiam crescer indefinidamente, gerando uma rede de artérias habitadas para interligar o país.

Alguns anos mais tarde, em 1º de outubro de 1910, o New York Times publicaria um texto sobre o lançamento do livro utópico Roadtown, de Edgar Chambless. Esse escritor deu um upgrade na ideia de Soria e concebeu algo já perfeitamente reconhecível como a obra na Arábia Saudita.

Nas palavras do jornal, “sua cidade se estenderia por quilômetros e quilômetros de casas interligadas, sobre uma ferrovia monotrilho elétrica silenciosa e sem poeira. (…) Estas casas teriam dois pisos e teriam na cobertura um espaço de lazer ou passeio contínuo”.

Colagem abstrata de elementos arquitetônicos.
(Design: Yasmin Ayumi Fotos: Getty Images e Reprodução/Superinteressante)
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Corta para a URSS. Em 1930, Stálin realizou um concurso entre arquitetos soviéticos para projetar Magnitogorsk – ao pé da letra, “cidade da montanha magnética”. Esse polo de mineração na cordilheira dos Montes Urais foi construído nos arredores de uma montanha que, fazendo juz ao nome, é composta majoritariamente de ferro.

Em linha com o espírito da época, o candidato Ivan Leonidov propôs uma cidade linear, com quarteirões modulares que permitiriam expandi-la indefinidamente. A ideia é que cada operário da siderúrgica morasse no quarteirão mais próximo possível do local que ocupava na linha de produção (a usina seria construída em prédios paralelos à cidade).

Um lado peculiar dos urbanistas soviéticos é que muitos deles eram contra… a urbanização. Um grupo de teóricos chamados desurbanistas considerava o aperto e a poluição das cidades insolúvel. Mikhail Okhitovich propunha eliminar a diferenciação entre zona rural e cidade, organizando a população ao longo de (é claro) linhas. Cada trecho dessas linhas misturaria indústria, agropecuária e comércio – de modo que ninguém precisasse caminhar por mais de dez ou quinze minutos para chegar ao trabalho ou à farmácia.

Ideias parecidas pipocavam no Ocidente. Le Corbusier, um influente arquiteto francês, era fascinado por comunidades isoladas do mundo externo, arejadas e afastadas entre si, como freiras em um convento ou a tripulação de um transatlântico.

Essa ideia de condomínios-formigueiro se tornou realidade em várias cidades mundo afora. No Brasil, Niemeyer idealizou o Copan (em São Paulo) e o Conjunto JK (em Belo Horizonte) com esse princípio em mente. Em diferentes graus, esses prédios misturam comércio, residências, restaurantes, escritórios etc.

Le Corbusier também concebeu urbes planejadas de vários tipos. Sua Cidade Radiante, que nunca saiu do papel, era uma rede de quarteirões idênticos, equipados com condomínios e arranha-céus pré-fabricados, pensada para substituir cidades comuns destruídas por guerras. Já no campo das coisas que rolaram na prática, houve Chandigar, capital de duas províncias indianas, que é uma espécie de Brasília oriental.

Os sonhos do francês, vale dizer, tiveram um capítulo carioca (e um bocado linear). Em 1929, Le Corbusier sobrevoou o Rio e ficou surpreso com a maneira como os bairros se distribuem em faixas estreitas entre as praias e os morros íngremes. Essa viagem lhe deu sua ideia mais excêntrica: a cidade-viaduto.

O arquiteto imaginou que o Rio poderia se tornar uma via expressa que serpenteasse pelo terreno acidentado, apoiada em pilares gigantescos, flutuando sobre a Mata Atlântica. Embaixo dessa via, ficariam pendurados apartamentos, lojas, escritórios, indústrias etc. Era mais uma encarnação da Roadtown de Chambless ou da Linha saudita, mas com carros em vez de trens.

Colagem abstrata de elementos arquitetônicos.
(Design: Yasmin Ayumi Fotos: Getty Images e Reprodução/Superinteressante)

Choque de realidade

O problema dessas e de outras cidades lineares, imaginárias ou reais, é que elas desrespeitam algo chamado rent bid theory. Ela prevê que a cidade cresce espontaneamente em círculos concêntricos, não em linhas. Isso acontece, grosso modo, porque o comércio exerce uma espécie de atração gravitacional.

Quando aparecem duas lojas em uma rua, a terceira tende a abrir na mesma rua, porque elas precisam aproveitar os clientes que já estarão por lá. Com três lojas, vêm quatro. Com quatro, vêm cinco. A circulação de pessoas e o volume de vendas se retroalimentam.

No portal ArchDaily, o arquiteto André Sette explica que isso gera um centro compacto, com imóveis menores, aluguéis mais caros, ruas mais cheias e um bocado de prédios (afinal, quando acaba o espaço, o jeito é empilhar as pessoas). Enquanto isso, as zonas mais distantes e baratas se tornam residenciais.

Mesmo cidades construídas na ponta do lápis acabam sucumbindo a essa distribuição orgânica. “Desde a fundação de Brasília, a população e suas diversas atividades atraídas para a cidade localizaram-se mais ou menos em qualquer lugar ao redor da cruz, geralmente ignorando a forma dominante do plano diretor”, escreve Michael Batty, pesquisador do University College de Londres.

“Isso sugere que as cidades têm um equilíbrio natural, que sempre vai emergir quando a população for capaz de tomar as suas próprias decisões sobre onde poderá viver, trabalhar e interagir.”

Brasília se tornou o futuro do pretérito; um vislumbre de como os arquitetos do século 20 imaginavam o século 21. Calhou que o futuro foi bem diferente. Os urbanistas de hoje advogam por cidades de uso misto, com comércio, serviços e residências misturados nas mesmas ruas, e preferência para pedestres, ciclistas e transporte público.

Para a segurança pública, o ideal são fachadas ativas – ou seja, com comércio e restaurantes em vez de muros e grades, que tornam a rua inóspita. Tudo bem diferente de Brasília, onde há prédios suspensos por pilares, uma malha viária árida, pensada para carros, e quarteirões (ou bairros inteiros) dedicados a apenas um tipo de ocupação.

The Line até tenta incorporar alguns preceitos do urbanismo contemporâneo – como a preferência por transporte público e fontes de energia renováveis. Mas o projeto saudita ignora tudo que o século 20 ensinou sobre o crescimento das metrópoles. Cidades são vivas como seus habitantes, tentar espremê-las em uma linha reta é um ato totalitário: enquanto o mundo tiver três dimensões, ninguém aceitará se relegar a duas.

Fontes textos “The Line: cidades lineares não fazem o menor sentido”, “O que são cidades lineares” e “Clássicos da Arquitetura: Ville Radieuse”, no portal ArchDaily, artigo “The linear city: illustrating the logic of spatial equilibrium”, de Michael Batty; texto “Ivan Leonidov’s competition proposal for the town of Magnitogorsk (1930)” e “Mikhail Okhitovich and the Disurbanism” no site Socks; texto “Roadtown, a new idea”, no New York Times; texto “Notes on disurbanism” no site Honi Soit; artigos “Um Rio de Janeiro linear? As referências soviéticas no debate urbanista carioca entre os anos 1930 e 1940” de Guilherme Bueno e “O utopista e a autopista: os viadutos sinuosos habitáveis de Le Corbusier e suas origens brasileiras (1929-1936)”, de Gilberto Flores Cabral.

Colagem abstrata de elementos arquitetônicos.
(Design: Yasmin Ayumi Fotos: Getty Images e Reprodução/Superinteressante)
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