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O bem e o mal do estrangeirismo

Rooftop, insight, approach… O Brasil parece cada vez mais inclinado a trocar seu vocabulário todo por termos em inglês. Mas a adoção de palavras de origem estrangeira não tem nada de nova: é tão antiga quanto a capacidade do Homo sapiens de falar, e fundamental para a própria evolução das línguas. Só uma dica: use com moderação.

Por Alexandre Carvalho
18 mar 2022, 09h33

Texto Alexandre Carvalho Design e colagem Carlos Eduardo Hara Edição Alexandre Versignassi

O terror dos puristas da língua em Portugal é um youtuber nascido e criado no Engenho Novo, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro: Luccas Neto. Dono do canal infantil Luccas Toon, com 36,9 milhões de seguidores no YouTube, o carioca também é um hit entre as crianças portuguesas. A tal ponto que, em novembro do ano passado, o jornal lisboeta Diário de Notícias publicou uma matéria em tom xenofóbico, reclamando que os miúdos de lá estão cada vez mais a falar “brasileiro”, de tanto assistir Luccas e outros influenciadores daqui.

“Dizem ‘grama’ em vez de relva, autocarro é ‘ônibus’, rebuçado é ‘bala’, riscas são ‘listras’ e leite está na ‘geladeira’ em vez de no frigorífico”, alertou o jornal. “Os educadores notam-no sobretudo depois do confinamento – à conta de muitas horas de exposição a conteúdos feitos por youtubers brasileiros.”

Pais e educadores portugueses estão preocupados. Mas talvez não devessem levar o caso tão a sério. Afinal, mais do que o jeitinho de falar de sua antiga colônia, os lusos usam e abusam de palavras do francês e do inglês – e aí sem a mesma vergonha.

Um exemplo: enquanto, no trânsito daqui, temos em cada cruzamento uma placa indicadora que diz “Pare”, em Portugal a mesma sinalização diz “Stop”. E, lá como cá, o motorista entende muito bem o que deve fazer.

Isso porque o estrangeirismo – a influência de culturas do exterior sobre os costumes e as falas de um povo – é parte da evolução natural de qualquer língua. A forma como nos expressamos se modifica o tempo todo, e um mundo globalizado (fenômeno que não nasceu com a internet – é forte desde as Grandes Navegações, dos séculos 15 e 16) acelera esse intercâmbio linguístico. Tentar proibi-lo é como enxugar gelo. Mesmo assim, já teve político que tentou.

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Em 1999, o então deputado federal Aldo Rebelo inventou um Projeto de Lei para limitar o uso de termos estrangeiros no Brasil. Segundo o PL, toda vez que um meio de comunicação de massa, estabelecimento comercial ou peça publicitária usassem uma palavra de fora, teriam de colocar junto a tradução em português.

O projeto excêntrico, claro, não vingou. Até porque, quando um termo de qualquer país é incorporado amplamente nos nossos diálogos e textos, ele na prática deixa de ser estrangeiro. Vira nosso. Todo dicionário nacional está inundado de vocábulos que não brotaram nem em Portugal, nem no Brasil, mas que já são tão de casa quanto receita de caipirinha.

Ou com que palavra de origem portuguesa você pediria uma pizza? O nome dos discos redondos de farinha é um termo italiano cuja primeira menção registrada é do ano 997, na região que mais tarde se tornaria Nápoles. E provavelmente era um estrangeirismo lá também. Há controvérsias, como tudo na linguística, mas tudo indica que a palavra veio do grego pitta – denominação que usamos hoje para o pão sírio.

O mal do estrangeirismo nem está exatamente na substituição de termos, como rooftop no lugar de “terraço”. O problema maior é quando, no afã de pegar algo emprestado de uma língua de fora, deturpamos a lógica da nossa.

Um exemplo? Cada vez mais, brasileiros têm falado e escrito “eventualmente” no sentido de “mais cedo ou mais tarde”, “algo que em algum momento vai acabar acontecendo”… porque esse é o significado de eventually, o termo em inglês. Só que o nosso “eventualmente” sempre quis dizer outra coisa: expressa uma possibilidade, algo que pode ou não ocorrer, ou que acontece ocasionalmente.

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Erros semelhantes são o uso do verbo “realizar” no sentido de “perceber’’ e “aplicar” no lugar de “inscrever-se”. Cringe, usado para expressar “vergonha alheia” a partir de 2021, então, é um crime lesa-pátria. No caso, duas pátrias, porque o uso que se deu aqui nunca aconteceu lá fora. No Brasil, virou adjetivo (“ainn, isso é cringe”). Lá fora é verbo. E a expressão correta é cringe worthy (algo digno de constrangimento). Aí complica.

Os donos da língua

Se fosse possível que habitantes de uma região e seus descendentes nunca adotassem termos de outros povos, o Brasil, colonizado por Portugal, não falaria português. É que o vocabulário da nossa antiga metrópole nasceu de uma vitória brutal do latim, a língua oficial do Império Romano, sobre o lusitano, o idioma falado na Lusitânia, território que se estendia entre os rios Douro e o Tejo – e onde viviam os ancestrais dos portugueses desde o Neolítico (10.000 a.C. – 4.500 a.C.).

Sem a incorporação da cultura de uma sociedade (muito) mais poderosa, quando Roma conquistou as tribos lusitanas em conflitos que se estenderam até 138 a.C., os portugueses que colonizaram o Brasil ainda falariam essa língua protoindo-europeia (ou seja, que tem a mesma origem do persa, do hindi, do grego, do germânico e do próprio latim, mas característica o bastante para ter se diferenciado entre as Idades da Pedra e do Bronze).

Bom, isso se os lusitanos também permanecessem imunes à riqueza cultural muçulmana. A invasão da Península Ibérica pelos mouros, a partir de 711, deu uma contribuição enorme à língua falada até hoje por portugueses e brasileiros. Você esbarra com ela sempre que diz “almofada” (al-muhhadâ), “azulejo” (az-zulayj), “açougue” (as-sūq), “enxaqueca” (ax-xaqiqa)… Até no brasileiríssimo arroz com feijão temos dívida com os devotos de Alá: arroz é uma adaptação do termo árabe ar-ruzz.

Ou seja, quem mandou e desmandou na região que hoje abriga Portugal, em diferentes períodos, trouxe consigo seus modos e sua língua – que os avós dos avós dos avós… dos nossos colonizadores adotaram.

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Colagem de canja, xícara de chá, marimbondo e boca com batom.
Canja (palavra originária da Índia), Chá (China), marimbondo (Angola) e batom (França). (Carlos Eduardo Hara/Superinteressante)

O estrangeirismo, aliás, nem precisa de espada ou bomba para se estabelecer num território. Relações de comércio ou grande destaque internacional de um país acabam promovendo essa influência também. E é por isso que, antes que os Estados Unidos conquistassem admiração mundial, brasileiro gostava mesmo era de imitar francês.

E não era para menos. Durante o século 19 e o início do 20, a França foi um imenso império que incluía boa parte da África Central e Ocidental, o Sudeste Asiático e ilhas do Pacífico. Nas Américas, segue-se falando francês na do Norte (Canadá), na do Sul (Guiana Francesa) e no Caribe (Haiti, Guadalupe etc.)

A tradição cultural da França conquistou brasileiros de todas as classes sociais. Quando o Rio de Janeiro era nossa capital, a arquitetura francesa predominou nos edifícios fluminenses, marcados pelos estilos art nouveau e art déco. No centro da cidade, o Theatro Municipal foi inspirado na Ópera de Paris.

Então a língua, claro, também foi influenciada. Tanto que nossa Academia Brasileira de Letras, fundada por Machado de Assis em 1897, foi copiada da Académie Française – com seus 40 “imortais”.

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Quando pensamos em palavras de origem francesa na nossa língua, logo vêm à mente os termos relacionados à gastronomia: couvert, buffet, croissant, maionese (de mayonnaise), baguete (de baguette)… Mas essa influência deu muito mais ao nosso dia a dia. Para ficar em dez palavras muito comuns: batom (de bâton), moda (de mode), abajur (de abat-jour), camelô (de camelot), tricô (tricot), placar (placard), avenida (avenue), madame, vitrine (que são assim mesmo no original)… e o evidente Réveillon.

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Enfim, o Brasil era um país francófono, como boa parte do mundo. Até que a Europa foi destruída por duas Grandes Guerras no século 20, e os Estados Unidos tiveram espaço e dinheiro para lançar bombas atômicas culturais planeta afora. A antiga colônia de povoamento da Inglaterra tornou-se responsável por um quinto (depois um quarto) do PIB global, inventou o rock, levou todo o cinema (uma invenção francesa) para a Califórnia, criou um império de propaganda, venceu a corrida espacial e, em questão de décadas, virou uma superpotência exportadora de comportamentos e ícones.

Nos anos 1960, todo mundo queria assistir a filmes no drive-in e tomar milk-shakes. No século 21, vemos filmes no streaming (seja no notebook ou no home theater), devoramos cupcakes e bebemos nossas pints.

Mais: um estudo da Universidade de Brasília (1) colocou 280 voluntários diante de anúncios fictícios de calça jeans. À frente da foto de um casal, escreveram num deles o nome da marca em português, “Audácia”; no outro, com a mesmíssima foto, o nome traduzido para o inglês, “Audacity”. Resultado: os participantes identificaram maior valor de marca no anúncio com o nome estrangeiro – e se disseram dispostos a pagar mais pela mesma calça, desde que batizada em inglês.

É isso: cada era com seu colonizador cultural. Talvez o próximo da fila seja a Coreia do Sul. Pois é. O BTS, maior boy band do país, é tão popular globalmente quanto Elvis Presley foi nos anos 1950 e os Beatles nos 1960. Adolescentes decoram letras em coreano com a mesma voracidade que memorizam letras em inglês. Oscar já rolou (Parasita, em 2020). A série mais vista da história da Netflix, você sabe, é coreana (Round 6).

Facilita a comunicação? Então está valendo

Reparou como alguns dos exemplos deste texto não têm equivalente no Brasil? Uma palavra em português puro para drive-in seria “estacionamentoabertoondevocêassisteaumfilmeemteladecinemadedentrodoseucarro”. Melhor não.

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É natural também que invenções de outros países cheguem aqui com o nome que lhes deram em sua terra natal. Pense na pizza. Mas pense também em tecnologia. Se a palavra estrangeira vem a bordo de uma inovação tecnológica, a probabilidade de permanecer é relevante.

Quando falamos num “farol de LED” do carro, LED é a sigla inglesa para light emitting diode. É muito mais fácil usar o termo que já veio com a tecnologia do que dizer que nosso carro tem um farol que funciona com “diodo emissor de luz”.

Colagem de emojis, estátua de Clístenes (considerado o pai da democracia), poltrona e coquetel molotov.
Emoji (palavra originária do Japão), democracia (Grécia), poltrona (Itália) e guerrilha (Espanha). (Carlos Eduardo Hara/Superinteressante)

Antes que recursos sofisticados de segurança fossem obrigatórios nos carros brasileiros, como o anti-lock braking system (freio ABS), já falávamos inglês para usar nosso computador pessoal. Tente arrumar um equivalente para mouse (o acessório de informática, não o roedor). O dicionário Houaiss sabe dizer o que é: em versão resumida, um dispositivo dotado de um a três botões que, ao ser movimentado, provoca o deslocamento análogo de um cursor na tela de um computador.

Caramba, para que arrumar um termo que condense tanta informação se os americanos já criaram, com uma palavrinha só, um apelido simpático para o gadget? (E os mais antigos, com fio, pareciam ratinhos mesmo.)

Portugal resolveu a questão de um modo simples, sem inventar um termo próprio: traduziu literalmente o apelido inglês. Os portugueses mexem seus cursores usando um “rato”.

O estrangeirismo, de qualquer maneira, é sempre bem-vindo quando facilita a comunicação. Se eu disser para minha mãe, de 76 anos, que me atrasei para visitá-la porque fiquei preso num call com o C-level da empresa para decidir sobre performances e jobs, ela não vai entender nada – talvez desconfie que eu estivesse bebendo e agora estou falando enrolado.

Mas se eu explicar que demorei porque passei no shopping center para comprar um tablet para minha filha mais velha, a senhorinha vai entender na hora. Ela mesma tem um tablet – que não saberia chamar de outra coisa, porque já ganhou com esse nome.

E se, em vez de shopping center, eu dissesse que fui a um “centro de compras”, ela poderia ficar com a impressão de que fui a qualquer lugar de bastante comércio… menos a um shopping.

Outro exemplo bem atual é o anglicismo “testei positivo para Covid”. Se seguíssemos a norma culta nesse aviso infeliz aos familiares, o certo mesmo seria dizer “me submeti a um exame de Covid e o resultado foi positivo” (praticamente o dobro de palavras). Para que complicar?

Aliás, falando em coronavírus, não há brasileiro vivo que ignore o sentido de trabalhar em home office.

Cá entre nós, uma tradução para o português geraria dubiedade. Um “escritório em casa” soa como algo bem estabelecido, definitivo até, como o consultório de Sigmund Freud, que ficava na residência dele.

Já “home office” a gente entende como uma alternativa ao trabalho presencial numa empresa ou num cliente, que pode ser um arranjo provisório ou não. Na forma como o termo está, em inglês, ele é a definição perfeita desse arranjo mal ou bem sucedido. (Tente fazer com duas crianças pequenas correndo pelos cômodos.)

Os exageros no estrangeirismo tendem a passar, como as paletas mexicanas. Mas o uso que facilita a comunicação vai vingar sempre. E a língua portuguesa no Brasil – que os portugueses chamam pejorativamente de “brasileiro” – vai continuar se enriquecendo com palavras e expressões que não teriam como surgir por aqui.

EUA TAMBÉM NÃO ESCAPAM

Campeão de exportar palavras, os Estados Unidos também adotam termos imigrantes na sua fala do dia a dia. Confira nove exemplos de vernáculos usados no país que vieram de outras partes do mundo.

Kindergarten
Jardim de infância (alemão)

Sofa
Sofá (árabe; “suffa”)

Brunette
Morena (francês)

Ketchup
Ketchup (chinês; “kê-chiap”)

Tycoon
Magnata (japonês; “taikun”)

Cockroach
Barata (espanhol; “cucaracha”)

Volcano
Vulcão (italiano; “vulcano”)

Mammoth
Mamute (russo; “mamont”)

Buffalo
Búfalo (português)

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