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Por dentro da explosão demográfica dos amish

Famoso pela aversão à tecnologia e por viver como se ainda estivesse no século 18, o povo amish nunca foi tão numeroso.

Por Ana Prado
Atualizado em 5 ago 2019, 20h03 - Publicado em 5 ago 2019, 19h30

Não foi possível chamar a polícia depois que o atirador matou cinco crianças e se matou. Não havia telefone no local, pois tratava-se de uma escola amish, e a restrição ao telefone é um preceito da religião. O episódio, ocorrido na Pensilvânia em 2006, pôs em evidência a relação que esse povo que vive nos Estados Unidos e no Canadá tem com a tecnologia.

Com um estilo de vida simples e procurando se diferenciar o máximo possível do resto do mundo, os amish evitaram o telefone por muito tempo por razões práticas e simbólicas. Para eles, o aparelho é o contato direto com o lado de fora da comunidade e ainda pode roubar o tempo que seria dedicado à família.

Viver em uma sociedade separada é uma das bases da crença amish, segundo o seu entendimento do texto bíblico que diz: “não vivam como vivem as pessoas deste mundo, mas deixem que Deus os transforme por meio de uma completa mudança da mente de vocês” (Romanos 12:2).

Mas isso está mudando. “O telefone é um símbolo de como os amish têm sido afetados pelo seu próprio crescimento populacional”, explica Joseph Donnermeyer, sociólogo da Universidade Estadual de Ohio que estuda os amish. De acordo com um estudo realizado em 2012 pela sua equipe, a população amish nunca foi tão grande: mais de 250 mil pessoas. É mais que o dobro do registrado em 1989, e a tendência é que o número continue se duplicando a cada 20 anos. Em 2019, estima-se que a população esteja em 330 mil.

Como esse aumento tem levado muitas famílias a morar em locais distantes, seus líderes abriram algumas exceções e começaram a permitir outros meios de comunicação para mantê-las unidas. O telefone, antes proibido, permitiu que muitos amish pudessem continuar tendo o que lhes é essencial: o convívio em comunidade.

Carroças

Os amish começaram sua história em 1525, na Suíça, quando romperam com católicos e protestantes. Por serem contra o batismo de crianças, acreditando que a adoção de uma religião precisa ser uma escolha pessoal e consciente, ficaram conhecidos como anabatistas (palavra de origem grega para “rebatizados”).

Como era de se esperar, foram perseguidos na Europa e tiveram de fugir para a América do Norte. A primeira família chegou em 1737 e se estabeleceu na Pensilvânia. Em 1865, houve o primeiro cisma tecnológico amish. “Isso ocorreu basicamente por causa de diferenças no estilo de vida. Os progressistas permitiam, por exemplo, tirar fotografias, tocar instrumentos musicais e usar roupas mais caras”, explica Donnermeyer.

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As crenças amish se baseiam na Ordnung (“ordem”, em alemão), tradição oral baseada em passagens bíblicas específicas que contêm as regras de seu estilo de vida. Mas há muitas Ordnung distintas, graças a uma série de divisões que ocorreram entre eles ao longo do século 20. Por isso, os grupos podem diferir em relação ao estilo de vida.

“Eles estão continuamente mudando. Há cerca de 40 linhas distintas na América do Norte e cada uma usa diferentes tipos de tecnologia”, diz Donald B. Kraybill, do centro de estudos anabatistas da Elizabethtown College, na Pensilvânia.

Os Swartzentruber, por exemplo, são os mais radicais. Seus cultos religiosos são mais longos (podendo durar mais de quatro horas) e sua restrição à tecnologia, muito maior. Eles não podem usar água encanada ou aquecida – o que faz com que tomem banho com menos frequência que os outros grupos – e não usam qualquer forma de energia. Carros: proibidos. E as carroças, veículo símbolo dos amish, não têm retrovisores porque eles acreditam que não devem ter sua imagem registrada ou refletida em nenhum lugar.

Já grupos da chamada Nova Ordem permitem eletricidade em torno de sua casa (mas não dentro dela) e até têm aparelhos telefônicos, além de permitir fotografias. Alguns aspectos, porém, são comuns a todos, como as roupas em cores únicas, as famílias numerosas e o idioma adotado – um dialeto da Alemanha. Fora os assentamentos, que têm sempre 20 ou 30 famílias.

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(Rafael Coutinho/Superinteressante)
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Multiplicação humana

Em 1990, havia 179 comunidades amish no mundo. Em 2012, já eram 456 – cada uma com, em média, 20 a 35 famílias e uma hierarquia mínima de líderes eclesiásticos, composta de um bispo, um diácono e dois ministros. Hoje, os amish já são 270 mil só nos EUA.

Diferentemente de outras religiões, que crescem graças à conversão de novos membros, os amish não são adeptos da pregação. Poucas pessoas de fora se juntam a eles. “A menos que sejam solicitados, eles não costumam expressar sua fé em palavras para pessoas que nunca viram antes”, escreveram os pesquisadores Donald Kraybill, Steven Nolt e David Weaver-Zercher no livro The Amish Way (“O caminho amish”, sem versão no Brasil).

Muito desse crescimento, segundo Donnermeyer, vem da alta taxa de conversão familiar. Cerca de 90% dos filhos de famílias amish optam por seguir a religião dos pais e costumam se batizar logo aos 18 anos. Antes disso, eles podem experimentar a vida dos “ingleses” (como são chamados os não-amish) em um período chamado Rumspringa, quando é permitido beber, fumar ou até instalar sistemas de som com alto-falantes em seu buggy, tipo de carroça amish.

“É engraçado ouvir a música de um buggy cheio de adolescentes amish andando a 20 por hora”, diz Erik Wesner, autor de livros sobre essa cultura e criador do site Amish America. “Durante o Rumspringa, os pais não os proíbem de fazer coisas que normalmente proibiriam. É um período de ansiedade, de medo de que seus filhos se desviem”.

Logo após o batismo, eles casam e começam suas próprias famílias, quase sempre com mais de seis filhos – as crianças são vistas como uma bênção e famílias numerosas são altamente valorizadas. Os amish levam a ordem “crescei e multiplicai-vos” a sério e rejeitam todas as formas de controle de natalidade.

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Como preferem assentamentos com apenas algumas dezenas de famílias e a terra nem sempre é suficiente para todos, já que tudo que comem é produzido por eles próprios, o crescimento da população faz com que seja necessária a busca de novos lugares para se instalar. Hoje, já existem comunidades amish em cerca de 30 Estados americanos. Até em Nova York. Lá, são 47 assentamentos, 18 dos quais fundados depois de 2009.

Os amish e o mundo
Eles não sabem nada sobre o mundo exterior? Mito. Erik Wesner, do site Amish America, garante: “Conversamos sobre a maioria dos assuntos sobre os quais eu falo com as outras pessoas. Hoje mesmo li uma mensagem de um amigo amish que fez referência a um grupo de música dos anos 80. Eles também leem jornais – muitas vezes publicações amish, mas várias casas também assinam o jornal local e têm uma ideia do que está acontecendo do lado de fora das comunidades”.

Curiosamente, é a tecnologia que tem facilitado essa expansão. A grande responsável é a mecanização agrícola. Segundo Donnermeyer, a industrialização do campo está tomando o lugar de pequenos fazendeiros, sejam produtores de leite em Wisconsin ou fabricantes de tabaco em Kentucky.

Isso faz com que eles vendam suas propriedades, muitas vezes a preços baixos. Assim, os amish adquirem novas propriedades e têm mais espaço para crescer. Wisconsin tinha 17 assentamentos até 1990 – agora, tem mais de 45. Em Kentucky, o número dobrou. E essa expansão deve continuar: estima-se que um novo assentamento se forme a cada três semanas e meia no país.

“O pequeno agricultor americano está desaparecendo. Os amish geralmente são bons para a economia de uma região, pois acabam, muitas vezes, assumindo fazendas antigas que não estão mais em uso e revivendo algumas dessas áreas com outras atividades econômicas”, diz Wesner. Eles gostam do isolamento rural porque viver próximo a áreas urbanas intensificaria a interação com pessoas de fora da comunidade.

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Mas os amish não estão só no campo. É cada vez maior o número deles se estabelecendo em serrarias, lojas de móveis, tipografias e agências de turismo. “Na verdade, só cerca de 40% dos domicílios amish recebem sua renda primária da agricultura”, diz Kraybill.

Isso gerou novas necessidades comerciais que também tornam inevitável a absorção seletiva de certas tecnologias. A solução encontrada para usar o telefone, por exemplo, foi permitir a sua instalação em cabines públicas ou dentro de escritórios e estabelecimentos comerciais. Ter um aparelho telefônico fora de casa ajuda a manter a separação com o mundo de fora e desencoraja ligações desnecessárias.

Calculadoras e lanternas impulsionadas por baterias ou energia solar também são permitidas. Usar a energia da rede elétrica pública, porém, é proibido. Eles acreditam que ter muita confiança no poder público é uma armadilha que pode deixá-los muito perto do mundo.

Basicamente, o que define se uma tecnologia pode ou não ser usada por um amish é a influência que ela tem em seus valores, em seu lar. Assim, preferem não ter energia elétrica para evitar televisão, rádio, computador e outros dispositivos que poderiam levar ideias de fora para dentro da comunidade, contrariando o conselho bíblico.

Algo semelhante ocorre com os meios de transporte. Os amish até podem aceitar uma carona para trabalhar ou fazer compras na cidade, bem como tomar ônibus, trem ou avião para visitar parentes distantes. Ter um carro, porém, é outra história: isso daria uma sensação muito grande de liberdade e poderia incentivá-los a passear longe de casa.

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(Rafael Coutinho/Superinteressante)

Os amish e o capitalismo
Existem amish ricos e pobres. “Há os milionários e aqueles que mal têm o que comer”, afirma Wesner. Mas as casas e roupas seguem o mesmo padrão de simplicidade. “É possível perceber nos detalhes: algumas casas têm mais bens materiais e melhores brinquedos para as crianças; algumas pessoas têm cavalos melhores”. A grande diferença é que, embora seja capitalista em seus negócios, a comunidade amish se ajuda. Os mais ricos (geralmente, proprietários de negócios envolvendo a construção de móveis e casas) contribuem com quantias maiores quando há pessoas em necessidade.

Os “ingleses”

O contato de Erik Wesner com os amish começou de forma acidental. Em 2004, quando trabalhava para uma empresa vendendo livros de casa em casa no Estado de Illinois, ele se deparou com uma de suas comunidades. Como não havia qualquer tipo de fronteira física ou barreira que o impedisse de entrar, decidiu visitar algumas casas, “só por diversão”.

Acabou se surpreendendo com a boa receptividade que teve, especialmente em relação aos livros infantis bíblicos que trazia. “Há um estereótipo de que eles são desconfiados. Certamente algumas comunidades são menos abertas, mas muitos deles têm amigos de fora e podem convidá-los para refeições em suas casas”, explica.

“O amish é capaz de ver o mundo exterior e interagir com ele, mas prefere mantê-lo a distância. Um amigo amish que às vezes viaja para Nova York a trabalho certa vez me disse que gosta de visitar a cidade, mas apenas por um dia. Esse exemplo mostra que eles são curiosos sobre o mundo exterior, mas estão mais confortáveis em suas comunidades”.

Donnermeyer acredita que, embora possam se abrir para certas tecnologias, suas crenças fundamentais e organização social devem permanecer inalteradas. Wesner completa: “Algumas tecnologias são tão poderosas que provavelmente nunca serão aceitas nessas comunidades”. Outras serão assimiladas. Há 150 anos é assim. O povo famoso por viver como no século retrasado tem também seu próprio dinamismo.

PARA SABER MAIS
https://www.amishamerica.com

The Amish Way: Patient Faith in a Perilous World
De Donald Kraybill, Steven Nolt e David Weaver-Zercher. John Wiley & Sons, 2010.

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