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Tarja Preta: os segredos que os médicos não contam

Eles vendem remédio como quem vende parafuso. Conheça um pouco dos indigestos bastidores da indústria farmacêutica neste trecho do novo livro da SUPER.

Por Marcia Kedouk
Atualizado em 31 out 2016, 19h02 - Publicado em 8 jul 2016, 18h00

“Nós não podemos esperar que os médicos perguntem, temos de chegar lá e dizer na frente deles. Jantares, programas de educação médica continuada, consultoria- tudo isso funciona muito bem, mas não se esqueçam do cara a cara. É aí que precisamos estar, segurando a mão deles e sussurrando em seus ouvidos.”

“Nada deixa um médico mais interessado num remédio do que um estudo. Use o poder do estudo para abrir portas, mas não perca muito tempo com isso e não diga que você pode conseguir um estudo para ele. Nós não temos muito dinheiro sobrando.”

“Se algum deles perguntar por dados adicionais, diga que estamos reunindo tudo, depois sugira que o médico coloque alguns pacientes em tratamento com a droga.”

Os diálogos que você acabou de ler estão no depoimento  que o cientista David P. Franklin deu à Justiça americana sobre como os promotores de venda e consultores médicos da farmacêutica Parke-Davis, comprada depois pela Pfizer, eram orientados a falar com os profissionais da saúde.

Franklin entrou na empresa em abril de 1996 e pediu demissão menos de três meses depois, principalmente por não concordar com práticas de promoção do remédio Neurontin. Ele gravou e registrou várias conversas e e-mails para comprovar as denúncias.

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O Neurontin foi lançado em 1994 como medicamento coadjuvante contra crises de convulsão em pacientes epiléticos que não respondiam bem a outros tratamentos. Era um mercado relativamente pequeno. Acontece que as vendas anuais do medicamento passaram de 97,5 milhões de dólares em 1995 para 2,7 bilhões de dólares em 2003- um crescimento de 2.700%. E não foi exatamente porque tivesse aumentado o número de doentes com esse quadro tão específico.

Segundo Franklin, a companhia contratava consultores médicos para atuar exclusivamente como representantes de venda e oferecer dinheiro a quem receitasse o medicamento e conseguisse influenciar o maior número de colegas a fazer o mesmo. Os consultores eram orientados também a dizer que estavam “envolvidos em pesquisas”, para passar maior credibilidade, quando na verdade só estavam envolvidos mesmo em engordar suas contas bancárias. Não havia estudos relevantes nem dados comprovados para divulgar.

No mundo ideal, consultores médicos trabalham em funções médicas, científicas, sem nenhum vínculo com departamentos de vendas. No mundo ideal, eles são treinados para oferecer informações técnicas (e verdadeiras) sobre os produtos da empresa para onde trabalham, de modo a ajudar os médicos nos consultórios.

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Mas o mundo real pode ser diferente. De acordo com o depoimento, a farmacêutica fornecia informações falsas sobre o medicamento, plantava pessoas na plateia de congressos para fazer perguntas sobre os benefícios do remédio, promovia medicamentos para usos não aprovados, dava dinheiro para que médicos permitissem a presença de representantes do laboratório nas consultas e ainda distribuía uns trocados para aqueles que fornecessem gravações de conversas com pacientes que estavam em tratamento com a droga. Eram US$ 50 por cabeça mais pagamentos de despesas gerais. Teve médico que mandou mais de 300 áudios, diz Franklin, embolsando US$ 15 mil na brincadeira. Segundo ele, essas gravações não serviram, na época, para compor nenhum estudo clínico. O negócio ali era incentivar os participantes a colocar mais pacientes em tratamento contínuo com o remédio. A conclusão da Justiça é que essas práticas tiveram potencial de induzir erro ou abuso nas prescrições.

Quando um remédio consegue registro no órgão regulador (Anvisa, no Brasil; FDA, nos EUA), o fabricante só tem permissão para promover a medicação para o tratamento indicado na bula. Mas o médico pode prescrever, por conta e risco, para uso off-label (fora da bula, em tradução livre), para qualquer condição, se analisar as evidências disponíveis e julgar adequado.

É que uma substância química costuma ter várias ações no organismo, boas e ruins. De repente, uma droga contra um tipo de câncer funciona para outro, um antidepressivo pode curar ejaculação precoce, um comprimido para tratar epilepsia se mostra eficiente para ataques de pânico.

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Acontece com a bupropiona, o princípio ativo de antidepressivos que promovem a circulação de dopamina no cérebro. Ela é receitada para combater a perda de libido causada por outra classe de antidepressivos, a dos serotoninérgicos, que bombam a serotonina. Estes últimos são os mais populares, tendo o Prozac (fluoxetina) e o Lexapro (escitalopram) na família. Já os próprios serotoninérgicos são muitas vezes receitados contra ejaculação precoce. O efeito deles na redução da libido pode ser benéfico para quem se afoba demais na cama, promovendo relações sexuais mais duradouras, desde que administrados na dose exata para evitar broxadas.

O caso mais famoso de remédio em que o efeito colateral passou a ser visto como o principal é o do Viagra. Os pesquisadores faziam testes com o princípio ativo da droga, a sildenafila, para tratar uma doença cardiovascular e perceberam que os voluntários relatavam ereções frequentes e duradouras, mesmo aqueles com impotência sexual crônica. Então os estudos caminharam nessa direção e a companhia entrou com pedido de aprovação no FDA para o tratamento de disfunção erétil.

Nos casos em que a droga já está no mercado, aprovada para outro fim, o laboratório precisa voltar uma casa e fazer testes específicos de eficácia e segurança das novas utilizações se quiser tirar proveito comercial delas. O processo leva tempo, custa dinheiro e nem sempre termina bem. Acontece, por exemplo, de os estudos mostrarem que o remédio não faz efeito para outros males ou, pior, que aumenta o risco de morte em determinados grupos de pacientes. Pode ser também que o trâmite da aprovação demore e saia quando a patente do produto estiver para expirar.

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Por conta disso, a indústria às vezes tenta pegar atalhos e aumentar, ela própria, o número de consumidores de seus comprimidos vendendo-os pelo efeito colateral. Escondida.

Receitar essas alquimias não tem nada de ilegal, como já dissemos. É parte da função de um médico. Esse poder que os doutores têm, por outro lado, atiça os laboratórios a dar-lhes mais agrados, começando o círculo vicioso. 

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Veja mais no livro TARJA PRETA, de Marcia Kedouk, já à venda:

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