A vida com óculos 2D
Tudo o que a neurocientista Susan Barry enxergava parecia feito de papel. Para mudar isso, ela precisou dar aulas ao próprio cérebro
Larissa Santana
“O mundo foi inflando aos poucos. O retrovisor do carro se projetava para fora do para-brisa. As árvores estufavam. As lâmpadas pairavam no ar.” A vida da americana Susan Barry começou a mudar dessa forma. Aos 48 anos, ela viu tudo ao seu redor ganhar formas diferentes das que conhecia. Até então, Susan enxergava o mesmo retrovisor, as mesmas árvores e as mesmas lâmpadas de um jeito peculiar: sem profundidade, completamente chapados. O motivo? Um estrabismo que teve aos 3 meses de idade. Seu cérebro não havia aprendido a coordenar o trabalho dos dois olhos, e por isso tinha dificuldade para processar dados como distância, posição ou tamanho dos objetos. Reconhecia altura e largura. Na opinião dos médicos, aquilo não tinha conserto. Os livros científicos diziam o mesmo, apoiados por um estudo vencedor do Prêmio Nobel sobre o assunto. Era uma tese tão difundida que a própria Susan – a essa altura uma neurocientista e professora de faculdade – a ensinava a seus alunos. Foi só por acaso que ela descobriu que havia, sim, uma solução: uma série de exercícios que ensinariam seu cérebro a ver tudo em 3D. E então o mundo começou a inflar. É o que Susan conta no livro Fixing My Gaze (algo como “Consertando Meu Olhar” em português), lançado em junho nos EUA.
Como é ver tudo em duas dimensões?
Significa viver sem a percepção de profundidade. O espaço parece não ter volume. Quando eu olhava para duas árvores, sabia que um tronco estava na frente do outro simplesmente porque o da frente tampava o de trás. Mas não percebia que havia um espaço vazio entre elas. Ou seja, o mundo era muito mais comprimido. A razão disso é que meu cérebro recebia informações conflitantes de cada um dos olhos, porque não havia aprendido a coordenar o trabalho dos dois. Por exemplo: se eu olhasse para o seu rosto agora com meu olho direito, o esquerdo estaria olhando para outra imagem, que precisaria ser ignorada pelo cérebro.
Por que isso aconteceu com você?
Quando eu tinha 3 meses, meus pais notaram que meus olhos estavam desalinhados. Era um estrabismo. O pediatra disse que eu poderia melhorar com o tempo, mas isso não aconteceu. Passei por duas cirurgias – aos 2 e aos 3 anos de idade – para que o músculo do meu olho direito se alinhasse ao do esquerdo. Não adiantou. O problema só foi resolvido quando operei novamente aos 7 anos. A essa altura, o meu cérebro já havia aprendido a receber informações diferentes de cada olho.
Você percebia isso?
Com todas as operações da infância, eu sabia que algo não estava bem. Mas meus olhos ficaram bastante alinhados depois da terceira cirurgia, então pouca gente sabia que eu era estrábica. Além disso, eu passava em todos aqueles testes de vista com letrinhas no consultório do oftalmologista, o que dava a impressão de que minha visão era perfeita. Mas algo me incomodava, e eu não sabia exatamente o quê.
Você sentia dificuldades no dia-a-dia, é isso?
Sim, algumas. Eu dirigia mal, por exemplo. Mas ninguém havia me dito que eu não tinha visão em 3 dimensões. Então não sabia que estava aí a razão da minha dificuldade para dirigir. Acabei planejando minha vida de forma a não ter que usar muito o carro. Eu vivia numa cidade pequena e podia fazer tudo andando, inclusive ir ao trabalho. E meu marido sempre foi tolerante quanto às escolhas de lugar para morar. Também nunca dirigia na estrada. Se tivesse de ir a um encontro à noite em uma parte da cidade desconhecida, eu provavelmente treinaria antes de ir, para não chegar atrasada ao compromisso. Eu também tinha problemas com esportes. Gostava de correr, nadar e jogar tênis, mas não competia. Eu até conseguia acertar a bola com a raquete sem problemas. O difícil era quando a bola vinha muito alta, porque eu tinha só o céu como referência – o que complica muito para quem não tem visão 3D. Mesmo assim, eu me virava bem.
Quando foi que você descobriu que enxergava em duas dimensões?
Quando estava na faculdade. Era uma aula de neurofisiologia, sobre experimentos em animais que tinham olhos cruzados. O professor disse que, se o sistema visual desses animais não se desenvolvesse normalmente, seu cérebro não teria capacidade de ver em 3D. Fiquei estarrecida. Pensei: “Eu tenho olhos cruzados! Isso significa que não tenho visão em 3D?” Fiz então diversos testes de visão tridimensional – e falhei em todos. Até aquele dia, nenhum médico tinha se dado ao trabalho de me falar sobre o tema. Foi então que fui a um novo médico e ele me disse “É, você realmente não enxerga em 3 dimensões. Mas isso não é nada de mais.”
Como você recebeu a notícia?
Decidi esquecer o assunto. Ainda não ligava meu problema com a dificuldade de fazer certas coisas, como dirigir. Não sabia que, além de carecer da visão 3D, meu cérebro recebia imagens conflitantes o tempo todo – o que tornava tudo mais difícil. Além disso, a literatura científica dizia que a visão estéreo [como se chama a visão em 3 dimensões] se forma durante um chamado período crítico no começo da vida – em geral, nos dois primeiros anos de idade. E que era impossível desenvolvê-la depois. Acreditei que esse era o meu caso. Depois que virei professora de neurobiologia, passei a ensinar a meus alunos essa noção convencional a respeito do período crítico. Até citava meu caso como exemplo perfeito dela.
Mas algo fez você notar que a tese não estava totalmente correta.
Sim, e foi um acaso. Aos 48 anos, procurei uma especialista em reabilitação visual, porque sentia que meu olhar estava ficando mais instável. Ela explicou que era por causa da alternância de imagens no meu cérebro e me deu exercícios que ajudariam a focar os dois olhos no mesmo objeto. A meta era só estabilizar meu olhar. Mas a prática dos exercícios acabou levando o meu cérebro a desenvolver a visão 3D.
Como?
Os exercícios mostravam para onde meus olhos deveriam apontar. Era bem simples. Por exemplo: introduza um fio em uma miçanga, de forma que a miçanga possa deslizar para a frente e para trás. Amarre o fio numa maçaneta e olhe para ele, focando os olhos na miçanga. Se você tem visão normal, verá duas imagens do fio indo e vindo em sua direção. Essas imagens se juntam na miçanga, pois seus dois olhos estão apontando para ela. Com esse treinamento, fui conseguindo aos poucos mudar o jeito de apontar os olhos para o objeto que eu focava. Até então, eu não podia ver em 3D porque não direcionava meus olhos para o mesmo lugar e ao mesmo tempo. Assim, ao tratar de um problema – a instabilidade – eu acabei curando outro, a visão em 2D.
Você teve algum problema para se adaptar ao mundo em 3 dimensões?
Passei a enxergar a profundidade de forma gradual, por isso pude me adaptar bem. No início, via em 3 dimensões apenas os objetos grandes. O volante do meu carro parecia flutuar diante de mim. Depois comecei a ver espaços entre as pessoas. Minha nova visão do mundo era mágica, encantadora. Um dia, por exemplo, saí do prédio da faculdade para almoçar. Nevava lá fora, e percebi que os flocos de neve eram pesados e volumosos. Eu podia ver cada floco em seu próprio espaço, caindo em câmara lenta. Eram centenas de flocos, formando uma chuva de neve em 3D. Fiquei tão alegre que me esqueci do almoço.
Seus hábitos mudaram?
Eu me distraía muito. Ficava parada olhando o espaço de ar entre as filas das carteiras dos meus alunos. Quando um estudante perguntava algo, eu apreciava suas mãos se movendo no espaço. E eu tinha de pensar comigo: “Ok, pare de olhar para a mão dele e preste atenção no que ele está perguntando!”
Os cientistas David Hubel e Torsten Wiesel ganharam o Nobel de Medicina em 1981 por várias descobertas relacionadas ao sistema visual, entre elas o chamado período crítico. Como receberam seu livro?
O dr. Hubel sempre esteve aberto à minha história. Seus estudos abriram um campo para entender como o cérebro processa a visão. Portanto, foram muito além do período crítico. Segundo ele, médicos e cientistas generalizaram demais os dados de seus estudos. Ele e o dr. Wiesel fizeram experimentos com gatos e macacos, e as condições de laboratório a que esses animais foram expostos não são iguais às condições das crianças quando desenvolvem olhos cruzados. É por isso que o dr. Hubel diz que os cientistas extrapolaram muito seus resultados.
Sua experiência com a visão 2D influenciou a decisão de virar uma neurocientista?
Em parte. Eu já me interessava pela área, mas aquela aula da faculdade me alertou para um fato: você não pode presumir que vê o mundo do mesmo jeito que os outros. Há diferenças entre cada cérebro.
Como foi encarar uma mudança que contrariava tudo o que você mesma tinha aprendido e ensinado?
Tive de reescrever minhas aulas. Passei a ensinar sobre como as sinapses [ligações entre os neurônios] podem mudar quando você aprende algo. E de novo adotei meu caso como exemplo – não mais como prova da existência do período crítico, e sim de que a comunicação entre dois neurônios pode melhorar se eles forem estimulados. Foi graças a esse estímulo que eu consegui fortalecer as sinapses dos neurônios ligados ao olho esquerdo e ao direito, simultaneamente. E, enfim, mudar o arranjo das conexões cerebrais.
Que conclusões você tira de tudo isso?
A mais importante é que o cérebro é flexível ao longo da vida. O cérebro da criança é provavelmente mais suscetível a mudanças que o do adulto, e o período crítico talvez seja a etapa de plasticidade máxima. Mas isso não significa que o cérebro não possa mudar depois para aprender novas habilidades. Talvez as pessoas possam se recuperar melhor de um acidente vascular cerebral, por exemplo. Nossa capacidade de reabilitação é muito maior do que pensamos.
Tudo questão de colaboração: para enxergar normalmente, Susan ensinou seus olhos a trabalhar juntos
A VISÃO EM 2D…
O problema surge por causa do estrabismo: o cérebro de quem é estrábico reconhece duas imagens diferentes, mas processa uma só de cada vez. O trabalho de “desligar” um olho para “ligar” o outro impede a colaboração entre ambos. Perdemos a capacidade de reconhecer dados como posição, distância e profundidade dos objetos.
…PASSA A 3D
Mirar em um único alvo: esse é o objetivo de exercícios como os que Susan fez. O treino só deveria deixar os olhos da americana mais alinhados, mas estimulou a coordenação das informações recebidas pela visão. Tudo graças a um reforço na comunicação entre neurônios, um processo chamado na ciência de potenciação de longo prazo.
– É americana e tem 55 anos.
– Dá aula na Faculdade de Mount Holyoke, em Massachusetts.
– É casada com um ex-astronauta da Nasa e tem um casal de filhos.
– Quando criança, adorava colecionar insetos e flores. Não é à toa que virou bióloga.
– Interessa-se por estudos da “dor fantasma” – aquela dor em um membro do corpo que persiste mesmo depois de o membro ser amputado.