Alguém governa o Universo?
Artigo sobre as leis do universo, que uns pensam que é pura ciência e outros acham que são revelações místicas como parte de um plano transcendental.
Paul Davies
Essa imagem de Albert Einstein recebendo do céu os segredos da Teoria da Relatividade é apenas uma alegoria. Mas há cientistas que acreditam na origem sobrenatural das leis da Física, como parte de um plano transcendental para o Universo
Quando o homem aprendeu a escrever o que lhe ia pela cabeça, descreveu pela primeira vez um sonho ambicioso: chegará o dia em que poderemos saber por que vivemos nesta Terra e descobrir o motivo de nossa existência e da existência do Universo. Alguns acreditaram possível chegar a esse conhecimento por meio de uma revelação mística: outros pensaram que a chave de tudo estaria na lógica e na razão. No mundo moderno, a maioria vê na ciência o caminho para alcança esse objetivo. No entanto, sempre fica alguma coisa sem explicação. A verdade que os pesquisadores imaginam ter alcançado sempre se revela enganosa uma quimera. Ainda assim, os cientistas não renunciam ao propósito de encontrar uma explicação definitiva para o mistério do surgimento do Universo.
E trabalham a partir de um pressuposto: para poder explicar a existência do Cosmo pela razão, é necessário que ele seja um ente racional. A ciência moderna tem suas raízes fincadas na Europa medieval e nasceu sob Supla influencia: dos filósofos gregos e da teologia judaica-cristã. Os primeiros convencidos do poder do raciocínio sistemático acreditavam que é possível descobrir os fundamentos do Cosmo mediante o pensamento lógico. Alguns, entre eles Pitágoras, pensavam que o Universo é matemático por natureza: assim, só seria necessário desenvolver e aperfeiçoar as matemáticas para poder explicá-lo completamente. De outro lado, a religião judaica trouxe a idéia de um deus transcendente, que criou o mundo e lhe impôs suas leis. Assim, a evolução do Universo, desde sua criação, faria parte do plano divino. Essa imagem de Deus como legislador todo-poderoso foi transmitida à doutrina cristal e dominou a cultura européia medieval, numa época em que a filosofia clássica foi esquecida. No século XIII, no entanto, o Velho Continente redescobriu Platão e Aristóteles, graças às traduções dos filósofos árabes; a mistura das duas concepções do Universo formou a base do novo pensamento ocidental.
Tomás de Aquino, que estudou em Colônia e se tornou famoso em Paris, aplicou ao estudo da ‘Teologia as rigorosas técnicas da geometria grega, com seus axiomas (princípios nãos demonstráveis, mas reconhecidos como certos) e teoremas (teses demonstráveis). A doutrina tomista imaginava Deus como algo perfeita e racional: ou seja, consciente. Esse deus havia criado o Universo como manifestação de sua inteligência superior. O essencial dessa doutrina é a idéia de que esse deus criador existe fora do tempo. Por isso suas leis são verdades eternas — algo parecido com o que pensavam os gregos a respeito de seus teoremos matemáticos. O deus de Tomás de Aquino é abstrato e está acima de nossa realidade. Apesar disso, sua concepção fundamentou o pensamento cristão durante muitos séculos e, portanto, também o pensamento europeu.
Todavia, quando Isaac Newton e seus contemporâneos do século XVII estabeleceram os fundamentos da Física, estavam convencidos de que com seus descobrimentos seguiam no caminho de Deus e de suas obras. Acreditavam firmemente que a ordem racional descoberta na natureza tinha origem na divindade. Tal concepção influenciou as gerações científicas seguintes, que mantiveram a crença de que as leis da natureza são eternas. O recurso à divina providência resolveu muitos problemas num tempo de grande fervor religioso, tal como era a época em que Newton viveu. Seu abandono deixou um grande vazio no pensamento moderno. De fato, se deixamos de acreditar que: as leis naturais são idéias de Deus, corremos o risco de transformar a ciência em alguma coisa enigmática, indecifrável. Ainda mais quando se considera que as leis da natureza não são, de modo algum, fáceis de entender. Pense, por exemplo, na simples lei da queda, dos corpos. Galileu Galilei só a compreendeu depois de realizar muitas experiências e observá-las cuidadosamente. E, quando formulou publicamente, enfrentou o ceticismo geral. O problema é que a maioria das pessoas não consegue enxergar intuitivamente que os corpos, pesados ou leves, aceleram do mesmo modo quando sob influência da lei da gravidade terrestre. Ela se esconde, com freqüência, atrás da resistência do ar, que nos impede de chegar ao verdadeiro fundamento da lei da queda dos corpos, quando não dispomos de minuciosos e complicados conhecimentos físicos e matemáticos.
“Gênios existem em todas as gerações, o que demonstra que a aptidão matemática está gravada nos genes humanos hereditários. Mas por quê?”
O físico americano Heinz Pagels falou de um código cósmico secreto para referir-se à dificuldade de compreensão da ciência. As leis da natureza estão formuladas numa espécie de escrita cifrada, daí porque não podemos percebê-las diretamente. A missão dos cientistas seria estudar esse código e decifrar as mensagens, o que só se consegue com uma equilibrada combinação de experiências e teoria. Pagels pensava que a experiência é uma consulta à natureza e que a cientista recebe respostas também codificadas. Por isso tem de decifrá-las e ordenei-las de forma racional. Se é assim, os cientistas ateus se encontram diante de novo problema. De onde vem, afinal, essa aptidão do homem para decifrar as leis da natureza” Se nossas qualidades intelectuais são o resultado de uma evolução biológica, tal como nossas qualidades corporais, pode-se deduzir que a capacidade: de decifrar as leis da natureza representa uma vantagem na luta pela vida. Mas é muito difícil de reconhecer isso. Costuma-se dizer que já é uma vantagem nessa luta a capacidade de desviar-se dos objetos que caem do alto, saltar sobre os riachos elo campo ou entender os ritmos naturais, como a sucessão das estações ao longo do ano. Mas essas habilidades não são conquistadas pelo cérebro, surgem de modo puramente intuitivo. E não são características apenas dos homens, pois muitos outros animais conseguem desenvolvê-las, embora não sejam capazes de entender nenhuma lei científica.
A capacidade de enfrentar tais situações está, simplesmente, arquivada no cérebro, graças às experiências anteriores em situações similares. Por exemplo, quando nos afastamos apressadamente do local em que vai cair uma árvore, não utilizamos os conhecimentos das leis da Física adquiridos pela pesquisa. É certo que as ciências naturais conseguiram êxitos extraordinários nos campos da Física atômica e da Astrofísica, mas não se pode dizer que alguém versado nos segredos do átomo ou nas estruturas de um buraco negro conseguirá sobreviver na selva com mais segurança. Nossos cérebros estão adequados de forma admirável para compreender os modelos e os princípios da natureza, precisamente aqueles campos que não têm a menor importância para a evolução biológica da espécie.
O mistério torna-se ainda maior se examinarmos a forma como se utilizam os conhecimentos científicos. A maior parte das nossas conquistas no campo das ciências exatas está formulada em linguagem matemática. Todas as leis fundamentais da Física podem ser escritas de forma resumida por meio de fórmulas numéricas. Mas a Matemática não nos foi dada pela evolução: é produto da inteligência humana superior. Surge das partes altamente desenvolvidas do nosso cérebro, o órgão mais complexo que conhecemos. Entretanto, apenas se supõe que as qualidades dele decorrentes sejam uma vantagem biológica para os homens. Em todo caso, não se pode desdenhar a importância da aptidão para o pensamento matemático nos dias atuais. Veja-se, por exemplo, a aparição esporádica de gênios, que nos surpreendem com suas capaci¬dades extraordinárias. Personagens desse tipo existem em todas as gerações, o que demonstra que a aptidão matemática esta gravada nos genes humanos hereditários. Mas por quê?
Nos últimos anos impôs-se, no campo da Física matemática, um objetivo prioritário: a unificação. Muitos físicos teóricos confiam em que todas as leis básicas da Física podem fundir-se em uma única superlei. Essa teoria pode ser apresentada por meio de uma breve formula matemática, suficientemente curta para ser pintada em uma camiseta. A partir dessa formu¬la, seria possível deduzir uma descrição científica de toda a natureza. O matemático Stephen Hawking estava imbuído dessa esperança quando colocou essa pergunta como título de sua conferência de ingresso na Universidade de Cambridge: “Está à vista o fim da física teórica!” Naturalmente, pode ser simples excesso de otimismo. Mas o certo é que nos três escassos séculos transcorridos desde Newton, a ciência pro¬grediu o suficiente para poder explicar com tecerias matemáti¬cas uma enorme quantidade de fenômenos da natureza. Muitos físicos crêem mesmo que já temos boas explicações para a maioria desses fenômenos.
Por exemplo, as teorias das quatro forças fundamentais, complementadas pela mecânica quântica, são confirmadas cada vez mais com novas experiências e observações. Com elas, podemos tornar compreensível não apenas o micromundo do interior de um átomo, mas também os gigantescos fenômenos cósmicos. Assim, pode-se dizer que a teoria física disponível atualmente compreende, ainda que de forma provisória, uma descrição exata do mundo, do muito grande ao muito pequeno. Al¬guém pode imaginar que as leis que regem o Universo são muito complicadas para nossa inteligência. Surpreendentemente, não é assim. É verdade que, segundo todas as aparências tais leis estão expressas em códigos e possuem uma enigmática profundidade. Mas são compreensíveis desde que utilizemos a Matemática, cujo grau de dificulda¬de permanece dentro da capacidade de compreensão da mente humana.
A feliz circunstância de que seja assim merece uma consideração mais aprimorada. E ela oferece uma visão surpreendente. Um físico-matemático estará preparado para a investigação básica depois de Vinte anos de estudo e formação. Por outro lado, a história da ciência demonstra que a maioria dos grandes avanços nesse campo foi conse¬guida por cientistas jovens. Ainda não chegados aos 30 anos (Newton e Einstein são os exemplos mais significativos). Os dois valores se completam. O tempo necessário para a preparação é apenas um pouco mais curto do que o período de maior produtividade da mente humana. Em outras pala¬vras, os homens alcançam ao mesmo tempo uma experiên¬cia matemática madura e a criatividade suficiente para colaborar na tarefa de decifrar os códigos do Universo.
Não se pode esquecer que a vida, o período de formação e o tempo de máxima atividade de uma pessoa são valores pura¬mente biológicos (a formação depende da capacidade física de aprendizagem). Todos os valores biológicos, por sua vez, derivam do processo da seleção natural e assim todos os homens estão capacitados para compreender os princípios científicos no mesmo tempo biológico. Pode haver pessoas que deixem de lado essas realidades, considerando-as desprovidas de importância e casuais.
Na minha opinião, essas reali¬dades indicam uma profunda relação entre nossa existência como seres racionais e a existência do Universo natural, com suas leis e sistemas. Com isso não pretendo negar que o Homo sapiens tenha algo especial; mas afirmo que a aparição do conhecimento, como um fenômeno do Universo, em um determinado lugar e em um determinado tempo concreto, não é um acontecimento casual, mas fundamental.
Chego a essa conclusão porque me parece claro que o conhecimento — o nível mais alto de desenvolvimento — está ligado à estrutura do mundo natural, a suas leis e suas partícu¬las–o nível mais baixo do desenvolvimento. O físico David Deutsch, da universidade de Oxford, destacou um aspecto surpreen¬dente nesta relação, ao dar conta de uma convivência extraordinária entre as leis matemáticas e as que regem a natureza. Suas idéias têm algo a ver com a teoria matemática e, portan¬to, não são muita fáceis de explicar. De modo que precisaremos fazer al¬guns esclarecimentos prévios. Aos olhos da maioria das pessoas, as leis matemáticas são uma série quase inal¬cançável de relações formais. Por exemplo: a quantidade A equivale à quantidade B, se da quantidade B se subtrai a quantidade C. Há tantas relações desse tipo que uma pessoa somente poderia deduzir uma peque¬na parte delas, ainda que lhes de¬dicasse toda a vida.
Existe, ainda, a crença de que todas as operações matemáticas podem ser realizadas com um computador adequadamente poderoso e dispondo de tempo suficiente. Trata-se de uma opinião errada. Cientistas, judiciosos, como o matemático Kurt Gödel, nos anos 30, demonstraram que há verdades matemáticas que são desde logo certas, mas não podem ser demonstradas. E isso não acontece apenas em alguns campos abstratos, mas também em operações de cálculo quotidianas. Pouco depois de Gödel publicar seu trabalho, o matemático inglês Alan Turim; usou-o para demonstrar que há cifras que não podem ser calculadas. São cifras que, mesmo quando demonstrada sua existência, não derivam de nenhum cálculo realizada por algum procedimento matemático sistemático (algorítmico). De modo que só podemos resolver uma pequena parte das verdades matemáticas existentes.
“Se existem outros mundos, podem surgir neles seres conscientes do que os rodeia?”
Com essas idéias, ganha especial importância o pensamento do mencionado David Deutsch sabre a relação entre as leis matemáticas e as naturais. Segundo o físico de Oxford. “o modo de trabalho de um computador depende da estrutura do mundo natural. E uma parte deste mundo e, portanto, consta das materiais nele existentes. O mesmo se pode dizer do cérebro humano: a forma de calcular de um computador ou a maneira de pensar de nosso cérebro dependem de como sejam as leis da natureza.” Então, o que se deduz disso tudo? Simplesmente, que o que pode e o que não pode ser calculado é decidido pelas leis ela Física. Com essa declaração, fecha-se o círculo: as leis da Física permitem que surja um mundo em que são possíveis determinadas operações matemáticas que, por sua vez, explicam as leis da Física. O que nos leva a seguinte pergunta: esse círculo fechado é algo exclusiva de nosso Uni¬verso? Nosso mundo é o único em que se pode calcular seu código cósmico? Se existem outros mundos, independentes do nosso, podem surgir neles estruturas complexas, como os seres vivos biológicos, conscientes do que os rodeia?
Devemos ocupar-nos com essas questões, que vão muito além do campo da Física, para entrar já na Metafísica. Não conhecemos as respostas. Eu, pessoalmente, creio que a coincidência entre seres racionais, capazes de pensar matematicamente, e a estrutura matemática de seu mundo é tão improvável que tem de ser única.
A relação descrita entre Matemática e mundo natural nos proporciona uma cadeia de provas em favor da hipótese de que a inteligência não apareceu casualmente no Universo, mas é uma propriedade fundamental dele. Como compro¬vantes adicionais, é preciso lembrar as curiosas casualidades conhecidas como princípio antrópico. Há algum tempo os cientistas perceberam que nossa existência depende de uma série de circunstâncias evidentemen¬te felizes. Um exemplo: se as leis físicas da natureza fossem só um pou¬co diferentes do que são, não pode¬riam existir estruturas importantes para nós, como as estrelas estáveis que queimam hidrogênio, o caso do nosso Sol. Tampouco poderiam ter-se desenvolvido as condições neces¬sárias para a existência de seres vivos biológicos. Somente em um Univer¬so com leis e condições como as que existem no nosso poderiam surgir seres racionais, capazes de perguntar pelo sentido da vida.
Eu me sinto obrigado a acreditar que: por meio da ciência, poderemos colocar a nosso alcance os fundamentos racio¬nais da existência natural. Esta confiança se baseia em que deciframos já grandes partes do código cósmico e que algum dia, conheceremos, quem sabe, toda a verdade. E isso me parece muito extraordinário para permitir que seja fruto, apenas da casualidade. De um modo estranho, talvez por caminhos inescrutáveis, parece que houve algo ou alguém que desejou que os humanos estivéssemos aqui.
Paul Davies é professor de Física Teórica na Universidade de Adelaide, na Austrália. Publicou recentemente o livro The mind of God (A mente de Deus).