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Busca adiada dos últimos marcianos: o fracasso do vôo de Mars Observer

O silêncio da Mars Observer frustrou os planos de investigar criaturas que podem ter vivido em Marte, e talvez ainda se escondam do frio e da seca sob o solo.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h39 - Publicado em 31 out 1993, 22h00

Flávio Dieguez

Pacíficos, sábios admiradores da harmonia da vida, os últimos marcianos apegam-se desesperadamente aos derradeiros momentos de sua existência. Surpreendidos pela chegada de visitantes ao seu planeta, escondem-se em cavernas ou montanhas distantes, tentando preservar sua civilização antiqüíssima. Nada disso, é claro, estava nos planos dos cientistas que organizaram o vôo da nave americana Mars Observer, desaparecida no espaço pouco antes de fazer sua primeira órbita em torno do planeta vermelho. Mas uma de suas metas era realmente procurar vestígios de marcianos que viveram bilhões de anos atrás.

Eles dificilmente estarão vivos, e mesmo que algum dia tenham existido, nunca tiveram uma civilização. Ainda assim, a malsinada viagem da Mars Observer deixou um sentimento de frustração comparável ao que transmite a história do primeiro parágrafo — enredo da novela As crônicas marcianas, do americano Ray Bradbury, clássica obra-prima da ficção científica. O sentimento é ainda mais forte porque os marcianos reais, caso existam, também são remanescentes de outras eras e fazem milagres para sobreviver num dos mais secos e gélidos ambientes em que se pode conceber a vida. Para tentar descrevê-los, SUPERINTERESSANTE pediu ajuda a um dos especialistas que analisariam os dados da Mars Observer, o americano Christopher McKay, do Centro de Pesquisa Ames, ligado à NASA.

A lúcida proposta de McKay é que os habitantes de Marte devem ser parecidos com as algas e os liquens que conseguiram se adaptar ao interior do continente antártico, escondidos do frio e da falta de água alguns centímetros abaixo da superfície hostil. “Os nichos do subsolo podem ter preservado a vida muito depois de as condições da superfície terem se tornado inóspitas.” Como na Terra, aquelas minúsculas e primitivas formas vegetais podem ter se desenvolvido há bilhões de anos, quando Marte ainda não era um mundo tão frígido e havia água corrente em sua superfície.

Mais tarde, depois que o planeta perdeu a atmosfera e esfriou, seus organismos podem ter tomado dois rumos: extinção ou adaptação às terríveis condições prevalecentes. Desde 1980, McKay procura elementos para reforçar essa tese. Para isso, ele pesquisa a vida em ambientes análogos aos de Marte, seja nos vales secos da Antártida, ou, mais recentemente, nas regiões árticas da Sibéria. Seu objetivo atual, em termos bem amplos, é investigar se a vida é fruto da própria evolução do sistema solar — em vez de um mero acaso na história da Terra. “Desde a época do colégio, fiquei intrigado por não haver vida em Marte, embora o planeta tivesse todos os elementos necessários para isso.”

Naturalmente, McKay ficaria feliz se a Mars Observer tivesse ajudado a encontrar, pelo menos, vestígios fósseis de seres extintos no planeta vermelho. Mas ele não descarta a possibilidade de tais seres continuarem vivos — apenas à espera de que os terráqueos escavem o solo marciano para se revelarem. “Se ficar provado que existe água líquida, a vida pode ainda estar presente. Por outro lado, a aparente ausência de água líquida é talvez o mais sério argumento contra a presença da vida em qualquer lugar do planeta.” Esse é o nó que alguns dos instrumentos contidos na Mars Observer poderiam ter ajudado a desatar.

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O mais importante deles é a camâra de alta resolução, capaz de ver detalhes menores que 250 metros na superfície. Ela teria ampliado formas suspeitas, bem visíveis na face de Marte, que lembram o leito seco de antigos rios ou lagos. “Nosso trabalho na Antártida sugere que os lagos marcianos seriam locais perfeitos para caçar fósseis”, explica McKay. “Lagos cobertos de gelo poderiam ter servido de abrigo para a vida muito depois de o resto da superfície ter se tornado desabitado. Além disso, enterrados sob os sedimentos do fundo de um lago, os fósseis ficariam preservados em ótimas condições.”

Mas a grande imagem da câmara seria a de um vulcão ativo. Ela provaria que em Marte há calor para derreter gelo da superfície e gerar água corrente, e assim sustentar alguma forma de vida. Nesse caso, um segundo instrumento-chave poderia ter entrado em ação: o chamado espectrômetro de emissão de calor, por meio do qual se poderia medir a temperatura do próprio solo. Mais do que isso, ele era capaz de analisar minerais, em eventuais pontos quentes do planeta, e assim verificar se contêm compostos comumente associados a água líquida, como carbonatos, nitratos e outras. O espectrômetro também poderia detectar substâncias ricas em energia química — uma alternativa salvadora à energia luminosa.

Na Antártida, a luz do Sol atravessa o gelo que protege as algas, permitindo que façam a fotossíntese. Mas não há como obter luz nos eventuais nichos biológicos marcianos, situados sob o solo opaco. A saída, diz McKay, são certos gases vulcânicos. “Gerados bem abaixo da superfície, esses gases sobem através das rochas por um processo denominado percolação e poderiam servir de fonte energética para comunidades de micróbios.” O que se sabe de Marte até agora, contabiliza o cientista, não permite excluir nem comprovar a existência de tais comunidades. Mas elas seriam denunciadas por resíduos como o metano (CH4) ou ácido sulfídrico (H2S), pois eles são normalmente liberados quando um organismo extrai energia química de gases do tipo vulcânico.

McKay adverte que os vulcões marcianos parecem definitivamente mortos. Não só porque não se observou nenhum em ação, até hoje, mas também porque há sinais de que sua atividade vem declinando há muitíssimo tempo. Mas isso não quer dizer que não haja pistas intrigantes de vulcanismo recente. Um exemplo curioso é o meteorito Shergotty, que se acredita ser um pedaço de Marte lançado na Terra por um vulcão. “Ele tem origem vulcânica e é muito jovem, do ponto de vista geológico, com menos de 200 milhões de anos.” Contradiz-se, assim, a idéia de que os vulcões se extinguiram há cerca de 1 bilhão de anos.

A hipótese vigente é que eles vomitaram lava durante 4 bilhões de anos e depois se apagaram. Mas, se ainda estavam ativos há 200 milhões de anos, como sugere o meteorito Shergotty, é razoável supor que o planeta não esteja geologicamente morto. É bom lembrar que a Mars Observer, além dos instrumentos adequados, teria tido tempo bastante para bisbilhotar o menor sinal de vulcanismo. Sua meta era circundar o planeta durante os 687 dias (terrestres) que compõem o ano marciano e vigiar bem de perto o clima do planeta. A começar pelas gigantescas tempestades de areia e pelo vapor de água que se supõe fluir no finíssimo ar, composto basicamente de gás carbônico.

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Marte poderia até entrar para o horário nobre da televisão, pois a nave enviaria uma previsão diária de seu tempo — tal como se faz para as cidades e regiões mais importantes da Terra. Embora Marte seja bem conhecido, comparado aos outros planetas, apenas 15% de sua superfície é conhecida em detalhes menores que 250 metros. A Mars Observer deveria ampliar a porcentagem para 100%. A importância da missão pode ser avaliada pela frase do americano James Pollack, um dos mais respeitados cientistas planetários, que antes de a nave se perder antecipou grandes mudanças nas idéias sobre Marte: “Eu ficaria desapontado se isso não ocorrer”.

O desapontamento foi muito maior, pois se deveu ao fracasso total da experiência, e atinge com mais força os 100 pesquisadores que planejaram a missão, durante a década passada, e outros 500 que estariam envolvidos na análise dos seus dados, como relata a revista Science, da Sociedade Americana para o Avanço da Ciência. A indignação é tanta, na verdade, que talvez o estudo de Marte seja retomado — uma possibilidade distante, mas não descartável. “Eu não estou triste, estou furioso”, explodiu Michael Malin, chefe da equipe que devia operar a câmara de alta resolução.

Afinal, recordam os cientistas, foi o Congresso dos Estados Unidos que empacotou numa única missão todos os preciosos instrumentos da Mars Observer, elevando seu custo a quase 1 bilhão de dólares. A idéia inicial era parcelar os gastos ao longo dos anos 90, numa série de viagens. Além disso, como há cópias de todos os instrumentos, um segundo vôo sairia 20% ou 30% mais barato que o primeiro, diz William Boynton, responsável por um dos aparelhos a bordo, o espectrômetro de raios gama.

Por último, há o fato de Marte ser o alvo de diversas missões futuras. As mais importantes, projetadas por cientistas russos, visam observar o planeta em órbita baixa; vasculhar a superfície com veículos; e perfurar o subsolo com sondas. Em vista disso, os mais otimistas crêem que podem pressionar o governo acenando com o risco de os Estados Unidos ficarem para trás. Se funcionar, talvez os americanos ainda tenham chance de ver os marcianos imaginados por McKay.

Para saber mais:

Viagem ao planeta vermelho

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(SUPER número 3, ano 2)

O maior espetáculo

(SUPER número 6, ano 3)

Robô habilis

(SUPER número 11, ano 4)

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Réplica da Terra em Marte (SUPER número 10, ano 6)

Mas isso é que é ET?

(SUPER número 10, ano 10)

Imaginários caçadores de naves

Diz a revista inglesa The Economist que a história começou em 1964, quando a sonda soviética Zond 2 tomou o mesmo destino da antecessora Mars 1, dois anos antes, e sumiu nas cercanias de Marte. Nessa época, o americano John Cassini preparava o vôo Mariner 4, e, talvez para aliviar a própria tensão, inventou que o culpado era o Grande Ghoul Cósmico, referência a um monstro da mitologia britânica. Desde então, o Ghoul teria feito outras vítimas até chegar à Mars Observer. Puro sarcasmo, claro. Sua graça decorre da idéia implausível, para dizer o mínimo, de que a Mars Observer teria sido perdida de propósito — para evitar que revelasse uma civilização alienígena supostamente estabelecida em Marte. Sugestão parecida, lembra The Economist, foi feita sobre a nave russa Fobos: a última foto tirada por ela mostraria “algo” tentando alcançá-la. Sarcasmo e excesso de imaginação à parte, o mais provável é que cortes de orçamento e outros problemas administrativos estejam produzindo mais erros do que se poderia esperar. Quem duvida, basta ver a lista da revista americana Science, que contém os desastres americanos apenas no mês em que a Mars Observer emudeceu: três satélites espiões explodiram com o foguete Titan IV, cujo motor já negou fogo duas vezes depois disso; um satélite meteorológico NOAA emudeceu em órbita; o ônibus espacial falhou em três lançamentos sucessivos; e, como resultado do atraso, o telescópio orbital ORFEUS não poderá estudar o mais brilhante dos astros conhecidos como quasares, o 3C 273.

Um pedaço de Marte na Terra

O biólogo brasileiro Antônio Batista Pereira não é especialista em assuntos de Marte — mas estuda as criaturas que mais se assemelham aos possíveis marcianos. Veterano de quatro expedições à Antártida, ele conhece bem as áridas paisagens que as chamadas algas criobiontes adotaram como lar — onde a temperatura média anda sempre em torno dos 35 graus negativos e, o que é pior, caem menos de 5 centímetros de água anualmente, três vezes menos que no Deserto do Saara. Ou seja, se existe na Terra um lugar tão hostil para a vida quanto Marte, esse lugar é o interior da Antártida. Portanto, se os marcianos existiram algum dia, eles devem ter se parecido com aquelas algas, primitivas formas vegetais. “Não é absurdo cogitar que Marte tenha sido habitado por algas”, concorda Pereira, que trabalha na Universidade de Santa Cruz do Sul, RS. Ele explica que as criobiontes antárticas não são simples sobreviventes, mas um sucesso evolutivo, pois agrupam nada menos que 460 espécies diferentes. Alojadas alguns centímetros abaixo da superfície, elas usam o gelo como um cobertor, capaz de impedir a entrada do ar gelado, enquanto retém o constante fluxo de calor vindo das entranhas da Terra. Nesse nicho, a temperatura é razoavelmente confortável e poucas vezes cai abaixo de 1 grau negativo. Marte, como qualquer outro planeta, deve ter vísceras quentes, e é possível que, sob a gélida superfície, se encontrem primitivas plantinhas.

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Vida paralela dos planetas

A idéia de que Marte já abrigou alguma forma de vida deve-se à hipótese de esse planeta, no passado, não ter sido tão diferente da Terra quanto é hoje. A chave dessa semelhança é o gás carbônico: há cerca de 4 bilhões de anos, ele teria retido calor em quantidade suficiente para que a água fluísse como um líquido na superfície marciana. Foi assim, até onde se sabe, que a vida surgiu na Terra, e é razoável supor que o mesmo tenha acontecido no planeta vermelho. Essa tese pode ser melhor visualizada com ajuda dos gráficos que, no alto e no pé desta página, comparam a evolução dos dois mundos. Publicados pela revista americana Astronomy de setembro passado, eles ilustram, não por acaso, um artigo do cientista planetário Christopher McKay sobre as condições necessárias para que a vida surgisse no planeta vermelho. O pesquisador explica que o gás carbônico vazou em grande quantidade, tanto do interior da Terra como de Marte, logo depois de um pesado bombardeio de meteo-ritos que terminou há 3,8 bilhões de anos. A questão é saber quanto tempo a vida demorou para surgir, depois que a superfície dos planetas começou a esquentar. Na Terra, tudo indica que a explosão vital durou algumas centenas de milhões de anos, o que não é muito, em termos cósmicos. Nesse caso, haveria tempo para que os organismos vivos também se desenvolvessem em Marte, pois seus habitats “líquidos” podem ter durado até 1 bilhão de anos. Depois, o gás carbônico reagiria com a água, formando carbonatos agregados a rochas. Os vulcões, por algum tempo, devolveram parte do gás ao ar, mas em quantidade pequena. Incapaz de elevar a temperatura média acima dos 60 °C negativos (contra 15 °C po-sitivos na Terra). E, possivelmente, incapaz de manter acesa a chama vital que um dia possa ter brilhado.

Ordem sem resposta

Na noite de 21 de agosto passado, a nave Mars Observer chegou ao fim de sua tortuosa jornada de 720 milhões de quilômetros, iniciada na Terra onze meses antes. Nada, até então, indicava que o dispendioso veículo espacial, transportando 120 milhões de dólares em instrumentos científicos, pudesse fracassar nas manobras finais que o colocariam em órbita segura à volta do planeta vermelho. Se ele não fosse desacelerado, passaria direto sobre o pólo norte marciano e possivelmente se perderia rumo ao Sol. Mas, até onde se sabe, apenas a primeira operação de frenagem foi executada com precisão. Conforme previamente determinado, no início daquela noite o computador de bordo desligou os transmissores de rádio. Nunca isento de risco, esse procedimento era necessário para proteger os transmissores da pequena explosão que viria a seguir, cuja função era abrir as válvulas que injetavam gás e pressurizavam os tanques de combustível. Ou seja, ela dava o passo inicial para se acionarem dois dos quatro motores da nave e assim reduzir sua velocidade. É impossível dizer se isso foi feito. O computador de bordo estava preparado para realizar, por conta própria, todas as manobras necessárias. Mas, como os transmissores de rádio não voltaram a funcionar, ninguém sabe o que aconteceu, nem onde foi parar a infortunada viajante.

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