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Computadores arretados

Encravado no interior da Paraíba, o pólo tecnológico de Campina Grande tira as boas idéias das prateleiras universitárias e as transforma em empresas e produtos de exportação

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h35 - Publicado em 31 jan 1992, 22h00

Fátima Cardoso e Marcelo Affini

Um passeio pelas pacatas ruas de Campina Grande, cidade do interior da Paraíba, é suficiente para se perceber que o padrão de vida ali é comparável ao das regiões mais prósperas do pais. Depois de se tornar famosa como a “terra do forró”, onde é realizada anualmente a maior festa de São João do mundo. um novo perfil começa a ser traçado para a cidade de 340 000 habitantes, em que uma característica muito diferente é exposta: a tecnologia. Nesse novo retrato, locais como Parque do Povo — o popular forródromo — começam a dividir espaço com o Museu Vivo da Ciência e Tecnologia, uma exposição permanente dos produtos industriais da cidade. em construção num terreno de 2500 metros quadrados, exatamente em frente ao forródromo.

Todo esse movimento é justificado por alguns dados, como o de que ali é fabricada mais da metade dos equipamentos de áudio instalados nas emissoras de rádio brasileiras. Presentes em mercados altamente competitivos e exigentes. principalmente Estados Unidos e Canadá, seus produtos concretizam a imagem da região como geradora de tecnologia, motivo pelo qual foi instituída a Fundação Parque Tecnológico da Paraíba, em 1984.”Essa efígie de fabricante de produtos de base tecnológica está intimamente ligada a curiosa história da cidade de Campina Grande, conta José Geraldo Baracuhy, diretor geral adjunto da instituição. Como se fosse um oásis no meio do deserto, Campina Grande é um importante centro universitário para o interior nordestino; característica semelhante à do comércio, que fornece de alimentos a eletrodomésticos a cidades do Ceará, Piauí, Maranhão, Pernambuco e da própria Paraíba. 

Seu crescimento está intimamente ligado à comercialização de algodão, quando, no início da década de 50, conquistou o status de segunda maior praça algodoeira mundial, perdendo apenas para Liverpool, na Inglaterra. A medida que os negócios com algodão ali se concentravam, mercadores dos mais variados tipos vislumbravam um rentável comércio destinado a abastecer de mercadorias os caminhões que antes voltavam vazios às suas origens.”Isso levou à criação da primeira bolsa de mercadorias das regiões Norte e Nordeste do Brasil e, a reboque, concentrou uma grande quantidade de mecânicos para consertar os caminhões que transportavam algodão”, lembra Telmo Araújo, diretor e mentor da Fundação Parque Tecnológico e também secretário de Planejamento do município. Como a demanda por gente especializada em mecânica só crescia, foi criada a Escola Politécnica. Começava, então, a ser balizado o caminho para a criação da Universidade Regional do Nordeste, depois desmembrada em Universidade Estadual e campus II da Universidade Federal da Paraíba.

A real vocação da cidade para o desenvolvimento de produtos de base tecnológica, no entanto, surgiu nos anos 60, quando professores de diversas áreas da Engenharia foram “importados” do conceituado Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), em São José dos Campos (SP). Outro impulso ao desenvolvimento dos estudos acadêmicos nesta área surgiu com a volta de muitos bacharéis à região, depois de concluírem seus trabalhos de mestrado e doutorado na França, Alemanha, Estados Unidos e Canadá. Não foi por acaso que essa enxurrada de cérebros desembarcou na Paraíba, num caminho oposto ao que normalmente se trilha, em direção aos grandes centros.

Em pleno regime militar, época de perseguição política, o diretor e mais dois professores da Faculdade de Engenharia Elétrica, empenhados em elevar o nível de ensino, resolveram dar abrigo aos supostos subversivos, chamando-os para trabalhar e pesquisar longe da agitação das grandes cidades. Se não subversivos, aqueles dedicados barbudos eram revolucionários: todos eles registravam e pagavam salário mínimo às suas empregadas domésticas, um gesto que aumentou o custo da mão-de-obra caseira e causou revolta na aristocracia campinense.Em 1967, com a criação da Atecel —Associação Técnico-Cientifica Ernesto Luís de Oliveira — surgia pela primeira vez no Nordeste brasileiro uma entidade para centralizar as consultorias prestadas pelos professores universitários à sociedade. “A Atecel era um instrumento do diálogo entre a universidade e a sociedade”, lembra Telmo Araújo. Os recursos financeiros captados pela Atecel foram investidos, em 1970, na aquisição de um computador IBM — o primeiro das regiões Norte e Nordeste —, fato que gerou grande demanda de serviços na área da Informática. 

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Foi esse o embrião do movimento de participação de empresas dentro da universidade paraibana. Resolver problemas específicos da comunidade, no entanto, não era suficiente para os pesquisadores.Muitos equipamentos criados durante os cursos de graduação e pós-graduação sofriam com a “síndrome das prateleiras”, que Telmo Araújo descreve como a impossibilidade de se lançar no mercado os frutos das pesquisas acadêmicas. “Estavam encalhados nos armários das universidades, mas poderiam resultar em produtos de tecnologias inovadoras.” Foi a partir dessa constatação que o CNPq — Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, órgão do governo federal encarregado de estimular pesquisas em todas as áreas da ciência, criou o NIT, Núcleo de Inovação Tecnológica. Espalhada por todo o pais, essa instituição encaminha novas invenções a prováveis usuários, adequando-as às solicitações do mercado.

O bem-sucedido repasse da tecnologia gerada na universidade incentivou os pesquisadores a criar suas próprias empresas. Com isso, diminuiu muito a venda de tecnologia a terceiros e cresceu o número de pequenos empreendimentos na cidade. A criação da Fundação Parque Tecnológico da Paraíba, ao final de 1984, foi o suporte que faltava para a transformação da cidade em um verdadeiro pólo tecnológico. Antes dela, havia cinco empresas de base tecnológica na cidade; hoje são 26, que faturam cerca de 4 milhões de dólares por ano. Semelhante ao jeito como as fêmeas cuidam de seus filhotes, a Fundação dá toda ajuda necessária ao nascimento e sobrevivência das empresas, cujo surgimento ela mesmo estimula.

Os incentivos ocorrem principalmente no que diz respeito à manutenção da infra- estrutura operacional das novas empresas. No andar inteiro de um prédio é mantido o sistema de incubação e associação de empresas de base tecnológica. Esse espaço é dividido entre vinte empresas embrionárias, que têm direito a ocupar uma área física exclusiva e recebem orientação empresarial nas áreas econômica, financeira e de marketing, além de dividir os custos de administração, de secretárias a telefones. Esses custos são subsidiados pela Fundação até que a empresa complete dois anos de vida. “Após esse tempo, a empresa precisa deixar a infra-estrutura da incubadora e caminhar sozinha”, afirma Jorge Figueiredo, chefe da divisão de empresas de base tecnológica. Primogênita desse programa de criação de empresas, a Tecnal surgiu em 1987, pela iniciativa de seu proprietário, Vicente Albuquerque Araújo, que terminava o curso de Engenharia Civil na UFPb.

Seu produto rapidamente fez sucesso: um software denominado PSI — Projeto de Sistemas de Irrigação, especialmente criado para auxiliar na elaboração. análise. pesquisa e ensino de projetos de irrigação. “Imaginei criar a Tecnal para colocar no mercado o que eu fazia no Centro de Pesquisas da Universidade”, conta Vicente Araújo. Os incentivos do governo para irrigação da Região Nordeste criaram a condição ideal para o lançamento do PSI, que hoje tem cerca de oitenta cópias comercializadas em todo o Brasil. Apenas um ano depois de vida na incubadora, essa empresa de fundo de quintal já tinha sede individual e, hoje, concentra um conglomerado de sete indústrias na Tecnal Holding, outro tipo de sistema compartilhado que possibilita a abertura de empresas em apenas quinze dias.

A primeira empresa nascida de uma tese de mestrado foi a Apel Aplicações Eletrônicas, em 1975. Para o engenheiro civil José Clóvis Moroni Vidal, diretor da Apel, “nenhuma outra entidade, além da universidade, poderia dar maior alavancagem na formação da consciência de que desenvolvimento somente é feito via tecnologia de base”. A empresa iniciou suas atividades comercializando uma tese de mestrado do professor José Ivan Accioly, sócio proprietário do negócio, que permitia a transmissão de até oito canais musicais por meio de uma única linha telefônica. Denominado Sistema Mousike. esse aparelho. destinado à sonorização de ambientes, desbancou seu único concorrente no Brasil, uma companhia suíça cujos aparelhos apresentavam problemas de confiabilidade e de peças para manutenção.Instalado em mais de quinze concessionárias do Sistema Telebrás, o Sistema Mousike está atendendo hoje mais de 7000 clientes sonorizados, entre hotéis, condomínios e empresas. Na área de radiodifusão, a Apel equipou 1600 das 3100 emissoras de rádio instaladas no país. São mesas de áudio, processadores de eco e áudio, amplificadores, monitores de modulação e equalizadores, entre outros produtos, que juntamente com o sistema de sonorização de ambientes levam a empresa a faturar quase 800 000 dólares anualmente e exportar para Portugal e América Latina.

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Entre todos os produtores de software de Campina Grande, a Infocon é o principal deles. Originária da universidade, de onde continua recebendo mão-de-obra qualificada, dela surgiram os primeiros produtos de software nacionais para ambientes Unix, um tipo de sistema operacional de computadores muito exportado para os Estados Unidos e a Europa. “Com nossa atual estrutura, poderíamos estar baseados em qualquer cidade do Brasil, mas estamos aqui por causa da proximidade com o centro formador de mão-de-obra e porque impera o sossego”, justifica Alexandre Beltrão Moura, gerente geral da Infocon.Nem só de sofisticados programas de computador vive o pólo. Um aparelho tão prosaico quanto um taxímetro também virou produto de alta tecnologia. Desenvolvido pela mestranda em Ciência da Computação Neusa Cardoso de Moraes, sócia da fábrica CAP’s, o taxímetro campinense indica simultaneamente as unidades taximétricas e o preço da corrida, e ainda imprime recibo para o passageiro. O apertar de botões faz a contabilidade do dia para o motorista: mostra quantos quilômetros rodou com e sem passageiro, quantas bandeiradas fez, quanto dinheiro entrou em caixa e quanto gastou com combustível, calculando então o lucro.

Também na CAP’s, o outro sócio, Misael Elias de Morais, criou um controlador lógico-programável para modelagem de carga numa indústria de derivados de milho. Em outras palavras, um computador que define a quantidade exata de produto em cada embalagem, diagnostica e corrige possíveis erros de pesagem. Morais também inventou uma máquina para fazer café expresso dotada de microprocessador. Ela controla a temperatura, a pressão e o tempo da passagem de água pelo pó, para que o aroma e o sabor não se percam na fumaça. “Quanto mais cheiroso um café, mais aroma e sabor a bebida perde” explica Morais, tão dedicado a problemas caseiros que está bolando uma chocadeira automática para o galinheiro no fundo de seu quintal.

É assim que funciona Campina Grande: de qualquer quintal pode nascer tecnologia. Quem tem uma grande idéia é quase forçado a colocá-la em prática, abrindo uma empresa para transformá-la em produto. Kepler França, professor do Departamento de Engenharia Química da Universidade Federal da Paraíba, projetou um dessalinizador de água que funciona por eletrodiálise, método que gasta dez a vinte vezes menos energia elétrica do que os outros dessalinizadores. O objetivo principal é dessalinizar a água salobra do Nordeste, que no sertão chega a ter uma concentração de sal trinta vezes maior do que a água considerada potável, tornando viáveis a irrigação e o consumo. Com ares messiânicos, França pensa em ajudar a resolver o eterno problema da seca: “o povo nordestino tem água, mas não bebe”.

 

 

 

 

Para saber mais:

O micromundo dos chips

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(SUPER 8, ano 2)

 

 

 

 

Atalhos para a modernidade

José Adelino Medeiros, economista brasileiro nascido nos arredores de Coimbra, em Portugal, é professor visitante do Instituto de Estudos Avançados, na Universidade de São Paulo, e assessor de Desenvolvimento Tecnológico da Secretária de Ciência e Tecnológica do Estado de São Paulo. Recentemente, lançou o livro Perfil dos Pólos Tecnológicos Brasileiros, pela editora IBICT.

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Os pólos tecnológicos são o caminho para a modernidade?

A modernidade hoje tem um ingrediente que a deixa muito diferente de antes: agora ela é irrecusável. Ou o país se moderniza, ou entra num colapso ainda maior do que já está. O pólo tecnológico é um caminho para a modernidade, se a entendermos de forma mais ampla, que inclui a modernização das estruturas responsáveis pela colocação em prática de máquinas.

 

 

 

Como se caracteriza um pólo?

Nos pólos cientifico-tecnológicos existem quatro atores. Os fundamentais são as empresas de base tecnológica, onde a tecnologia é o principal insumo de produção. O segundo ator é o conhecimento corporificado nas universidades e nos institutos de pesquisa. O terceiro é o governo, nos três níveis: federal, estadual e municipal. O quarto ator não é uma pessoa e sim são ações. São os projetos conjuntos, e as palavras-chave para representar esses conceitos seriam cumplicidade, sinergia, articulação, conexão.

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E como nascem os pólos? Basta a vontade de um prefeito, por exemplo?

Um pólo não se cria, nem por projeto nem por decreto; um pólo surge. No Brasil, eu vejo três formatações possíveis para os pólos científico-tecnológicos. Em primeiro lugar existem os pólos sem estrutura formal, onde esses atores acabam se unindo através dos projetos, como acontece em São José dos Campos. O segundo tipo é o pólo com estrutura formal, onde existe um “agente casamenteiro”. Essa estrutura formal pode ser uma fundação, uma entidade civil sem fins lucrativos, como em Curitiba, em São Carlos e em Campina Grande. É como a estória de levar o burro à beira d’água, se ele vai beber é outro problema. O terceiro tipo é o chamado parque tecnológico, um pólo com estrutura formal e com um local físico para que as empresas lá fiquem de uma forma definitiva, como o pólo de Biotecnologia do Rio de Janeiro, o BioRio, dentro da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

 

 

 

Os pólos não tendem a virar ilhas de excelência, como Campina Grande é no Nordeste?

Sim, mas Campina Grande é uma ilha em que se tenta permear o tecido industrial e social da cidade e da região, e isso não está sendo fácil. Esse é o ponto-chave dos pólos tecnológicos: rejuvenescer a indústria tradicional, em contraponto à chamada indústria de base tecnológica. É fundamental, num país como o nosso, dividir os pólos em dois grandes grupos. De um lado, os pólos científico-tecnológicos, aqueles que criam a sua razão de ser a partir de empresas em que sua matéria-prima fundamental é a tecnologia. 

Mas do outro lado estão os pólos de modernização tecnológica, ou seja, como se podem criar caminhos e possivelmente atalhos em que se coloquem a ciência e a tecnologia dentro de empresas em que esse ingrediente não é o fundamental, como nas indústrias têxteis, de calçados, de alimentação. Mesmo que para isso seja preciso frear um pouco os nichos tecnologicamente mais charmosos, pois assim conseguiríamos evitar os desequilíbrios sociais que estão acontecendo neste país. É moderno ter vestuário melhor e mais barato, como também é moderno ter Biotecoologia melhorando o desempenho do setor agrícola.

 

 

 

 

 

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