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Do outro lado da linha

Inteligência artificial, robôs telefonistas e até detector de mentiras: seja bem-vindo ao futuro do telemarketing

Por Elis Magarotto
Atualizado em 31 out 2016, 18h46 - Publicado em 22 jan 2011, 22h00

A TV a cabo saiu do ar, a conta do celular veio errada, você quer cancelar algum serviço ou não recebeu aquela compra que fez pela internet. É hora de pegar o telefone, respirar fundo e se preparar para o pior: esperas intermináveis, atendentes despreparados e a certeza de que será difícil resolver o problema. Isso quando os atendentes não tomam a iniciativa e ligam nos horários mais impróprios, oferecendo serviços que você não quer. Bem-vindo ao inferno do telemarketing, um dos maiores pesadelos globais: segundo uma pesquisa feita no Reino Unido, os operadores de call center estão em 7o lugar na lista dos profissionais mais odiados (à frente dos políticos). Já virou lugar-comum falar mal deles, fazer piada com seu jeito de falar e se assustar com as condições de trabalho dos atendentes, que quase sempre ganham salário mínimo e, em alguns casos, têm até as visitas ao banheiro cronometradas pelos patrões. O que você não sabe é que, do outro lado da linha, está surgindo um novo telemarketing: com sistemas de inteligência artificial que adivinham o melhor horário para ligar, analisam a sua voz em busca de sinais de estresse ou insatisfação e até detectam mentiras em tempo real. O(a) senhor(a) poderia estar virando a página para descobrir?

Por que investir tanto num dos serviços mais odiados do mundo? A resposta é simples: porque ele funciona – e é um dos mais eficientes jeitos de vender. Logo que o telefone foi inventado, em 1876, apareceu gente tentando usá-lo para vender coisas: uma confeitaria dos EUA, que em 1880 começou a ligar para seus clientes oferecendo doces por telefone. Na década de 1920, começaram a aparecer formas primitivas de call center para atender os consumidores. Em 1964, a montadora Ford treinou cerca de 15 mil donas-de-casa, que ficavam ligando para uma lista de telefones e perguntando se as pessoas queriam comprar carros.

Mesmo usando métodos precários, a iniciativa teve um alcance enorme: as donas-de-casa conseguiram falar com 20 milhões de pessoas. Mas o telemarketing nos moldes atuais só apareceu na década de 1970, quando se profissionalizou. “Foi aí que surgiram empresas especializadas [em montar call centers] e as tecnologias que tornaram tudo possível”, explica o pesquisador americano Steven Crandall, autor de um estudo sobre a história do telemarketing. Foi o começo de uma indústria monstruosa, que movimenta US$ 900 bilhões todos os anos – o equivalente a 80% de tudo o que a economia brasileira produziu em 2007. Se isso já parece incrível, veja este número: no mundo, a indústria de telemarketing e call centers faz e recebe 24 bilhões de telefonemas por ano. É como se cada homem, mulher ou criança do planeta Terra falasse 3,6 vezes por ano com alguma central de vendas ou atendimento ao consumidor. Haja bocas para falar, ouvidos para escutar e dedos para discar. Ou melhor: dedos não.

Hoje em dia, as ligações são feitas por computadores que conseguem discar centenas de números ao mesmo tempo e só transferem as chamadas para os operadores de carne e osso quando você atende. Tudo graças a um software que se chama predictive dialer (“discador preditivo”, em inglês), que é adotado por praticamente todas as empresas de telemarketing. “Ele consegue prever o melhor horário para fazer a ligação”, afirma Davi Cardoso, diretor da Atento, maior empresa de telemarketing do país. Para fazer isso, o software analisa os resultados das chamadas anteriores (computando o número de ligações bem-sucedidas) e leva em conta informações sobre o perfil dos consumidores. “Em Recife, por exemplo, as pessoas costumam almoçar em casa. Então ligar nesse momento pode dar resultado”, explica Cardoso. O arsenal também inclui sistemas de reconhecimento de voz que conseguem diferenciar a sua fala das gravações de caixa postal ou secretária eletrônica. Isso porque a gravação tem uma fala contínua, mas as pessoas de verdade não: elas dizem “alô” e depois ficam em silêncio, esperando uma resposta do outro lado da linha. É por isso que, quando você atende uma ligação de televendas, geralmente o vendedor só começa a falar após alguns segundos. O computador do telemarketing está esperando o seu silêncio para completar a conexão.

Tudo isso pode parecer mero detalhe, mas não é. Antes da discagem robotizada, as centrais de telemarketing eram extremamente ineficientes – os atendentes perdiam muito tempo discando e rediscando os números, e por isso só passavam 20% do seu tempo falando com os consumidores. Com os sistemas computadorizados, a eficiência subiu para 80%.

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Essa tecnologia, junto com o barateamento das conexões telefônicas (hoje, a maioria das centrais usa a tecnologia VoIP, de telefonemas via internet), permitiu a explosão das ligações. Nos anos 80, cada chamada custava em média US$ 0,25, valor que inclui o salário do atendente, os custos com infraestrutura e a ligação telefônica em si. Hoje, chega a custar apenas meio centavo de dólar (US$ 0,005). Isso significa que, com US$ 5 mil, é possível chamar – e importunar – nada menos do que 1 milhão de pessoas.

Foi por isso que o telemarketing tomou conta do mundo. E, para frear essa expansão, o governo dos EUA criou o Do Not Call Registry, um registro nacional em que as pessoas podem cadastrar seus telefones para que não recebam nenhum tipo de ligação de telemarketing. Ele se tornou um enorme sucesso: mais de 145 milhões de pessoas já colocaram seus números na lista. A partir de abril, quem mora em São Paulo poderá participar de um cadastro similar, por meio do site https://www.proconsp.gov.br.

Mas pode apostar que, mesmo assim, os telemarqueteiros darão um jeito de sobreviver. Foi o que aconteceu nos EUA, onde eles acharam um novo ramo de atuação: a política. Isso porque os telefonemas pedindo votos continuaram liberados, e se tornaram uma força determinante nas eleições. Uma pesquisa feita em dois estados do país, Ohio e Flórida, apontou que nada menos que 66% das residências receberam pelo menos um telefonema pedindo votos para Barack Obama ou John McCain. Boa parte dessas ligações foi realizada por computadores, que já são capazes de interagir com quem está do outro lado da linha. Nas últimas eleições para o Congresso dos EUA, milhões de eleitores receberam ligações em que uma gravação fazia perguntas incisivas, como “você é a favor do casamento gay?” ou “defende a pesquisa científica com células-tronco?” O computador usava as respostas para traçar um perfil político da pessoa do outro lado da linha, e com base nisso tocava uma mensagem recomendando ou desaconselhando o voto em determinados candidatos dos partidos Republicano ou Democrata – que fizeram, separadamente, campanhas baseadas na nova tecnologia. No dia das eleições, o robô ligava mais uma vez, para lembrar de ir às urnas (nos EUA o voto não é obrigatório). Haja paciência.

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Se receber ligações indesejadas já é ruim, ligar para resolver um problema e ser mal atendido é ainda pior – e mais comum. Em 79% das ligações entre empresas e consumidores, quem está ligando é o próprio cliente. Mas a tecnologia também promete tornar essa relação menos tensa. A maioria das centrais de atendimento já possui o recurso voice callback, que acaba com as filas – depois que a espera ultrapassa um determinado tempo, o sistema diz algo do tipo: “Tecle 5 e desligue o telefone”. Aí, quando houver um atendente disponível, o call center liga automaticamente para a sua casa. Como o voice callback custa dinheiro (a empresa tem de pagar a ligação telefônica), ainda é pouco utilizado nos call centers.

Dá para furar a fila?

Você já reparou que, quando telefona para uma central de atendimento, sempre há uma mensagem dizendo que a ligação “pode estar sendo gravada”? A coisa vai muito além disso. Enquanto você fala com o operador, um software analisa o seu tom de voz em busca de sinais de irritação – se o sistema detectar nervosismo, alerta automaticamente o supervisor, que começa a ouvir a chamada. Quer dizer: quando você perde a paciência e diz que quer falar com o supervisor, na verdade já está falando (ele já está ouvindo).

Esse sistema é usado pela maior parte das centrais de telemarketing e deu origem a um suposto truque para enganar o sistema e ser atendido mais depressa. Quando você estiver na fila de espera, ouvindo aquela musiquinha ou mensagens do tipo “sua ligação é muito importante”, experimente falar ou emitir algum tipo de barulho – vale até dar uma soprada no bocal do telefone. O software que controla a fila supostamente interpreta esse barulho como um sinal de irritação e coloca a sua ligação em prioridade, na frente das pessoas que permaneceram quietinhas. As empresas de call center não confirmam a eficácia do truque, mas admitem que ele é tecnicamente plausível.

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Só não se empolgue muito com as malandragens, pois já existe um detector de mentiras especialmente projetado para uso em call centers: o Nemesys RA-5, que foi desenvolvido para centrais de atendimento de bancos, companhias de seguros e cartão de crédito. Seus criadores não revelam quais empresas já compraram o detector, mas dizem que ele é muito preciso e mede 8 mil características da voz. Cuidado. Afinal, você não quer estar sendo acusado de mentir, não é mesmo?

Para saber mais

The Global Call Center Report
Rosemary Batt e outros, Universidade Cornell, 2007. https://www.globalcallcenter.org

Telemarketing Technology and its Social Aspects
Steven Crandall, Case Western Reserve University, 1999.

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