Os dias dos caças
Muitos anos de trabalho e muitos milhões de dólares são consumidos na indústria dos aviões de guerra, projetados, testados e construídos com precisão milimétrica e tecnologia de ponta.
Cláudio Lucchesi
Um ano. Este foi o tempo necessário para concepção, testes e início de fabricação do Sopwith Camel, encomenda do Estado-Maior britânico de um caça que lhe desse o domínio dos céus sobre os campos de batalha da Primeira Guerra Mundial, em 1916. Onze anos. Pouco mais de uma década foi o tempo gasto por um consórcio trinacional para criar o Tornado, um sofisticado avião de ataque e interdição com capacidade de combate aéreo que deu aos europeus o poder de enfrentar o então temido arsenal do Pacto de Varsóvia. O Tornado começou a integrar as esquadrilhas britânicas, alemãs e italianas a partir de 1980. Entre o épico Camel e o digitalizado Tornado, a criação de um avião de combate deixou de ser uma equação de três componentes — aerodinâmica/motor/armas — para envolver quase todas as áreas de tecnologia de ponta, como informática e novos materiais.
Com a aplicação de conceitos inovadores e inéditos, esse trabalho é hoje uma das atividades mais complexas e desafiadoras de toda a indústria, o campo de testes mais fértil em descobertas e soluções revolucionárias. Todo avião militar começa a nascer quando aqueles em operação não cumprem suas missões com eficácia, ou porque um inimigo se armou de um novo equipamento para o qual os atuais aviões não têm resposta. O novíssimo avião de ataque AMX nasceu da primeira situação, quando em meados dos anos 70 a Reggia Aeronáutica (Força Aérea italiana) percebeu que seus Fiat G91 criados no final dos anos 50, já não eram páreo para os novos MiG soviéticos, com os quais certamente iriam se enfrentar num possível conflito europeu.
Por acaso, a FAB (Forca Aérea Brasileira) também constatava que seus Xavante, projeto original italiano de 1957, estavam velhos e longe de serem eficazes mesmo num conflito localizado na América Latina. O AMX começou a tomar corpo em 1980, com a criação de um consórcio que unia a brasileira Embraer às empresas italianas Aeritalia e Aermacchi para a criação de um novo avião de ataque e apoio aéreo aproximado que atendesse às necessidades das duas forças aéreas. Uma vez decidida a necessidade de um novo avião, a Força Aérea monta um grupo de trabalho formado por oficiais de seu Estado-Maior, engenheiros e pilotos, que irá elaborar um documento com os requisitos para o novo avião — ou seja, o que a Força Aérea espera dele em termos de armas, operacionalidade e performance de velocidade alcance, razão de curva e de ascensão, entre outros dados.
Quando a Força Aérea enfim oficializa o pedido de um novo avião de guerra, as empresas aeronáuticas entram em concorrência para apresentar suas propostas. A empresa vencedora estipula uma especificação técnica preliminar, um documento interno com a performance prometida para o novo avião. Neste ponto, o projeto começa a tomar forma nas telas dos computadores com CAD/CAM — um programa de computação gráfica capaz de criar imagens tridimensionais de peças ou de todo o novo avião e de comandar as máquinas que fazem a usinagem de cada peça. “Esse é o início da chamada fase conceitual quando não se tem mais de vinte desenhos gerais obtidos por computador do que será a aparência do novo projeto”, explica Walter Bartels, diretor do Programa AMX da Embraer. Mas são exatamente esses desenhos que orientarão os passos onde cada componente e sistema será detalhado em layout para se passar à fase de concepção e fabricação do protótipo do avião. Bartels destaca a importância de o projeto ter uma visão clara de como e onde se espera que o novo avião atue — no caso do AMX, espera-se que ele esteja sempre próximo à frente de batalha, e por isso foi preparado para poder operar decolando até de trechos de rodovias.
Seus computadores principais são duplicados e afastados entre si, de modo que um continue operando mesmo que o outro seja atingido por munição de 23 mm (o padrão dos aviões russos). Por ter de operar no exigente teatro de operações (o palco da guerra) europeu, o AMX é o primeiro avião militar brasileiro a ter recursos como o lançamento de chaff (partículas metalizadas que formam uma nuvem para despistar radares inimigos) e flare (“fogos de artifício” lançados pelo avião para enganar mísseis inimigos guiados pelo calor). Para confirmar em escala real as soluções adotadas no projeto, antes da fabricação do protótipo são construídos mock-ups (maquetes) de todo o avião ou de partes dele. Um mock-up do cockpit serve para a avaliação, feita por pilotos experientes, de detalhes como a localização dos instrumentos no painel, conforto e facilidade de manuseio dos comandos.
Ao projetar o novíssimo bombardeiro B-2, porém, a Northrop americana usou um sistema CAD/CAM tão sofisticado que nenhum protótipo convencional foi construído — o avião que fez os testes de vôo era praticamente o mesmo que iria para a linha de produção. Nem os moldes para monta r as peças tiveram protótipos, foram logo para a linha de montagem. Mesmo assim, a eficiência do programa era tamanha que, embora o B-2 tenha levado metade do tempo para ser construído, os problemas com encaixe de peças causados por erros de engenharia foram seis vezes menor que o normal. Embora computadores com sistema CAD/ CAM possam não só conceber componentes e peças do projeto como até simular testes de resistência e fadiga, é necessário que testes reais sejam realizados em todos os sistemas do avião. Esses ensaios são voltados para aspectos particulares, às vezes um detalhe único.
Os bens de pouso são testados num laboratório dedicado exclusivamente a eles, onde sistemas hidráulicos simulam os choques e desgastes que sofrerão nas decolagens e, sobretudo, nas aterrissagens. Na série de ensaios estruturais — estáticos, dinâmicos e de fadiga—, é avaliado o conjunto da aeronave. Nos ensaios estáticos, o objetivo é verificar as condições críticas a que pode ser submetido um avião. Macacos hidráulicos podem vergar uma asa até o seu rompimento, e assim estabelecer vários padrões de segurança, como a capacidade de rolamento (manobra em que a aeronave gira em seu eixo longitudinal). Já os ensaios dinâmicos são executados com equipamentos que vibram toda a estrutura do avião na simulação dos movimentos de um vôo real. Os ensaios de fadiga buscam estabelecer a relação entre tempo de uso e desgaste de toda a estrutura e de cada componente em particular. Para isso, são simuladas as condições de uso ao longo de toda a vida da aeronave quando em operação.
Para testar todos os sistemas do avião, como o elétrico, o de integração motor/sistemas e os aviônicos (todos os computadores de bordo), são feitas bancadas especiais, chamadas rigs. Um modelo da cabine completamente equipada. por exemplo, é colocado em laboratório onde computadores examinadores são ligados aos de bordo, simulando seu funcionamento durante um vôo. Assim, verifica-se se os sistemas eletrônicos da aeronave funcionam como planejado e se os mostradores da cabine fornecem ao piloto informações confiáveis e seguras. Computadorizadas como são hoje as aeronaves de combate, estes testes dos sistemas elétricos- eletrônicos devem ter a precisão de uma cirurgia no cérebro. Inclusive porque hoje a última palavra em tecnologia são os comandos FBW (fly by wire, ou vôo por fios), em que todas as manobras do avião são comandadas por impulsos eletrônicos controlados por computador.
É óbvio que o FBW produz aeronaves com capacidade e rapidez de manobras inigualáveis, mas também é fácil imaginar que qualquer falha mínima nos computadores de vôo resultaria quase certamente na queda fatal da aeronave. Alguns dos testes específicos pareceriam engraçados, se os motivos de sua realização não fossem trágicos. No Laboratório de Impacto, frangos são arremessados em alta velocidade contra algumas partes do avião, para se ter a medida dos estragos provocados nas aeronaves por choques com aves em vôo. Cortando o ar a mais de 1 000 quilômetros por hora, um avião como o AMX pode ter seu cockpit estilhaçado, com a morte do piloto, ou até o bordo de uma asa rasgado por uma colisão dessas. Um canhão atira em alta velocidade frangos anestesiados com éter contra as partes em que se quer testar a resistência ao choque — como o pára brisa ou todo o cockpit, ou mesmo uma asa.
O teste segue padrões internacionais que ditam, inclusive, que as aves não podem ser mortas previamente, porque isso alteraria a sua consistência. Conforme a tecnologia evoluiu, mudaram as características dos caças, e com elas os materiais usados em sua fabricação. Até o final dos anos 60, o objetivo era fazer aviões que voassem cada vez mais alto e mais rápido, pois isso se traduzia em capacidade de entrar no espaço aéreo inimigo. Construíam-se aviões com ligas metálicascada vez mais fortes, para resistir ao impacto do ar com Mach 3, ou três vezes a velocidade do som — como o SR-71 Blackbird, que sofria abrasão como se a fuselagem fosse mergulhada em ácido. Hoje, com o desenvolvimento dos mísseis terra-ar, capazes de abater um avião a qualquer altitude e velocidade, a melhor tática é tentar penetrar no espaço aéreo sem ser captado pelo inimigo. Há duas maneiras de fazer isso — ou se voa em alta velocidade a apenas alguns metros do solo, como o Tornado, ou se reveste o avião com uma roupa invisível, usando a tecnologia stealth (furtivo).
A idéia stealth é fazer um avião com formas irregulares e superfície coberta por materiais não-reflexivos, como os compostos de fibra de carbono e epóxi, para dispersar as ondas de radar enviada pelo inimigo e evitar que ele o “enxergue”. Durante a Guerra do Golfo, a primeira geração de aviões furtivos os F-117, provou seu poder de fogo. No relatório apresentado ao Subcomitê de Defesa da Câmara dos Deputados dos Estados Unidos, o general Charles A. Horner calculou: oito F-117 com oito pilotos alcançariam os mesmos resultados de 75 aviões não furtivos com mais de 100 tripulantes. No primeiro dia da guerra, os F-117 representavam apenas 2,5% da frota, mas foram encarregados de atacar 30% dos alvos — e destruíram as defesas antiaéreas iraquianas. Embora o B-2 tenha nascido perfeito, como alegam seus fabricantes, os aviões normais sempre viram protótipo depois da fase de projetos. É hora então dos testes de vôo com o protótipo, pois, segundo Walter Bartels, da Embraer, “não existe simulação de computador que dê a riqueza de análise de um teste de vôo”. De fato, são comuns e freqüentes as modificações ingeridas no projeto como resultado destes testes. E para isso é fundamental a figura lendária do piloto de testes.
“O primeiro vôo está longe de ser o mais emocionante, porque ele deve ser o mais simples possível para uma avaliação rápida e geral da aeronave. É só decolar, sacudir a poeira e pousar, e se fizer isso direitinho já é um sucesso”, conta o comandante Gilberto Pedrosa Schittini, 42 anos, 7 000 horas de vôo, piloto de testes da Embraer desde 1985. Envelope de vôo são todas as combinações de altitude, velocidade e ângulo de ataque em que uma aeronave pode operar. Uma série de vôos é feita para abrir o envelope, ou seja, testar o comportamento da aeronave em todas estas situações em que ela vai voar, e até exceder um pouco os limites para que o usuário possa operá-la com segurança. Outros vôos são para as manobras clínicas, usadas para testar a aeronave como máquina voadora, comuns a todos os aviões. Já as manobras operacionais são específicas para avaliar a eficiência da aeronave nas missões para as quais foi concebida.
Existem séries de vôo especificas para o teste de cada sistema. No AMX só a série dedicada ao sistema de vôo inicial envolveu Cinqüenta vôos. Satisfeitos os testes de vôo, finalmente começa a fabricação em série e a entrega às esquadrilhas que vão usar o avião. Do início do projeto até a fabricação, o número de pessoas que trabalham num avião de guerra pode chegar a 5 000, com custos estratosféricos. Construído por um consórcio trinacional, o Tornado custou desde o desenvolvimento do projeto 627 milhões de dólares. Quando começou a ser entregue às esquadrilhas de combate, em 1979, cada Tornado custava 6,37 milhões de dólares, e a previsão inicial era a aquisição de 385 aviões pela Grã-Bretanha, 322 pela Alemanha e 100 pela Itália. Para se ter uma comparação, em 1939 o contrato de compra de 524 caças Curtiss P-40 Hawk pela Força Aérea americana totalizou o valor de 13 milhões de dólares — ou seja, 24 809 dólares por avião.
Para saber mais:
(SUPER número 7, ano 8)