Leis
Nosso Código Penal prevê penas muito brandas? Faz sentido dar tanto benefício a um condenado? Veja como melhorar a legislação e reduzir a impunidade.
Yuri Vasconcelos
Uma jovem é assassinada a tesouradas, por um colega de trabalho e sua esposa, num matagal ermo. A vítima foi emboscada e não teve chance de se defender. A polícia prende os assassinos e a Justiça os condena. O rapaz, a 19 anos de prisão, por homicídio qualificado (com agravantes). A mulher, como cúmplice, a 18 anos e 6 meses. Mas eis que, dez anos depois do início das sentenças, os dois já estão em liberdade, graças a indultos e benefícios previstos em lei.
Para quem ainda não identificou o caso, trata-se do assassinato da atriz Daniela Perez, pelo qual foram condenados Guilherme de Pádua e Paula Thomaz. O desfecho da história gerou revolta em familiares e amigos de Daniela e em parte da sociedade. Mas é preciso lembrar que tudo foi feito de acordo com a legislação em vigor. Nenhuma lei foi violada no caminho do processo, até a libertação dos dois. Para alguns, essa permissividade da legislação é a causa da criminalidade. Outros acham que o problema não reside nas regras, mas em seu cumprimento. Ao final, resta a questão: é essa a lei que a sociedade quer hoje para julgar quem infringe as regras do convívio social?
Antes, um histórico. O Direito Penal brasileiro fundamenta-se sobre três conjuntos de leis: o Código Penal, o Código de Processo Penal e a Lei de Execução Penal. Aos dois primeiros, uma das principais críticas é a de que eles estão ultrapassados, por terem sido escritos há várias décadas, num tempo em que os casos de seqüestro e narcotráfico, por exemplo, eram raros.
O Código Penal, escrito em 1940, transformou-se, nos últimos anos, numa enorme colcha de retalhos, tantas foram as emendas que tentaram atualizá-lo. É ele que descreve o que é crime e determina a pena para cada tipo de infração. O Código de Processo Penal, de 1941, é o que determina os passos que a Justiça deve respeitar diante da ocorrência de um crime, da investigação policial ao julgamento. É seu anacronismo que faz com que os processos se arrastem lentamente e com tantas protelações, em geral a favor dos criminosos. Por fim, a Lei de Execução Penal, de 1984, define as condições em que o sentenciado cumprirá a pena.
Considerada falha em muitos pontos, ela permite, por exemplo, que, depois de cumprido um sexto da pena, boa parte dos condenados alcance o privilégio de voltar às ruas para cumprir o restante da sentença no regime semi-aberto, no qual o sentenciado passa o dia em liberdade e só volta à noite para a prisão. Foi essa lei que devolveu a liberdade aos assassinos de Daniela Perez depois de cumprirem pouco mais da metade da pena.
Muitos especialistas acreditam que não é possível combater a criminalidade com leis tão ultrapassadas e cheias de anomalias. De fato, há distorções. A pena para um homicídio doloso (com intenção), por exemplo, vai de 6 a 20 anos, enquanto o tempo de cadeia para um funcionário público que mexer num computador para tirar vantagem indevida pode chegar a 12 anos. Num caso extremo, um homicida pode ficar seis anos atrás das grades, e um burocrata corrupto, o dobro do tempo. Essa distorção, que faz com que as penas para crimes contra o patrimônio sejam mais severas do que as para os crimes contra a vida, permeia vários artigos do Código Penal Brasileiro.
Maior agilidade
Corrigir tais falhas não é uma tarefa fácil. A mudança de uma lei depende da aprovação do Congresso Nacional e da sanção do presidente da República, o que não acontece da noite para o dia. É comum, aliás, uma mudança passar tanto tempo esperando aprovação que, ao entrar em vigor, já está ultrapassada. Mas há solução. Segundo Amilcar Aquino Navarro, presidente da Comissão de Acompanhamento Legislativo da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de São Paulo, tramitam hoje no Congresso Nacional mais de 100 projetos relacionados à violência, desde os que prevêem restrições à venda de armas até os que endurecem a pena para seqüestro.
Uma das mais interessantes é uma proposta de reforma do Código de Processo Penal entregue em março de 2001 aos parlamentares e que aguarda para ser votada. Formulada por uma equipe de juristas a pedido do Ministério da Justiça, ela ataca uma das maiores deficiências da Justiça: a falta de agilidade, que lhe dá o já gasto apelido de “morosa”. Dividida em oito projetos de lei, a proposta limita o prazo dos inquéritos policiais em 60 dias, eleva o valor máximo de fiança de 500 reais para 3 milhões de reais e reformula os procedimentos dos julgamentos. Se aprovada, exigiria que os processos fossem concluídos em um ano, ao contrário dos habituais três ou quatro anos. Segundo o juiz aposentado e professor de Direito Luiz Flávio Gomes, um dos autores da proposta, também serão eliminados vários dos recursos que hoje só servem para que réus com bons advogados possam adiar o momento de encarar a Justiça. Exemplo disso é o que dá a todo condenado a mais de 20 anos de cadeia o direito a novo julgamento. Sabe-se lá qual
a lógica disso, mas hoje é assim: os teoricamente mais perigosos têm direito a uma nova chance.
As sugestões de mudanças legislativas não param por aí. Muitos defendem medidas de caráter preventivo para reduzir a criminalidade, como a duplicação da pena para crimes contra policiais. “Estou certo de que os bandidos fazem esse cálculo e, sabendo que a pena é mais alta, pensariam duas vezes antes de atirar num policial”, afirma Amilcar Navarro, da OAB.
Outra solução seria a criação de leis para combater crimes específicos que hoje não estão devidamente tipificados na legislação, como delitos pela internet e o crime organizado. “Algumas condutas que hoje não são punidas ou punidas de forma distorcida devem ser previstas em leis mais apropriadas”, diz o criminalista Maurício Zanóide de Moraes, de São Paulo. O crime organizado também está na mira dos legisladores. Seis projetos tornando mais dura a legislação sobre esse tipo de crime – já existem no país duas leis sobre o assunto – tramitam no Congresso. Um deles tipifica o crime organizado como hediondo e agrava a punição. Outro, de autoria do governo, altera a Lei Antidrogas e cria mecanismos para que traficantes condenados permaneçam mais tempo atrás das grades. O projeto propõe punições diferentes para quem promove o tráfico, para quem financia a atividade criminosa e para quem forma quadrilha. A idéia é dar um caráter cumulativo às punições para combater com mais eficiência esse tipo de crime.
Penas mais duras
Ao analisar as sugestões para reformulação do Direito Penal brasileiro, percebe-se que os juristas dividem-se em duas correntes, com idéias bem diferentes. Os mais conservadores defendem que a solução para acabar com a violência é endurecer a lei e aplicar penas severas para bandidos violentos, com o objetivo de mantê-los por um longo tempo presos. Hoje, o tempo máximo que uma pessoa pode ficar presa é 30 anos, mesmo que tenha sido sentenciada a mais de 100, como é o caso do motoboy Francisco de Assis Pereira, o maníaco do parque.
O promotor Carlos Eduardo Fonseca da Matta, da 3ª Procuradoria de Justiça do Ministério Público de São Paulo, defende essa tese. “No Direito Penal realmente científico, o importante é conter o criminoso”, diz. “A idéia de reabilitação é uma falácia. O papel do Direito Penal é proteger a sociedade e, por isso, latrocidas, estupradores e seqüestradores têm que ficar presos por um longo período para que não possam cometer novos crimes.”
Mas há quem pense diferente e se guie pelas idéias do jurista italiano Cesare Becaria, do século XVIII, para quem o que inibe o crime não é o tamanho da pena, mas a certeza da punição. O criminalista Maurício Zanóide de Moraes, de São Paulo, é um deles. Para ele, a lei deve sofrer ajustes que tornem os processos mais ágeis e corrijam suas distorções, como no caso das penas para crimes patrimoniais e contra a vida. “A criminalidade nunca foi resolvida com a repressão dura. A pena de reclusão está superada como forma de reeducação”, afirma. O jurista Luiz Flávio Gomes concorda: “O certo não é o endurecimento das penas, mas a aplicação da lei. Isto é uma ‘crimidiotice’”.
Em meio a esse debate, a redução da maioridade penal é um dos temas mais polêmicos. Hoje, menores de 18 anos são inimputáveis, o que significa que, ao cometerem um crime, não são presos, mas enviados para unidades da Febem onde cumprem medida socioeducativa. Para os linha-dura, punir os menores de 18 anos como adultos é um passo para a redução da criminalidade. “Só no Brasil o menor criminoso é tratado como coitadinho”, afirma o promotor da Matta. “Nos Estados Unidos, eles chegam a ser condenados à pena de morte.”
Defensor do tratamento mais tolerante com os adolescentes, Eduardo Dias de Souza Ferreira, promotor da 1ª Vara Especial da Infância e Juventude de São Paulo, é contrário à medida. “A redução da idade de responsabilidade penal não contribuirá em nada para combater a violência”, diz. “Hoje você reduz para 16 anos, amanhã para 14 e daqui a algum tempo vai ter gente defendendo que se mate a criança ao nascer. A culpa vai ser da parteira.” Segundo Ferreira, apesar das mazelas da Febem, o índice de reincidência de menores infratores é bem inferior ao de presidiários. “Um trabalho socioeducativo intenso com esses adolescentes infratores é mais eficaz para a recuperação do que o confinamento numa cadeia”, diz ele. Ou seja, para ele, o tratamento diferenciado reduz, de fato, a criminalidade entre adolescentes.
Há quem veja o caminho entre uma coisa e outra. Um dos pontos mais controversos da legislação sobre menores infratores prevê que, seja qual for o crime cometido, o culpado permanecerá interno na Febem por, no máximo, três anos ou até completar 21 anos. Essa restrição, acreditam alguns especialistas, é um estímulo à participação de jovens em quadrilhas de bandidos, além de, muitas vezes, servir à impunidade, pois as quadrilhas imputam a culpa de todos os seus crimes ao integrante menor de idade. Para o juiz Luiz Flávio Gomes, a redução da maioridade penal não seria problema se o infrator com menos de 18 anos recebesse uma pena diferente, não tão intensa quanto a de detentos comuns, e que a cumprisse longe dos demais presos. “Mas, se o colocarmos numa prisão, ele sairá um criminoso ainda mais violento do que entrou”, diz.
Para quem vê o tamanho da pena como um freio à criminalidade – seja pelo efeito de dissuasão, seja pelo tempo que mantém o criminoso fora de circulação –, é brando demais no Brasil o tratamento dado aos reincidentes e o regime de progressão de pena para criminosos violentos. Graças à progressão, mesmo condenados por homicídio, como vimos no caso da atriz global, cumprem parte da sentença em liberdade. Amilcar Navarro, da OAB, defende que, a exemplo do que acontece em outros países, sejam extintos os regimes aberto e semi-aberto para os autores de crimes violentos. Quanto aos reincidentes, a idéia é aplicar penas mais longas a cada novo delito, com perdas na possibilidade de progressão. Ou seja, quanto mais vezes o sujeito reincidir no crime, maior será sua pena e menor sua possibilidade de se beneficiar das facilidades da lei.
Só assim, defende o promotor da Matta, seria possível interromper a “porta giratória da Justiça”, mecanismo pelo qual o condenado por um crime grave fica preso por pouco tempo para em seguida voltar às ruas e tornar a delinqüir.
O que precisa ser feito
• Tirar os presos condenados das delegacias.
• Corrigir as distorções do Código Penal que prevêem penas mais severaspara crimes contra o patrimônio do que para crimes contra a vida.
• Rever o regime de progressão penal (que dá à maioria dos condenados direito à liberdade depois de cumprido um sexto da pena, para quem comete crimes violentos).
• Agravar as penas para criminosos violentos reincidentes.
• Criar leis contra crimes específicos, como delitos cometidos pela internet e crime organizado.
• Agravar as penas para o crime organizado.
• Modificar a lei para evitar que menores de 18 anos reincidentes em crimes violentos livrem-se da pena até os 21 anos.
Linha do tempo
1603
Surge o primeiro Código Penal, ainda no Brasil Colonial, batizado de Livro V das Ordenações do Rei Felipe II. Fundamentado em preceitos religiosos, o crime confundia-se com o pecado e com a ofensa moral. As penas eram cruéis, desproporcionais e severas.
1830
Fica pronto o Código Criminal do Império, a legislação penal prevista pela Constituição de 1824. Apesar da tendência liberal, previa a pena de morte.
1890
Com a instauração da República, é editado um novo Código Penal. Entre outras coisas, ele abole a pena capital e cria o regime penitenciário de caráter correcional.
1890 a 1932
Feito a toque de caixa, o estatuto penal dos republicanos deixa muitas lacunas. Na tentativa de torná-lo mais eficiente, são criadas inúmeras leis. O código parece uma colcha de retalhos.
1932
No início da Era Vargas, é editada a Consolidação das Leis Penais de Piragibe, para agrupar todas as emendas feitas ao Código Penal nos 40 anos anteriores. Composta de quatro livros e 410 artigos, vigorou até 1940.
1940
É promulgado o Código Penal, que só entra em vigor em 1942, junto com o Código de Processo Penal. Considerado uma legislação eclética, teve inspiração nos códigos da Itália e da Suíça.
1941
Edição do Código de Processo Penal, que trata do rito do Judiciário, da investigação criminal ao julgamento. Considerado falho por muitos, ainda está em vigor.
1969
Durante a vigência do regime militar, houve várias tentativas de reforma da legislação penal brasileira. É aprovado um anteprojeto elaborado pelo ministro Nélson Hungria. Alvo de severas críticas, acabou sendo revogado em 1978.
1984
O Código Penal de 1940 sofre sua primeira grande reformulação, com a alteração de sua Parte Geral, na qual encontram-se as regras básicas que orientam a interpretação e a aplicação da Parte Especial, que prevê os crimes e as penas.
1984
Entre as mudanças, uma sobressai: a criação da Lei de Execução Penal, que prevê a forma de cumprimento da sentença. Considerada muito frouxa por alguns juristas, é ela que permite o abrandamento das sentenças depois de cumprida parte da pena.
1998
É criada a Lei de Crimes Hediondos, que prevê penas mais duras para criminosos violentos.
2001
Na tentativa de desburocratizar o rito da Justiça e agilizá-la, são encaminhados ao Congresso Nacional oito projetos de lei para reformar o Código de Processo Penal. As propostas devem ser votadas este ano.
2002
Uma onda de violência mobiliza o Congresso para discutir, em caráter de emergência, um pacote de leis para combater o crime. Entre elas, figuram propostas relacionadas à redução da maioridade penal, criação de penas alternativas e tipificação de crimes hediondos.