Meu dia em 2112
Tenho uma tarefa ingrata: contar um dia na minha vida para um leitor de cem anos atrás. E de forma que ele me entenda. Difícil. Naquele tempo, eles ainda usavam as mãos para escrever, acredita?
Rodrigo Rezende
1º de agosto de 2112.
Caro leitor,
Esta matéria é para comemorar os 125 anos da SUPER. Talvez você ache que teletransporte e telepatia são hoje coisas corriqueiras. Bem que eu gostaria de teletransportar meu chefe ou ler a mente das mulheres. Pena que nada disso existe hoje. Talvez haja no futuro. Mas não ouso cravar isso. Em 2012, o pessoal da SUPER não tinha aprendido a lição da edição número 1, com os supercondutores. Tentaram prever o futuro mais uma vez. Sem sucesso, claro. Agora não vamos cair no mesmo erro. Por isso, decidimos escrever esta matéria para um leitor do passado. Para você de 2012: bem-vindo ao presente.
8h00
“Bom dia. em 2142 você Terá câncer”, diz o médico que se materializa assim que entro no banheiro. Mas nem ligo. Todo dia de manhã o app médico vem com algum diagnóstico diferente. Alimentado por milhares de sensores que buscam sinais de doenças 24 horas, ele sabe tudo sobre meu corpo. Também pudera: há sensores na privada, nas minhas roupas, na cama e até no chão. Todos prontos a disparar a qualquer sinal de proteína que indique doença. Mas o câncer não me assusta porque sei que os nanobots vão dar conta do recado. Esses robozinhos menores que o ponto em cima deste “i” circulam pela minha corrente sanguínea o tempo todo, exterminando qualquer célula cancerosa. Aí em 2012 você ainda não está tão tranquilo, mas as coisas estão evoluindo. Na sua época, cientistas do Hospital de Massachusetts criaram um chip capaz de identificar câncer em 115 de 116 pacientes com a doença. Já para os cientistas em 2112, câncer é fichinha perto de outro inimigo: a gripe. Eu mesmo estou meio mal agora e não tenho muito o que fazer. As mutações do vírus da gripe continuam dando um baile na medicina.
9h30
Checo meus e-mails. Logo na primeira mensagem, meu chefe se materializa na cadeira do escritório e grita: “Quando você entrega esse texto?”. Na realidade, não tem ninguém na cadeira. Se eu o vejo, é porque está dentro do meu olho. Calma. Parece esquizofrenia, mas é só tecnologia. Eu uso uma lente de contato eletrônica com acesso à internet. E a imagem do meu chefe está projetada nela. Ela tem a mesma resolução que a minha retina e simula um espaço 3D tão bem quanto meu olho. É ela que traduz instantaneamente para a minha língua o que colegas indianos e chineses falam em nossas teleconferências. E que traz meus amigos virtualmente ao bar quando saio sozinho. Em 2012, só existem protótipos dela. Um deles foi o do cientista Babak A. Parviz, que conseguiu colocar uma tela de LEDs com resolução de 8×8 dentro de uma lente de contato. Pena que não dava nem para jogar Atari nela. Outra versão foi o paleozoico Google Glass. Aí no passado foi até publicado no YouTube um vídeo com um protótipo dele.
10h15
“Preparar carro”. Basta o pensamento para ele se ligar e me esperar na porta de casa. Desperdício de combustível? Nada disso. Muitas décadas depois do originalmente previsto pela primeira SUPER, os supercondutores finalmente entraram para o dia a dia. Carros, trens e ônibus agora são todos movidos por eletromagnetismo. O petróleo hoje vale menos que água. Estradas foram substituídas por trilhos para supercondutores. Mas está na hora de sair. Penso “abrir porta”. A porta de casa se abre. E não é telecinese. Infelizmente, ainda dependo de um aparelho para poder acionar objetos com a mente. É o tradutor mental: um conjunto de sensores eletromagnéticos em forma de capacete que capta a atividade dos meus neurônios e interpreta exatamente o que penso. Ele se conecta à internet e comanda tudo, do editor de texto ao micro-ondas. Pois é: a neurociência avançou bastante nos últimos 100 anos. Aí em 2012 já existem formas rudimentares do tradutor mental: gente jogando videogame e macacos controlando braços mecânicos com a mente em laboratório. Mas o primeiro a usar um tradutor mental de fato foi o gênio da física Stephen Hawking. Desenvolvido por cientistas do MIT, o tradutor com a tecnologia iBrain permitiu que o físico se comunicasse mesmo depois da paralisia total no corpo.
10h30
Dirigir é coisa do passado. A onda agora é viajar parado. O carro faz tudo sozinho: estaciona, calcula o trajeto e dá a partida. Aí em 2012 você também não está muito longe disso. Foi no seu ano que o Google conseguiu licença para andar com um carro sem motorista nas ruas de Las Vegas (EUA). A tecnologia do seu tempo ainda era baseada em câmeras, radar e laser. Mas pelo menos funcionava. Já o meu carro aqui não quer sair do lugar. Será defeito de software? Checo pela lente de contato se ele está atualizado. Ok, está. Abro na lente o programa “Conserte Tudo 2112”. Nada. Deve ser problema nessa maldita lente. É ela que liga o carro. E é ela que… Opa, uma moça piscando em vermelho no meu campo visual. Programei a lente para sinalizar toda vez que passar alguém compatível com o meu perfil. Pelo menos alguma coisa ainda funciona direito. Vou pedir ajuda a ela.
10h35
Meus problemas acabaram: carro arrumado. E ainda descolei o ID da lente da moça – algo como o número de celular mais perfil de Facebook em 2012. Ela me deu uma mãozinha no conserto. Agora só preciso resolver um detalhe: perdi minha mão. Dei bobeira enquanto acenava um tchau para a moça no meio do trilho supercondutor, e um carro superveloz decepou minha mão na hora. Mas tudo bem. Era biônica mesmo. Compro outra logo mais. Tinha essa mão desde os 15 anos, quando era moda trocar órgão biológico por mecânico – do mesmo jeito que era moda fazer tatuagem no século passado. Estranho? Não tanto. Aí em 2012 já tem gente trocando mão biológica por biônica – como um austríaco de 26 anos que vai amputar sua mão sem movimentos e substituí-la por uma prótese. A diferença é que hoje trocamos mãos, pernas e outros órgãos em bom estado por partes mecânicas. Afinal, elas são mais fortes e têm coordenação motora melhor. Não quer ser androide? Também não tem problema. Se perder um olho, um rim ou um pulmão, basta ir à loja de órgãos e comprar um novo. Graças à evolução da engenharia genética, agora é possível criar um órgão inteiro a partir de um punhado de células.
13h45
“Oi, moça. Tudo bem?” Assim que ela atende a ligação da minha lente, é como se eu me teletransportasse para uma cadeira dentro do ateliê onde ela trabalha. No canto do meu campo visual, vejo uma cena digna do histórico Exterminador do Futuro. Com um comando de seu tradutor mental, a moça dá ordens a um nanobot. Ele vai até uma pilha de matéria e começa a se reproduzir, tal como seres unicelulares. E, em segundos, bilhões de nanobots esculpem o bloco de matéria. Surge do nada uma obra de arte. É assim que se constroem objetos em 2112. Basta projetar um design ou fazer um download direto na internet e mandar para os nanobots. Aí em 2012 você pode achar que está a anos-luz dessa tecnologia. Mas cientistas da Intel já trabalham em um meio de montar objetos usando as propriedades de atração e repulsão na carga elétrica da matéria. Enquanto os nanobots esculpem, eu tento agilizar o meu lado com a moça: “Você conhece o restaurante do elevador espacial?”, pergunto. Sem desviar o olhar da escultura, ela responde: “Não”. Eu: “Quer conhecer?”. Ela:”Pode ser”. Eu: “Hoje às 21h00?”. Ela: “Ok. Conversamos lá. Até!”. De repente, a sala de casa aparece de novo na minha lente. E um sorriso aparece nos meus lábios.
21h00
Céu azul. Nuvens e mais nuvens. O elevador espacial sobe mais ou menos como um avião em 2012. Mas aí o céu vai ficando roxo. E cada vez mais escuro. Estrelas começam a aparecer. De repente, surge a Terra azul lá embaixo. Pronto: estamos no espaço. Em essência, o elevador espacial é uma haste de 100 mil km de altura fincada na superfície da Terra. Mas como um haste 8 vezes maior que o diâmetro do planeta e que alcança um quarto da distância até a Lua consegue ficar de pé? A resposta está na física e nos nanotubos de carbono. Gire uma bola de tênis amarrada a um cordão. A corda não fica fixa, esticada? O mesmo princípio é usado no elevador com a rotação da Terra. Só que a rotação da Terra é de 1 670 km/h na linha do Equador – tão rápido que estouraria qualquer cordão. A menos que ele fosse feito de nanotubos de carbono, um material 180 vezes mais duro que o aço. Ele já existe aí em 2012. Mas os cientistas ainda só conseguiam fabricar tubos de poucos centímetros. Chegamos ao restaurante, que fica em um satélite geoestacionário a 35 mil km de altura. Logo que sentamos à mesa, ela me diz: “Eu sou de câncer”. E aponta para a constelação de câncer pela janela. O tradutor mental lê meu cérebro e percebe que não sei nada de zodíaco (se ainda existe até 2012 por que não continuaria existindo aqui em 2112?). Então, minha lente mostra o texto que repito: “Quer dizer que você é muito ligada à família, não é… (Ops, qual o nome dela? Aparece na lente: Renata)… Renata?” Ela me olha com cara de que ouviu palavrão. “Desculpa, Ana” – tento o segundo sopro da lente. Cara de que chupou limão. “Quer dizer, Elisa!” – o jeito é improvisar. Ela vira de lado, olha para o espaço e me deixa no vácuo. Sem saber o que fazer, vou ao banheiro. Maldita lente com defeito! No meio do caminho, lembro: Carolina! De nada adianta. Minha mesa já está mais vazia que o espaço sideral. Lá fora no mirante, Carol conversa com 2 amigos reais e 3 virtuais. No meio do restaurante, coloco a mão no olho, jogo a lente no chão e piso em cima. Essa lente só serve mesmo é para lixo espacial. Pois é, amigo de 2012. O futuro chegou. Mas a vida continua não sendo fácil.
Dá uma olhada neste vídeo e veja como provavelmente será a sua vida:
[vimeo https://www.vimeo.com/46304267 w=500&h=281]
Sight from Sight Systems on Vimeo.
Para saber mais
A Física do Futuro,
Michio Kaku, Rocco, 2012