O céu que a gente não vê
Embarque numa exposição virtual e viaje pelos mais belos atlas celestes de todos os tempos.
Wanda Nestlehner
Quando o planeta Urano foi descoberto, em 1781, os astrônomos não tiveram trabalho para calcular sua órbita – um mapa do céu de 1690 já o mostrava, embora como uma estrela. Poucos, entre aqueles que se admiram com sua plasticidade, sabem que os atlas celestes tiveram momentos assim, nobres, na história da Astronomia. Para celebrar esse conhecimento, a Linda Hall Library, de Kansas City, Estados Unidos, abriu na Internet a exposição Out of This World (Fora Deste Mundo). São imagens de 43 livros feitos entre 1482 e 1851. Obras que estão entre as mais belas já produzidas pela ciência, ainda que o conhecimento disponível neste final de milênio as faça parecer ingênuas.
Ao olhar para o céu hoje, em lugar de seres imaginários especulamos sobre viagens a outros planetas. Mas por milênios o firmamento foi apenas uma cúpula cheia de pontos brilhantes onde se vislumbravam vultos familiares, como os de um caçador ou leão. Acompanhando a posição deles dava para prever as estações e se orientar longe de casa. Conforme as culturas se sucediam, novos desenhos surgiam. Os sumérios, há 5 000 anos, rabiscaram heróis e deuses no céu. Animais formados por estrelas aparecem em tumbas egípcias de 2000 a.C. Os gregos assimilaram as imagens e criaram outras.
A relação entre o movimento das constelações e o clima levou à crença de que eles podiam interferir no destino do homem. Era o começo da Astrologia, a pseudociência que se organizou melhor a partir do século V a.C., com a criação do zodíaco, divisão da esfera celeste em doze pedaços, os signos. “Ela foi a mola propulsora do conhecimento do céu”, admitiu à SUPER o físico Walmir Cardoso, presidente da Sociedade Brasileira para o Ensino da Astronomia. Para saber o que os astros diziam era preciso observá-los e registrar as observações. Com o advento da imprensa, os mapas passaram a ser impressos, o primeiro em 1482. Entre 1603 e 1801, resumiram o saber astronômico. Até o progresso da técnica gradualmente extirpar seu charme fantasioso, eles também foram ciência.
Algo mais
Até 1600, os mapas celestes usavam o catálogo organizado pelo grego Ptolomeu no século II. Ele trazia as posições de 1 025 estrelas, organizadas em 48 constelações. Acima, uma versão impressa em 1515.
Loteamento do céu deixou os mapas feios
Constelações foram criadas e banidas incessantemente do firmamento até 1922, quando a União Astronômica Internacional loteou o céu em 88 áreas. Embora muitas conservem os nomes antigos, seus traçados tornaram-se geométricos, sem graça. “Os astrônomos descobriam mais e mais estrelas e as imagens os atrapalhavam”, disse à SUPER William Ashworth, da Universidade do Missouri e consultor de História da Ciência na Linda Hall Library.
Houve um tempo, porém, em que os desenhos eram fundamentais para a observação das estrelas. Elas eram descritas por sua posição na constelação. “Betelgeuse aparecia nos catálogos como aquela que fica no ombro direito de Órion”, conta Ashworth. Por isso, em 1603, Johann Bayer criou uma certa confusão quando resolveu mostrar as figuras humanas de costas. O ombro direito virou esquerdo.
Apesar de arbitrariedades do gênero, os atlas refletiam as descobertas da área. O Globi Coelesties, do jesuíta francês Ignace-Gaston Pardies, de 1674, mostrou as rotas dos cometas de 1577, 1607, 1619 e 1664. Em 1729, o astrônomo inglês John Flamsteed começou a desenhar as primeiras nebulosas. Elas seriam cerca de 2 500 no famoso Uranografia, de Johann Bode, de 1801.
Um dos primeiros a incluir constelações do hemisfério sul, a partir de informações dos navegadores, foi Bayer. Eram doze, quase todas com a forma de animais exóticos, como o tucano ou o camaleão. Seu trabalho foi aperfeiçoado em 1751, quando o francês Nicolas Lacaille viajou à África do Sul – naquela época uma aventura e tanto – só para olhar o céu. Acabou reformando a cara do planisfério inteiro e criou catorze novas constelações.
Mais do que pela beleza, o mapa de Lacaille chama atenção por homenagear marcos da evolução tecnológica, como o relógio doméstico, de meados do século XIV, o telescópio, de 1609, e o miscroscópio, que começou a ver bactérias em 1674 mas só se tornou universal após 1830. “É natural que as constelações representassem símbolos de seu tempo”, diz Walmir Cardoso. “Se fôssemos desenhá-las hoje, faríamos aviões, computadores”, brinca. Até que não é má idéia.
Para saber mais
Cartas Celestes, Carole Stott, Dinalivro, Lisboa, 1992
Linda Hall Library, https://www.lhl.lib.mo.us