O fascínio dos cometas
Sempre foram um espetáculo para os observadores. Mas os cientistas também querem arrancar deles a verdade sobre a origem do sistema solar.
Martha San Juan França
No Laboratório Nacional de Astrofísica, no Pico do Dias, município mineiro de Brasópolis, houve noites em que os astrônomos desviaram o foco dos telescópios das regiões mais longínquas do Universo e solenemente desprezaram a possibilidade de enxergar novas galáxias, estrelas ou até mesmo corpos estranhos como os quasares. Em vez disso, como tantos outros colegas e observadores amadores do mundo todo, eles se aglomeraram feito crianças no observatório, a 1860 metros de altura, e, sem se importar com o ar gelado da montanha, ficaram pacientemente esmiuçando o céu à procura de um risco luminoso.
Foi emocionante, recorda o fotógrafo Rodrigo Campos, do Observatório Nacional. De setembro de 1985 a julho de 1986, sob orientação do professor Oscar Matsuura, da Universidade de São Paulo, Rodrigo tirou 280 placas fotográficas daquele risco – o caprichoso cometa Halley. Para ele, como para os demais observadores do cometa, a aparição do Halley foi um evento único, pelo qual valia a pena esquecer temporariamente todas as outras pesquisas. Não tanto pelo visual, porque o Halley não foi tão espetacular assim. Mas pelo fascínio que cerca o seu aparecimento”, explica Rodrigo. Ex-fotógrafo de publicidade que há dez anos se dedica a registrar o desfile de astros no céu, ele já viu e fotografou os cometas menos populares mas não menos importantes que o Halley, como o Giacobini-Zinner, Wilson e IRAS-Araki-Alcock.
Essa predileção pelos cometas, como ele mesmo define, não tem nada a ver com a forma majestosa desses astros – uma fita de luz de quilômetros de comprimento, às vezes mais brilhante do que qualquer estrela. Por isso, os antigos poeticamente associavam os cometas a mulheres de longas cabeleiras penteadas pelo vento para trás. E daí a origem do nome, derivado da palavra grega que significa cabelo. Mas os modernos astrônomos não estão preocupados com poesia. Para eles, os cometas são dignos de estudo como relíquias do passado, fósseis siderais de 4,6 bilhões de anos, remanescentes dos primeiros tempos de formação do sistema solar. Armazenados na chamada Nuvem de Oort, além de Plutão, estão protegidos pela distância dos efeitos da radiação e do impacto dos meteoritos. Além disso, não manifestam naquelas lonjuras atividade vulcânica nem outros fenômenos que afetaram satélites e planetas.
De vez em quando, por algum motivo ainda mal compreendido – que pode ser a passagem de uma estrela ou mesmo o efeito das marés da Via Láctea (como entre a Lua e a Terra)-, rompe-se o equilíbrio gravitacional que mantém os cometas quietos e a distância, e alguns deles desabam para as vizinhanças do Sol. Isso não é muito raro. “Acho que observamos uma média de dez visitas por ano”, calcula o astrônomo e matemático Masayoshi Tsuchida, da Universidade de São Paulo. Em setembro, por exemplo, estamos recebendo o cometa Brorsen-Metcalf. Será a terceira vez que se tem conhecimento de que ele dá uma volta pelo sistema solar e a primeira prevista com antecipação.
Mas, para desapontamento do fã-clube terrestre, nem sempre – ou melhor, quase nunca – os cometas anunciam a sua chegada com a pompa do Halley. Em geral, aparecem como meros borrões no céu e fica por conta da imaginação ou do alcance dos instrumentos óticos vê-los como são. Os núcleos são uma espécie de iceberg – pedaços de rocha cobertos de gelo de cerca de 5 a 10 quilômetros de diâmetro. A medida que se aproximam do Sol, algumas porções do gelo começam a derreter. Na sua superfície formam-se gêiseres que derramam jatos de partículas finas ao redor. A gravidade do núcleo é tão pequena que qualquer lufada de gás e poeira escapa para o espaço. Assim, esses icebergs passam a ser envolvidos por uma nuvem de poeira, cristais de gelo e gás. É a coma ou cabeleira.
A última metamorfose é a mais espetacular e intrigante: aparece a cauda, ou o véu de partículas finas, sopradas em direção contrária ao Sol, sem a qual nenhum cometa consegue manter o seu prestígio. As vezes, até exageram: ganham duas ou mais caudas, uma reta, azul, de gás ionizado, outra mais curva, amarela, de poeira. Essas caudas, porém, são a mais ilusória de todas as partes do cometa na verdade são quase um truque de ótica. Compostas de partículas ínfimas e rarefeitas, quase não têm massa. O que as torna visíveis e espetaculares é a luz do Sol refletida – como os primeiros raios da manhã que percorrem uma superfície empoeirada. O fenômeno é conhecido desde o século XVII, quando o físico inglês Isaac Newton (1643-1727) sugeriu que “a cauda de um cometa com milhares de quilômetros de comprimento, se submetida ao mesmo grau de condensação da Terra, poderia ser facilmente guardada num dedal”.
Em fotos tiradas por um satélite da Força Aérea americana, descobriu-se que alguns cometas seguem uma trajetória tão próxima do Sol que acabam sendo engolidos por ele. Outros possuem órbitas quase parabólicas, com períodos de milhares de anos. Há ainda aqueles cuja passagem pelo sistema solar se restringe a uma única vez. Mas um bom número de cometas sofre uma drástica alteração de sua trajetória quando passa perto de um planeta – em geral Júpiter, o maior de todos – e por isso fica aprisionado no sistema solar. Depois de vários retornos, esses cometas perdem muito material, tornam-se menos ativos, levantam pouca poeira e a cauda deixa de ser tão espetacular.
Por tudo isso, os cometas podem ser classificados como astros inconstantes; embora relativamente freqüentes, descobri-los é quase como ganhar na loteria. “Para os astrônomos profissionais é muito mais difícil flagrá-los pela primeira vez”, comenta o carioca João Luiz Kohl, do Observatório Nacional, cuja tese de doutoramento, sobre a rotação do Halley, foi feita no Observatório de Medon, em Paris. Ele explica que “no apertado cronograma das observações, não sobram noites para procurar astros tão caprichosos”. Segundo Kohl, os cometas são normalmente descobertos por amadores – insistentes caçadores desses corpos celestes, que por conta própria exploram sistematicamente o espaço e percebem a presença de um ponto de luz onde só havia treva.
É o caso do fazendeiro Vicente Ferreira de Assis Neto, que observa cometas há trinta dos seus 52 anos de vida. Longe da poluição atmosférica e das luzes ofuscantes das grandes cidades, ele instalou em suas terras no município de São Francisco de Paula, no oeste de Minas, um telescópio de 30 centímetros, com o qual fez uma descoberta independente do cometa White-Ortiz-Bolelli, a 23 de maio de 1970, cinco dias depois que foi avistado pela primeira vez.
O cometa recebeu esse nome em homenagem a seus três descobridores: o então estudante australiano G.L. White e o piloto Emílio Ortiz, da Air France, e o astrônomo profissional Carlos Bolelli, do Observatório de Cerro Tololo, no Chile. Assis Neto, que mantém correspondência com a União Astronômica Internacional, não perde a esperança de dar seu próprio nome a um cometa: “Tenho certeza de que vou descobrir mais um nos próximos anos”, confia.
Por sorte, a tentativa de compreender os cometas conta com preciosos aliados do passado. Em toda a História foram catalogados cerca de mil cometas, embora algumas centenas tenham sido avistados em mais de uma aparição. Seu estranho comportamento, associado à crendice de que os movimentos dos corpos celestes influenciam os destinos humanos, fizeram com que, no passado, os cometas fossem ligados a acontecimentos excepcionais – bons e maus. Após a passagem de um cometa em 64 d.C., por exemplo, o imperador romano Nero teria ordenado uma de suas célebres matanças. A estrela de Belém, que os astrônomos modernos supõem tratar-se de uma conjunção de Júpiter e Saturno ocorrida no ano 6 a.C., foi retratada por Giotto no afresco de 1304, Adoração dos Magos, como um cometa. Outro espécime foi registrado pelas crônicas européias do século XII, coincidindo com a época das cruzadas – e tanto cristãos como mouros teriam pensado tratar-se de maus presságios.
O pensador grego Aristóteles, do século III a.C., acreditava que os cometas fossem gases luminescentes espalhados na atmosfera terrestre. Essa concepção só foi abandonada no século XVI, quando o astrônomo dinamarquês Tycho Brahe (1546-1601) demonstrou que o cometa de 1577 passou a pelo menos seis vezes a distância da Lua. Mesmo assim, muito tempo depois ainda se acreditava que os cometas fossem astros transitórios, bem diferentes das estrelas e planetas. Essa idéia sobreviveu até aos cálculos de Kepler, Copérnico e Galileu no século XVI sobre o movimento dos astros. Só a partir do século XVII, quando Newton mostrou que todos os corpos pesados se movem uns em torno dos outros segundo as leis rígidas de gravitação, começou-se a pensar que também os cometas deveriam ter uma órbita.
Coube a um amigo de Newton, o astrônomo, também inglês, Edmond Halley (1656-1742), provar que o cometa por ele observado em 1682 era o mesmo de 1456, 1531 e 1607 – e que os chineses já o haviam registrado desde 240 a.C. Halley previu então a sua volta para 1758. Ele morreu dezessete anos antes de ver confirmada a hipótese. Mas na data prevista, brilhando de novo entre as estrelas, lá estava o cometa – o mesmo que em 1986, 228 anos depois, causaria tanto entusiasmo entre os astrônomos do Laboratório Nacional de Astrofísica, em Minas. Se nesta sua mais recente aparição o astro que passou para a História com o nome de Halley não deu um show de primeira grandeza como se esperava, a Astronomia proporcionou um espetáculo à parte. Milhares de estudos, medições e análises – em terra e por meio de sondas espaciais – ainda estão esmiuçando todos os seus segredos.
Ao cortar a cabeleira do Halley, quando chegou a cerca de 500 quilômetros do seu núcleo, a sonda européia Giotto foi a grande estrela dos astrônomos. Ela resistiu milagrosamente à chuva de poeira e mandou 3 mil fotos eletrônicas do coração do cometa, que mede 15 quilômetros de comprimento por 4 de largura. Antes dessa sonda, outras quatro pequenas naves repletas de instrumentos – as japonesas Sakisake e Suisei e as soviéticas Vega 1 e 2 – circularam pelas imediações. Os Estados Unidos reutilizaram dois de seus satélites no espaço, a Pioneer 12, em órbita de Vênus, e o Solar Maximum Mission, para acompanhar o Halley. Depois da passagem de todas essas sondas, os cientistas do Programa Internacional de Observação do Halley puderam descrever o núcleo do cometa como “uma batata torta com a superfície coberta de irregularidades que lembram montanhas, vulcões e crateras”.
Essa batata torta é uma bola de gelo e de grãos de rocha de silicatos, além de compostos moleculares, alguns dos quais orgânicos, isto é, formados à base de carbono. A presença desses compostos levou cientistas como o astrônomo inglês e dublê de escritor de ficção científica Fred Hoyle e o cingalês Chandra Wickramasinghe a sustentar uma hipótese no mínimo imaginosa: ao longo de centenas de milhões de anos, segundo eles, células primitivas, talvez bactérias espalhadas pelo espaço interestelar, teriam se incorporado a cometas quando estes se condensaram a partir da nebulosa solar. Essas células, afirmam os cientistas, poderiam ter chegado à Terra trazidas por um desses astros que se chocaram com o planeta há bilhões de anos.
Que ocasionalmente cometas atingem a Terra parece certo. Alguns cientistas acreditam, por exemplo,que uma pequena parte de um cometa chamado Encke explodiu na atmosfera da Sibéria central, a nordeste da Rússia, em 1908, causando um tremendo incêndio na floresta de Tunguska, que aniquilou árvores numa área de 500 quilômetros quadrados (SI n.º 12, ano 2). As superfícies da Lua e de outros satélites – preservados da erosão provocada por ventos e pela água – também exibem a marca de inúmeras colisões com corpos que vieram do espaço. Muitos destes, dizem os astrônomos, podem ter sido cometas – vivos e mortos. Os cometas vivos ainda estariam em plena atividade. Já os mortos teriam perdido boa parte da matéria após várias passagens pela proximidade do Sol e formariam centenas de asteróides com órbitas que cruzam a da Terra.
Mas a idéia de que as condições típicas de um cometa seriam propicias à existência da vida é um pouco difícil de aceitar. Mesmo assim, dois cientistas ingleses – o Prêmio Nobel de Medicina de 1962, Francis Crick, co-descobridor da estrutura molecular do DNA (o constituinte fundamental dos genes), e o químico Leslie Orgel propuseram uma alternativa igualmente curiosa. Para eles, os cometas teriam trazido no núcleo os precursores químicos da vida, em forma de aminoácidos e outras moléculas. Há alguns meses, químicos do Instituto Scripps de Oceanografia, na Califórnia, identificaram dois tipos de aminoácidos de origem extraterrestre em rochas datadas de 65 milhões de anos.
A descoberta veio acrescentar um pouco mais de romance à vida já fantástica dos cometas. Discute-se, por exemplo, se um deles teria sido responsável pela extinção dos dinossauros, há 65 milhões de anos. A tese foi apresentada pela primeira vez em 1979, pelo Prêmio Nobel de Física Luis Alvarez e por seu filho, o geólogo Walter Alvarez. Para eles, um cometa ao chocar-se com a Terra produziu poeira suficiente em suspensão para que o céu escurecesse, como ocorreria hoje depois de uma guerra nuclear. A ausência de luz solar faria a temperatura cair, levando à extinção a maioria das espécies da Terra, entre elas os dinossauros.
Enquanto muitos aspectos da história dos cometas já foram compreendidos, outros ainda continuam um completo mistério. As pesquisas, portanto, prosseguem. A agência espacial americana NASA pretende lançar nos próximos anos a nave CRAF (sigla em inglês de Encontro com Cometa e Sobrevôo de Asteróide), que tentará interceptar um cometa até o final do século. Será um encontro e tanto. Segundo o astrônomo Kohl, do Observatório Nacional, “a CRAF disporá de um perfurador parecido com o que se usa nos poços de petróleo para retirar uma amostra do material que compõe o núcleo do cometa”.
Para saber mais:
(SUPER número 3, ano 7)
Na cauda das catástrofes
Quando foi exposta pela primeira vez, a idéia de que há 65 milhões de anos um cometa teria se chocado com a Terra foi recebida por muitos com desdém. Mas, para os cientistas, a associação entre catástrofes e cometas não é brincadeira. Afinal, se esses astros têm quilômetros de extensão e viajam a grande velocidade pelo mesmo pedaço do sistema solar em que está a Terra, não é improvável que mais cedo ou mais tarde um deles atinja o planeta – se é que isso já não aconteceu. Cientistas da Universidade de Boston estudam, por exemplo, o que parece ter sido uma grande cratera de 200 quilômetros de diâmetro, fotografada pelo satélite Meteosat, no oeste da Checoslováquia. O local poderia ser o ponto de impacto de um cometa.
Mas a extinção em massa dos dinossauros não foi a única da história da Terra. Os paleontólogos John Sepkiski e David Raup, da Universidade de Chicago, descobriram que a cada 26 milhões de anos, mais ou menos regularmente, plantas e animais morreram por todo o planeta. Nenhum fenômeno terrestre explica esse desaparecimento. Levantou-se então a hipótese de que, quando o Sol passa num determinado plano da Via Láctea, as espirais de poeira levantadas perturbam a Nuvem de Oort, que descarrega enxurradas de cometas em direção aos planetas.
Para outros cientistas americanos, como o físico Richard Muller, da Universidade de Berkeley, na Califórnia, o Sol teria uma companheira invisível em órbita muito longa. Em determinado momento do seu caminho, esta estrela se aproximaria da Nuvem de Oort, fazendo chover cometas em direção da Terra. Muller pensou em vários nomes para esta estrela perigosa. Escolheu Nêmesis, a deusa grega da vingança e da justiça.