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O arsenal que reconduziu a Rússia ao papel de superpotência bélica

Putin quis dar um fim à decadência militar russa do pós-guerra fria. Veja como ele conseguiu.

Por Tiago Cordeiro
Atualizado em 24 fev 2022, 10h36 - Publicado em 5 ago 2019, 19h19

Nos últimos anos, a Rússia anexou a Crimeia, bombardeou bases da oposição na Síria, realizou testes em conjunto com as Forças Armadas da Venezuela, invadiu o espaço aéreo da Turquia e do Alasca, além do espaço marítimo da Inglaterra e do Japão, e quase trombou com um navio americano no mar da China Oriental. É muita coisa, para um país que, nos anos 1990, aceitava dinheiro dos Estados Unidos para garantir a manutenção mínima de seus artefatos militares atômicos e, até dez anos atrás, havia abandonado as bases militares muito distantes de casa… por falta de dinheiro para o combustível das aeronaves e das embarcações.

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É um cenário muito diferente, de fato. Desde o fim da União Soviética, em dezembro de 1991, o que se via era a mais completa decadência. Navios em processo de construção foram simplesmente abandonados ou vendidos para a China, ao mesmo tempo em que 40% dos aeroportos militares não tinham condições de uso. Enquanto os russos sofriam para controlar a Chechênia, em 1996, quatro pilotos de MiG-31 entravam em greve de fome – estavam desesperados, como dezenas de seus colegas, porque não recebiam salário fazia meses. Para colocar a conta em dia, foi preciso abandonar a manutenção de uma série de aeronaves e instalações militares.

Demorou muito para que a Rússia se recuperasse do desmembramento da URSS. Milhares de soldados instalados nos países-satélites juraram lealdade aos novos presidentes dos locais onde estavam instalados, especialmente na Polônia e na Ucrânia. A tentativa de reforma ao estilo neoliberal, introduzida pelo primeiro presidente russo da nova fase, Boris Yeltsin, reduziu os quadros militares sem garantir a manutenção da infraestrutura mais básica. Antigos aliados que viviam do suporte financeiro soviético, como Cuba e Angola, desmoronaram, o que também reduziu consideravelmente a influência global de Moscou.

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Até que Vladimir Putin subiu ao poder em 1999 – e por nada desceu. Desde então, ao longo destes 20 anos ele alterna entre as funções de presidente e primeiro-ministro. Putin, entre tantas ações, busca resgatar o status de superpotência da era soviética. Reativando, por exemplo, as paradas militares grandiosas e as exibições de navios e aeronaves de combate. Mas só conseguiu começar a mudar a situação, de fato, a partir de um projeto de reforma total das Forças Armadas. Lançada em 2008, a iniciativa ainda demorou alguns anos para começar a mostrar os resultados espantosos que, nos últimos anos, vêm impressionando (e preocupando) a comunidade internacional.

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Cartão de visitas

Veja o caso das ações militares na Síria. A partir de setembro de 2015, os russos enviaram 63 mil militares para fortalecer as posições do governo de Bashar al-Assad, ditador do país desde 2000, atacando locais controlados por grupos opositores armados, alguns deles liderados pelo Estado Islâmico. Até que os russos começassem a se desmobilizar, em março de 2018, sua Força Aérea havia matado 86 mil pessoas – segundo o governo de Moscou, todas ligadas, de alguma forma, aos grupos que fazem oposição ao governo. Ao todo, foram 39 mil missões no país, que destruíram 120 mil alvos.

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O MIG-35 é a evolução dos caças MiG-29M/M2 e MiG-29K/KUB. Conta com sensores muito mais sofisticados do que os de seus antecessores: o novo sistema óptico de localização e os radares de varredura eletrônica ativa permitem monitorar até 30 alvos simultâneos, localizados em ar, terra ou mar. O piloto conta com display LCD multifuncional e óculos de visão noturna. O alcance do voo é 50% maior, proporcionado pelo motor Klimov RD-33 MK, que também permite alcançar o teto máximo de 17.500 metros – em situações de combate, o bocal de suas turbinas, capaz de mudar o fluxo de ar, aumenta a eficiência em até 15%. A velocidade máxima é mais de 30% maior que a alcançada pelo americano F-35, que ainda pesa cinco toneladas a mais. Seja na versão para um ou para dois ocupantes, o Mikoyan MiG-35 oferece dez estações de armamentos, incluindo metralhadoras, foguetes, mísseis e bombas, que podem ser dispostos de acordo com as necessidades de momento – o governo russo pretende exportar o modelo para o maior número possível de países, e por isso garante que o caça pode ser personalizado segundo a demanda. (Sergei Bobylev/Getty Images)

Com apoio russo, o governo local, que vinha perdendo o controle de parte expressiva do território sírio, recuperou uma série de áreas, incluindo Alepo e faixas de fronteira com Israel e Jordânia. Para garantir essa recuperação a Assad, Moscou enviou desde os tradicionais caças Su-25 até os bombardeiros Tupolev-160 (também utilizados pela Venezuela) e Su-34, o principal avião de ataque de longo alcance do país, que começou a ser desenvolvido na década de 1980, mas só entrou em operação em 2014. Também foram utilizados helicópteros de ataque Mi-24, Mi-28N e Ka-52.

Para dar suporte aos ataques aéreos, navios de guerra foram posicionados no Mar Mediterrâneo, a partir de onde dispararam mísseis de cruzeiro. Foi a maior movimentação da Marinha russa desde o fim da URSS. Contou com o porta-aviões Almirante Kuznetsov, que recebeu o suporte dos contratorpedeiros da classe Udaloy e do cruzador Pyotr Velikiy.

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Para os russos, tamanho é documento. A obsessão em demonstrar a grandeza do país produzindo equipamentos de guerra gigantescos é visível neste projeto dos anos 1980, lançado ao mar em 1998 e ainda o maior navio de combate já visto – isto é, um navio que ataca por si mesmo e não por aviões, sucessor dos antigos encouraçados aposentados na Segunda Guerra, supostamente tornados obsoletos pelos porta-aviões. O Petr Velikiy (Pedro, o Grande) é poderoso. Transporta muito peso, muita gente e muitas armas. E foi projetado para neutralizar justamente os porta-aviões americanos, que são a base de sua Marinha. É equipado com uma série de armas capazes de atingir submarinos, embarcações e aeronaves. É um navio que se presta bem à propaganda também. Já foi utilizado em apresentações militares em diferentes países, da Turquia à Venezuela. Mais recentemente, vem sendo utilizado no Mar do Norte. E chegou a ser conduzido até o Mediterrâneo, para participar do suporte para as operações russas em território sírio. No caminho até lá, passou por águas britânicas, e foi escoltado de perto pelo destróier inglês HMS Dragon. (Lev Fedoseyev/Getty Images)
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No final de 2018, os EUA anunciaram que iriam começar a retirar suas tropas da Síria, arrefecendo o conflito. Mas a ação russa ainda pode ser retomada. Acontece que a Guerra Civil Síria movimentou outros dois atores expressivos da região. Depois que 20 foguetes foram disparados contra bases militares de Israel nas Colinas de Golã, em maio de 2018, os israelenses acusaram a Guarda Revolucionária, força de elite iraniana, de ter agido de dentro do território sírio. Em retaliação, Israel atacou posições do governo sírio, o mesmo que conta com suporte militar ostensivo da Rússia. O Irã respondeu fazendo ameaças verbais. Mas uma escalada de violência envolvendo Síria e Irã, dois fortes aliados russos, contra Israel, parceiro de longa data dos Estados Unidos, pode levar a uma nova onda de ataques na região.

Antes veio a Ucrânia. Na península da Crimeia, a facilidade com que os russos agiram, em 2014, deixou todos os membros da Otan, a Organização do Tratado do Atlântico Norte, de cabelos arrepiados. Para tomar da Ucrânia a faixa de 27 mil quilômetros quadrados de terras localizadas em ponto estratégico, os russos mal precisaram utilizar seu poder de fogo.

A invasão deixou a Europa apreensiva. O contingente militar espalhado pela vasta fronteira com a Rússia saltou de 13 mil para 30 mil soldados, e a Otan organizou quatro frentes de resistência a possíveis ataques vindo de Moscou. Em outubro de 2018, a organização realizou na Noruega o exercício militar Trident Juncture 18, o maior desde o fim da Guerra Fria, com 45 mil soldados de 31 países, cerca de 150 aviões, 60 navios e mais de 10 mil veículos.

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TORPEDO POSEIDON – Em 2015, os americanos identificaram os primeiros sinais de que os russos estavam desenvolvendo um torpedo nuclear. O primeiro teste, ainda bastante discreto, foi realizado no Oceano Ártico, em 2016. Medindo 24 metros, o Poseidon seria capaz de se mover a 185 km/h e detonar no mar ogivas em torno de incríveis 200 megatons (quatro vezes a potência do maior artefato nuclear já construído, a Tsar Bomba), causando um tsunâmi de até 100 metros, capaz de arrasar cidades costeiras.

MATERIAL INVISÍVEL – Serve para uniformes militares, mas também poderá ser adaptado para tanques: a empresa estatal Rostec está desenvolvendo um material invisível ao olho humano. Ele atua como uma cobertura de camuflagem, que emite as cores do ambiente – ou seja, ele assume o tom predominante à volta. Por enquanto, o material rendeu um capacete. O próximo passo é completar os uniformes dos militares e, eventualmente, tanques e outros veículos.

EXOESQUELETO ARMADO – Todo mundo está desenvolvendo exoesqueletos robóticos, mas a Rússia pensa grande. O exoesqueleto desenvolvido pela empresa de nome quase impronunciável TsNiiTochMash permitirá ao soldado disparar com uma mão só. Já existe um protótipo do equipamento, formado de fibra de carbono e alimentado por um motor. O modelo está em fases iniciais de testes. Ele é feito para ser usado com o sistema de combate Ratnik.

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Nova corrida armamentista

Não parece ser o suficiente. Está claro que a Rússia se tornou, novamente, um grande e incômodo vizinho, principalmente para os países do Leste Europeu não alinhados a ela, como a Polônia e a República Tcheca, ambas membras da Otan. Em reação à mobilização na Noruega, Putin fez questão de demonstrar seu poderio em Vostok, no extremo leste, quando realizou o maior exercício militar promovido pelos russos desde 1981. Para isso, utilizou de impressionantes 300 mil homens, mil aeronaves e 900 tanques. Enquanto isso, a Polônia solicita que os Estados Unidos construam uma base em seu território, a fim de desestimular quaisquer possíveis projetos russos de, mais uma vez, controlar o país vizinho. Em troca, oferece um aporte inicial de US$ 2 bilhões.

No início de 2018, Putin fez mais uma provocação em relação ao restante do continente. Ele começou a renomear diferentes regimentos, terrestres, aéreos e marítimos, com os nomes de localidades europeias, como Berlim, Varsóvia e Talim (capital da Estônia). O argumento oficial é homenagear locais importantes para a história militar da Europa. Mas não faltou quem tenha visto nos nomes uma espécie de lista irônica de possíveis alvos para algum ataque num futuro possível.

Enquanto faz exercícios militares de peso e ameaças veladas de grande impacto propagandístico, Putin prepara uma novíssima geração de armas e equipamentos. Ele trabalha amparado por um acontecimento importantíssimo: no dia primeiro de fevereiro de 2019, os Estados Unidos de Donald Trump se retiraram do Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário, conhecido pela sigla em inglês, INF. Apenas um dia depois, os russos também abandonaram o acordo.

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Enquanto lutava para se reorganizar militarmente, a Rússia perdeu a largada na corrida para desenvolver os drones militares. Passou os últimos dez anos tentando tirar o atraso, mas os resultados ainda são mais motivo de especulação do que de análise. O Sukhoi “Okhotnik” (expressão que significa “caçador”) parece ser uma aposta promissora. Desenvolvido desde 2011, com o objetivo de ser uma arma de precisão, capaz de atingir alvos estratégicos em solo inimigo, de forma furtiva (stealth), sem ser detectado por radar. Seu primeiro teste de voo foi em maio de 2019, e nada foi dito a respeito de que tipo de equipamento pode levar. Tem as dimensões de um caça grande e parece ser controlado remotamente não do solo, mas de um caça também furtivo, o novíssimo Sukhoi Su-57, que, como o drone, ainda não entrou em operação. Um combo letal por si só, e também uma revolucionária forma de lutar. Acredita-se que o par deva servir para abrir caminho para o arsenal mais tradicional, destruindo as defesas, radares e sistema de comunicação inimigos. (Reprodução/Divulgação)

Acontece que o Tratado INF, assinado em dezembro de 1987, foi uma grande conquista dos líderes Ronald Reagan e Mikhail Gorbachev, que tiveram que se encontrar por três vezes até chegar aos termos do acordo. Na época, o acordo garantiu, de forma inédita, a destruição de mais de 2.600 mísseis capazes de alcançar entre 500 e 5.500 quilômetros. Os mísseis intermediários cruzam uma distância menor que os de longo alcance, o que leva menos tempo. Com isso, não permitem que o inimigo possa revidar. E, assim, anulam o conceito de Destruição Mútua Assegurada. Pois agora, assim que os dois países se retiraram do INF, teve início uma corrida armamentista acelerada.

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Os americanos, que dizem ter abandonado o acordo diante dos programas russos de desenvolvimento de armas de curto alcance, em especial os mísseis 9M729, capazes de alcançar 2.600 quilômetros, rapidamente anunciaram que estavam trabalhando em novas armas nucleares e fecharam novos contratos para a construção de mísseis. Por sua vez, Putin vem revelando, continuamente, armamentos nucleares capazes de atingir os EUA.

Apresentado em março de 2018, o míssil Avangard nem parece um míssil. Lembra mais um espaçoplano (como o aposentado Ônibus Espacial). Ele seria capaz de fazer um voo imprevisível, desviando-se das defesas antimíssil americanas e se dividindo em MIRVs, tornando inúteis todos os sistemas de defesa atuais. Outro novo míssil russo, o RS-28 Sarmat, é feito para escapar da detecção. Decola de forma rápida demais para ser notado por satélites infravermelhos e lança suas ogivas em órbita baixa, evitando radares.

Contra o Tio Sam?

A superioridade tecnológica americana não é garantia de vitória. “O padrão de equivalência de armamentos para comparar forças é da Segunda Guerra e está defasado. No contexto atual, não é necessário ter equivalência militar”, afirma o cientista político Juliano Cortinhas, da Universidade de Brasília. Para efeitos comparativos, o cenário global voltou a ficar dividido. “Estados Unidos, China e Rússia são as três maiores potências militares”, diz o professor. “Em termos de tecnologia, armas atômicas e potencial para realizar ataques cibernéticos, EUA, Rússia e China estão bastante nivelados.”

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O nome é veículo de combate de infantaria (VCI). E sua função é completamente diferente de um tanque: carregar soldados armados até o front e combater junto a eles, provindo fogo de suporte, enquanto o tanque luta por si mesmo e aguenta a reação. VCI é um conceito contemporâneo muito bem adequado ao combate assimétrico contra pessoas, mais do que contra outros veículos. Mas o Armata é feito para ser páreo com os tanques: possui medidas de combate ativas – um canhão computadorizado que destrói projéteis inimigos no ar –, e blindagem reativa, que explode para contrabalançar a força de projéteis inimigos. É algo bem à frente de outros VCI, inclusive o Bradley americano. Vinha sendo testado, aqui e ali, desde 2012. Mas a primeira leva capaz de seguir diretamente para o campo de batalha foi produzida em 2015. Se o objetivo era impressionar, deu certo: o T-15 tem 48 toneladas, autonomia de 550 quilômetros e capacidade para transportar um verdadeiro arsenal. Seu layout fora do padrão, com motor na frente, garante a segurança dos ocupantes. (Stanislav Krasilnikov/Getty Images)

Sucesso parcial

O novo esforço militar da Rússia vem fazendo muito barulho, mas o país ainda está longe do poderio de seus maiores adversários. Os americanos continuam à frente. Em muitas ocasiões, o dinheiro russo não é o suficiente – o país precisou, por exemplo, revisar para baixo a previsão de desenvolvimento e aquisição de um lote de jatos Sukhoi T-50; iria levar 52, mas os custos no desenvolvimento e as dificuldades econômicas pelas quais o país atravessa fizeram a compra ser reduzida para 12 unidades.

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Além disso, o plano de comprar 2.300 tanques T-14 até 2020 está sendo revisto, enquanto que tanques antigos, datados das décadas de 1970 e 1980, são reformados para dar conta do recado pelos próximos anos. Os erros em testes de novos modelos de mísseis são recorrentes – o caso mais famoso é o do míssil de combustível sólido Bulava, que em 2009 explodiu e provocou uma aurora boreal bizarra na Noruega. O modelo voltou para as pranchetas, apenas para cair no Oceano Ártico durante uma nova tentativa de lançamento em 2013.

Os russos parecem andar mais devagar do que anunciam. Mas estão em pé, e se movimentando em todas as direções possíveis, se adaptando ao inimigo. Por ora, como na primeira vez, a guerra continua fria. Até quando?

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