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Pisou na Lua? Vai para o castigo do isolamento

Temendo que terríveis micróbios contaminassem a planeta, a NASA colocou os astronautas que pisaram no solo lunar em isolamento absoluto por quase três semanas. Tudo em vão. Não há micróbios na Lua e, se houvesse, os cuidados tomados não teriam sido suficientes para evitar o contágio.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h46 - Publicado em 31 Maio 1994, 22h00

Brian Duff

Ao voltar de seu passeio lunar, naquele histórico 20 de julho de 1969, Armstrong e Aldrin fizeram uma limpeza. Espanaram a poeira e passaram aspirador nas próprias roupas, antes mesmo de partirem ao encontro de Collins, que permanecera na cápsula de comando, em órbita do satélite — tudo para reduzir os riscos de contaminação por eventuais microorganismos extraterrestres. Pouco tempo antes da entrada da nave na atmosfera da Terra, o rádio deu um aviso da base de controle: “Quero lembrar a vocês que a etapa mais difícil da missão ainda está por vir, depois do resgate”, dizia a voz de Jim Lovell, de Houston. Começava aí uma controvertida tentativa de manter o mundo livre de hipotéticos germes lunares.

A nave pousou pouco antes do amanhecer do dia 24 de julho, no Oceano Pacífico, perto do Havaí, e foi imediatamente atada a uma bóia, por três homens-rãs da Marinha americana. Enquanto dois deles mantinham-se a favor do vento, o terceiro abriu a escotilha e jogou para dentro do módulo três trajes de isolamento biológico. Um potente desinfetante à base de iodo foi esfregado ao redor da escotilha e nas partes da nave que entraram em contato com a cápsula que pousara na Lua. Finalmente, Neil Armstrong, Edwin Aldrin e Michael Collins saltaram para o bote de borracha, vestindo capuzes, máscaras e respiradores. Levados de helicóptero até o porta-aviões Hornet, ancorado cerca de 20 quilômetros adiante, eles desapareceram dentro do compartimento de isolamento — um trailer adaptado, para uma longa viagem até o Centro Espacial Johnson (na época, Centro de Veículos Espaciais Tripulados), da NASA, em Houston, Texas. Chegando lá, os astronautas entraram no que seria seu lar pelas três semanas seguintes — o Laboratório de Recepção Lunar.

Após um dia de descanso, tinha início um apertado programa de exames médicos, elaboração de relatórios e entrevistas, que, assim como as visitas dos familiares, aconteciam por trás de uma parede de vidro. Tudo o que vinha de fora — alimentos e pacotes — era entregue através de uma câmara de ar comprimido. Até mesmo o 39º. aniversário de Armstrong foi comemorado dentro do espírito de quarentena: ele, comendo o bolo atrás da janela de vidro, a família e os amigos, do lado de fora. Em outra ala do laboratório de isolamento, as amostras lunares, também dentro de câmaras especiais, eram manipuladas, com pesadas luvas, por geólogos, biólogos e botânicos. (O único resultado de todas essas experiências foi a descoberta de que a poeira da Lua funcionava como excelente adubo: jamais exposta à água, mantinha os nutrientes prontos para serem absorvidos imediatamente pelas plantas.) Apesar da sala de ginástica, da mesa de pingue-pongue e da televisão instaladas na área de isolamento, a vida reclusa começou a se tornar opressiva depois de uma semana. De acordo com um relatório da NASA, enquanto Armstrong, comedido, dizia que tudo corria dentro do esperado, Collins, menos tolerante, afirmava simplesmente: “Quero sair daqui”. Finalmente, no dia 10 de agosto, os astronautas saíram da quarentena — sem que se encontrasse alguma evidência de agentes infecciosos.

Tanta cautela, que hoje pode parecer exagerada, começou anos antes de o primeiro homem pisar na Lua: em 1962, os cientistas já entravam num apaixonado debate sobre o que os pioneiros exploradores poderiam encontrar. Imaginava-se de tudo: de areia movediça a labaredas nascidas da poeira. Na acalorada discussão, alguém propôs a hipótese de contaminação da Terra por microorganismos alienígenas. “Nada sabíamos sobre a história da Lua”, diz Carl Sagan, àquela época um jovem astrônomo da Universidade de Cornell. Como a maior parte da comunidade científica, Sagan considerava extremamente improvável que qualquer organismo pudesse sobreviver num ambiente tão hostil quanto o lunar. Mesmo assim, ele jamais deixou de defender as medidas de proteção. Por volta de 1964, o Conselho de Ciência Espacial criou um certo Comitê Interagências de Combate à Contaminação, envolvendo até a unidade de guerra biológica do Exército americano. O Comitê tinha de desenvolver sistemas de defesa contra uma eventual contaminação desconhecida. “Uma vez que era impossível saber como era um micróbio lunar, decidiu-se adotar como modelo um dos mais terríveis organismos conhecidos do planeta — o bacilo da peste bubônica”, lembra Charles A. Berry, diretor de pesquisa e operações médicas do Centro Espacial Johnson. Por segurança, o Comitê preferiu isolar temporariamente os astronautas e o Congresso americano autorizou a liberação de fundos para a NASA construir as instalações do Laboratório de Recepção Lunar.

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Muita gente achava que a quarentena era desnecessária e inútil. Um especialista em geologia planetária da Universidade de Chicago, Ed Anders, chegou a se oferecer para comer uma amostra do solo lunar, para provar que era inofensiva, ao que Carl Sagan respondeu: “Vai ter de comê-la na Lua, porque, se ele cair morto, o que quer que o tenha matado ainda estará entre nós”. Para botar mais lenha na fogueira, poucos meses antes do lançamento da Apolo 11, o romance O Enigma de Andrômeda, escrito pelo então estudante de Medicina de Harvard, Michael Crichton (autor de outro sucesso, O Parque dos Dinossauros, de 1993), entrou para a lista dos mais vendidos. O livro conta como um vírus alienígena quase liquida os terráqueos. “O romance originou os mais loucos delírios e fomos obrigados a responder a milhares de cartas”, afirma Charles Berry.

Nesse meio tempo, começavam os conflitos entre as equipes de cientistas ligadas à Apolo 11, cada uma com sua própria missão a cumprir. Os biólogos tentavam defender a Terra da contaminação lunar, os geólogos queriam proteger o material da Lua da contaminação terráquea e os engenheiros buscavam apenas chegar à Lua. “O problema é que a quarentena em si era um grande espetáculo, que não evitaria a contaminação”, esbraveja Gerald Wasserburg, professor de Geologia e Geofísica do Instituto de Tecnologia da Califórnia, ainda fumegando de raiva. “O pessoal da unidade de guerra biológica do Exército, que sabia como conter bactérias, achava tudo ridículo.”

O severo programa de isolamento dos astronautas começou 21 dias antes do lançamento da Apolo 11, com os contatos limitados ao mínimo necessário. E todos que tinham acesso à tripulação, inclusive familiares, eram obrigados a passar por um monitoramento médico. O objetivo da NASA era evitar que os astronautas contraíssem qualquer doença antes do vôo. Porque, caso algum deles voltasse doente da Lua, seria muito difícil convencer o mundo de que a causa não era nenhum organismo extraterrestre.

Por esse tempo, começavam as discussões sobre como e quando a tripulação deveria deixar a espaçonave após o pouso. A NASA queria seguir os procedimentos normais de resgate, mas o Comitê de Combate à Contaminação exigia que os astronautas passassem diretamente da cápsula para o trailer de isolamento, no porta-aviões. A Saúde Pública ameaçou proibir a entrada da tri-pulação nos Estados Unidos, se o resgate fosse feito pelo sistema convencional. Por fim, o Comitê acabou concordando com o procedimento padrão de resgate, desde que fossem tomadas algumas medidas de precaução, como o banho de desinfetante na nave e o uso de trajes especiais.

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Passadas três semanas de quarentena, sem incidentes, os geólogos e a maioria dos chefes de equipes da NASA queriam dispensar o isolamento de uma vez por todas. Mas a recomendação original da Academia Nacional de Ciências dizia que o período de confinamento deveria repetir-se em cada uma das três primeiras missões. Segundo a Academia, um único pouso e passeio não era suficiente para se descartar a existência de formas de vida na Lua.

Num certo sentido, eles tinham razão. Em novembro de 1969, a Apolo 12 voltou à Terra, trazendo uma peça da sonda Surveyor 3, que havia estado na Lua, em 1967. Na peça, os técnicos encontraram a bactéria Streptococcus mitus. Mais tarde, o Laboratório de Recepção Lunar concluiu que o microorganismo havia saído daqui mesmo da Terra — alguém espirrara sobre a câmera de TV da Surveyor, antes do lançamento. Incrível, mas a bactéria sobrevivera dentro de um pedaço de espuma, por dois anos e meio. Isso bastou para convencer o comandante da Apolo 12, Charles Conrad, de que a contaminação era, no mínimo, uma possibilidade e que “a quarentena era até uma boa idéia”. Bem mais leve, a quarentena da Apolo 12 foi suspensa 36 horas depois que os testes não identificaram nenhum sintoma de contaminação.

O pessoal da Apolo 13 escapou do isolamento porque um problema técnico impediu a cápsula de pousar na Lua. Mas a tripulação da expedição seguinte, Apolo 14, não teve a mesma sorte: Alan Shepard, Edgard Mitchell e Stuart Roosa, que traziam amostras coletadas a 1,5 metro de profundidade da superfície lunar, foram fechados em isolamento, o que foi encarado por eles com maldisfarçado desdém. “Era apenas mais uma obrigação na lista”, diz Shepard. Por essa época, a imprensa já não tinha interesse nenhum pelos relatórios diários do laboratório de isolamento. “Estávamos interessados apenas nas rochas lunares”, conta Paul Recer, correspondente da agência de notícias AP (Associated Press).

No dia 27 de fevereiro de 1971, quando Shepard, Mitchell e Roosa deixaram o Laboratório de Recepção Lunar, depois de quinze dias de confinamento, a idéia da quarentena foi oficialmente abandonada. Não se achou um único organismo lunar. Mais tarde, o trailer foi reformado e hoje é usado como laboratório e escritório da divisão de ciências médicas do Centro Espacial Johnson. Muitos ainda mantêm a opinião sobre a quarentena. “Acho que tudo isso foi uma operação do tipo ‘vamos tirar da reta’, diz Richard Gordon, da Apolo 12. Há ainda quem defenda a quarentena, como Carl Sagan: “Por sorte, não há nada vivo na Lua. Mas imagine se acontecesse o altamente improvável…” Depois de 25 anos, a quarentena, que custou 14 milhões de dólares, é hoje apenas uma nota de rodapé na história das viagens à Lua — um lembrete do medo que o homem tem do desconhecido.

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