Sorria: você está sendo filmado
As novas tecnologias estão acabando com a privacidade das pessoas.
Rafael Kenski
Algumas pessoas sabem todos os lugares em que você esteve no ano passado. Possuem também a lista das mercadorias que você comprou, as músicas que ouviu e as pessoas com quem conversou. É possível que elas saibam até a sua preferência sexual. Assustador, não? O motivo alegado para tanta perseguição é apenas trazer segurança e conforto. Para você. Assim como as novas tecnologias se esmeram em acumular e disponibilizar o máximo de informações sobre todos os assuntos de interesse, muitas instituições utilizam os mesmos instrumentos para obter e manipular dados sobre pessoas simples, como eu e você. Empresas tentam reunir informações detalhadas de seus possíveis clientes para oferecer produtos e serviços personalizados no momento apropriado. Governos e agentes de segurança tentam registrar todas as atividades da população em busca de criminosos e infratores. O preço a pagar por esses benefícios, no entanto, é ser observado o tempo todo e ter suas informações mais íntimas devassadas.
“Estamos em transição do ‘estado de vigilância’ para a ‘sociedade de vigilância’”, afirma o cientista político canadense Reg Whitaker, autor do livro The End of Privacy (O fim da privacidade), inédito no Brasil. Ao contrário do que previam romances como 1984, de George Orwell, ou Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, o que está acontecendo não é apenas um governo centralizado que monitora as atividades da população. Empresas, família e até mesmo vizinhos instalam sistemas de vigilância cada vez mais sofisticados. Da mesma maneira, em vez de o Estado obrigar as pessoas a se registrarem em sistemas de controle, são os próprios cidadãos que, cada vez mais, entregam seus dados pessoais de forma voluntária. “A nova tecnologia de controle se diferencia das anteriores de duas formas: ela é descentralizada e consensual”, diz Whitaker.
O rastreamento começa cada vez que saímos na rua. Só na cidade de São Paulo, cerca de 125 000 câmeras monitoram as atividades dos pedestres em prédios, parques, lojas e calçadas. Cerca de 75% das grandes redes de supermercados, farmácias e lojas reforçam a segurança com filmadoras. Em outros países, essa técnica é ainda mais difundida. Até 2004, o governo inglês terá instalado nas ruas uma rede de dois milhões de câmeras para procurar criminosos. Muitas delas estarão equipadas com sistemas que reconhecem as pessoas pela face ou por sua maneira de caminhar e checam se são procuradas pela polícia. Os motoristas – que, em São Paulo, convivem com mais de 100 radares fotográficos – são vigiados, no Reino Unido, por mais de 7 500 sensores que identificam a placa do veículo e verificam se ele é roubado.
Essa parafernália funciona? Segundo a Companhia de Engenharia de Tráfego de São Paulo, o uso de radares eletrônicos diminuiu em até 58% o número de mortes em acidentes fatais. No Reino Unido, alguns crimes de repercussão nacional só foram resolvidos graças à ajuda da rede de câmeras. A eficácia desses equipamentos, no entanto, ainda é objeto de muita polêmica. “As câmeras identificam alguns delitos óbvios no mesmo momento em que acontecem e fornecem, posteriormente, evidências da cena do crime”, afirma Jason Ditton, diretor do Centro Escocês de Criminologia e uma das poucas pessoas a empreender estudos independentes sobre o sistema.
A grande preocupação em relação ao sistema é a possibilidade de abuso. A coordenadora desse programa em um bairro de Londres afirmou à revista New Scientist que um centro de lazer havia colocado câmeras controladas por homens no vestiário feminino. Surgiram também diversas denúncias de que os operadores definiam os suspeitos apenas pela aparência – o que abriu a porta para denúncias de preconceito. Em outra ocasião, um operador foi condenado por espionar mais de 200 mulheres e usar o telefone da própria central para assediá-las.
Problemas como esses podem se tornar ainda piores quando forem implantadas algumas outras tecnologias de vigilância já existentes. O inventor americano Graham Hawkes desenhou uma forma de acoplar um rifle a essas máquinas e permitir que policiais eliminem criminosos como se estivessem em um jogo de videogame. Outro sistema americano, de nome Body Search (busca corporal), permite identificar objetos embaixo da roupa, como pistolas, facas, pacotes de drogas e também aquelas partes do corpo que a maioria das pessoas tem o costume de esconder. “As câmeras são tidas como se fossem sempre boas e elas não são”, afirma Ditton.
Se sair na rua sem ser vigiado já é difícil, passear anônimo na internet é quase impossível, principalmente quando se está no trabalho. Uma pesquisa da Associação Americana de Administração, feita em abril do ano passado, constatou que 73,5% das companhias nos Estados Unidos praticam algum método de vigilância, como registrar e-mails, páginas visitadas e as ligações telefônicas de seus funcionários. “Se a empresa deixar claro que aqueles instrumentos são para uso profissional e que podem ser monitorados, ela tem o direto de vigiar os seus funcionários”, afirma o advogado especializado em tecnologia Antônio José Ludovino Lopes, que atua em São Paulo. Alguns casos, no entanto, chegam a extrapolar o ambiente de trabalho. Nos Estados Unidos, um funcionário de uma companhia elétrica foi demitido depois de usar o computador de sua própria casa para fazer críticas ao seu emprego e ao seu chefe em uma lista de discussão na internet.
Mesmo tendo usado pseudônimo, seu verdadeiro nome foi revelado depois que a empresa entrou na justiça contra a provedora do serviço. Casos como esse foram possíveis graças ao surgimento de diversas companhias, como a Ewatch, cujo serviço é procurar o nome da empresa na internet para avaliar o impacto de seus produtos, descobrir boatos e flagrar empregados pouco fiéis.
Mas as empresas não vigiam só seus funcionários. Várias páginas da internet costumam implantar no computador de quem as visita pequenos programas (os chamados cookies) que registram alguns dados sobre o usuário, como o tipo de navegador utilizado ou as páginas que ele visitou. Os cookies são importantes para salvar as preferências do usuário e montar uma lista de compras para ele, por exemplo. Mas eles podem também enviar para as empresas informações sobre tudo o que as pessoas fazem na rede. Essa prática foi alvo de grande polêmica quando se descobriu que a agência antidrogas americana os utilizava para rastrear internautas. Cada vez que alguém digitava grow pot (plantar maconha) ou outros termos relacionados a drogas nos principais serviços de busca, aparecia um anúncio da agência que carregava um cookie.
Apesar de o governo afirmar que o programa era usado apenas para verificar a eficiência da propaganda, o medo de que ele fosse utilizado para perseguir pessoas sem autorização judicial levou a Casa Branca a restringir o uso de softwares desse tipo nas páginas do governo.
A empresa americana DoubleClick – uma das maiores agências de anúncios na internet – também sofreu várias críticas de invasão de privacidade quando comprou, por 1 bilhão de dólares, a firma Abacus Direct, dona de um enorme cadastro de consumidores. Caso juntasse as informações que ela reúne por cookies com o banco de dados recém-adquirido, a empresa teria à sua disposição uma lista detalhada dos hábitos, dentro e fora da internet, de mais de 100 milhões de pessoas. A empresa teve que voltar atrás depois de uma forte reação popular. Em vários países, inclusive no Brasil, arquivar informações pessoais sem autorização é crime. “É permitido coletar dados para fins estatísticos, mas é contra a lei reunir elementos que identifiquem os costumes de alguém”, diz José Lopes.
O principal risco que a internet apresenta para a privacidade está na sua facilidade de reunir dados de diversos tipos em um só lugar. “Quanto mais pulverizadas as informações, maior é a privacidade”, afirma o advogado Amaro Moraes, criador da página Avocati Locus, dedicada a questões de privacidade e tecnologia. Mas essa tendência pode piorar. Um novo projeto da Microsoft pretende reunir informações pessoais de diversos tipos em uma só plataforma, chamada Hailstorm. A princípio, o programa permitirá que as pessoas façam compras na internet utilizando uma só senha, conversem com amigos e agendem compromissos. No futuro, espera-se que inclua outros serviços, como identificar por câmeras se o usuário pode responder a uma mensagem ou enviar sua ficha médica para um hospital ao ser notificado de um acidente. O principal problema do projeto é saber se os clientes aceitarão abrir toda a sua vida para uma só companhia e se ela é segura o suficiente para proteger essas informações.
No Brasil, cruzar dados de uma mesma pessoa vai ser mais fácil a partir do ano que vem. É quando começará a ser implantada uma medida que reúne todos os documentos em um só número de identidade. Além de simplificar a vida do cidadão – que não precisará tirar uma carteira atrás da outra – a medida facilita a identificação de sonegadores. Por outro lado, o cadastro de diversos departamentos estarão unidos e poderão ser facilmente comparados, tanto pelo governo quanto por empresas. “A população ficará fragilizada em termos de privacidade e cidadania”, afirma José Lopes. O Imposto de Renda poderá checar se você viajou para o exterior ou possui ficha na polícia, assim como a previdência conhecerá as condições de saúde de cada um. “Quando tentaram implantar esse projeto na Austrália, os protestos foram tão grandes que o governo caiu. Aqui no Brasil ninguém se preocupou”, diz Amaro Moraes.
Apesar das críticas, muitos governos tentam inventar formas de aproveitar a crescente facilidade de obter informações para aumentar o controle sobre a população. O FBI instalou um projeto chamado Carnivore, que consiste em “grampear” a internet de pessoas suspeitas. Após conseguir licença judicial, agentes instalam uma caixa no provedor de acesso, que registra o tráfego de e-mails e de sites para a conta específica. A mesma agência possui convênios com empresas especializadas em bancos de dados e companhias de transporte para obter delas informações detalhadas sobre os cidadãos.
Já na Inglaterra, os provedores de acesso são obrigados a registrar o tráfego de internet e encaminhá-lo ao governo. Se necessário, cada pessoa deve informar também a chave para decodificar mensagens criptografadas e, se contar para alguém a respeito da investigação, pode ser condenada a até cinco anos de prisão. Lá, como se vê, a obsessão por segurança e o desrespeito à privacidade se tornaram tão grandes que já há um banco de dados com o código genético de todas as pessoas com antecedentes criminais. É uma boa notícia para investigadores de polícia: qualquer fio de cabelo ou pedaço de pele deixados na cena do crime podem ser utilizados para identificar o culpado. Para a população, a medida pode ser considerada invasiva, já que dentro de alguns anos, talvez o cadastro de DNA inclua todos os cidadãos.
Diversas instituições ao redor do mundo já utilizam dados biológicos na busca por infratores. Algumas universidades do Japão, Europa e Estados Unidos praticam exames de sangue rotineiramente para verificar o uso de drogas por parte dos alunos. No futuro, esses testes podem se tornar ubíquos. O pesquisador americano Gary Settles, da Penn State Research Foundation, patenteou, no ano passado, um portão capaz de absorver o fluxo de ar gerado ao redor do corpo humano e identificar nele indícios de drogas ou explosivos. Segundo Settles, a mesma tecnologia poderá ser usada para registrar o DNA de quem passar por ali.
Avaliar pessoas a partir de um banco de dados pode ser perigoso de várias formas. No meio de tantas informações, corrigir um elemento errado é uma tarefa demorada e, algumas vezes, impossível. “Resumos de personalidade, do tipo que dá o perfil de um consumidor, dominam nossas vidas em aspectos muito importantes”, afirma Reg Whitaker. Para ele, as pessoas no mundo real são contraditórias, desordenadas e complexas. De forma contrária, o retrato que os bancos de dados apreendem de cada um pode ser interpretado em construções lógicas baseadas em simplificações grosseiras. Ele cita um caso de 1950, quando o governo americano, depois de reunir uma série de dados sobre o professor de chinês Owen Lattimore, chegou à conclusão de que ele era o principal espião soviético nos Estados Unidos. O caso só terminou cinco anos depois, quando o acusado foi inocentado por falta de provas. “Hoje somos todos, em certo sentido, Owen Lattimores”, diz Whitaker.
Se todos esses fatos fizerem você pensar que a privacidade acabou de vez, saiba que ainda não ouviu o pior. A Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos (NSA), junto com colegas da Inglaterra, Canadá, Austrália e Nova Zelândia, possui um gigantesco sistema de vigilância que intercepta e processa a maior parte das comunicações feitas entre países. O acordo existe desde 1947 e só se tornou conhecido há poucos anos com o nome de Echelon (escalão). Trata-se de uma rede de satélites-espiões, grampos em cabos de telecomunicações submarinos, aparelhos de escuta em embaixadas e receptores de rádio que enviam dados para centrais espalhadas em cada um desses países.
A princípio, a seleção dos dados relevantes era feita de forma manual, mas foi automatizada a partir dos anos 70 e hoje conta com uma sofisticada rede de computadores e softwares que utilizam palavras-chaves para garimpar as comunicações de interesse para esses governos. “A primeira rede mundial não foi a internet, mas sim a interligação de estações e centros de processamento do Echelon”, afirma o jornalista escocês Douglas Campbell, uma das primeiras pessoas a descobrir esse oculto e sinistro sistema de espionagem multinacional. Campbell produziu um relatório para o Parlamento Europeu sobre o assunto. Segundo a descrição dada em 1992 por um ex-diretor da NSA, em um esquema como esse, para cada milhão de mensagens recebidas apenas mil se encaixam nos critérios, dez são vistoriadas por analistas e apenas uma é digna de ser relatada a escalões superiores. Acredita-se que o Echelon seja capaz de monitorar 90% de todas as ligações internacionais e grande parte do tráfego na internet.
No ano passado, o ex-diretor da CIA, James Woolsey, escreveu um artigo para o jornal The Wall Street Journal confirmando a existência do projeto e explicando aos europeus o motivo de tanta vigilância: “Nós espionamos porque vocês subornam autoridades estrangeiras”. Ele se referia às revelações veiculadas no relatório de Douglas Campbell: uma delas, de que o Echelon teria interceptado uma tentativa da empresa francesa Thomson-CF de pagar propina a membros do governo brasileiro para ganhar a concorrência do projeto Sivam, sistema de vigilância de 1,3 bilhão de dólares a ser implantado na Amazônia. No final, quem ganhou a disputa foi a Raytheon, uma empresa americana que, segundo o relatório, também trabalha na manutenção dos satélites do próprio sistema Echelon. Depois dessa, quem vai acreditar que o monitoramento da Amazônia será observado apenas pelos órgãos governamentais brasileiros que contrataram o serviço?
Para saber mais
Na livraria: The End of Privacy, Reg Whitaker, The New Press, Estados Unidos, 1999
The Transparent Society, David Brin, Perseus Books, Estados Unidos, 1998
rkenski@abril.com.br
Todos contra um
Os Estados Unidos autorizaram a junção dos cadastros de bancos, seguradoras e corretoras. As empresas poderão avaliar, antes de conceder um empréstimo, a condição de saúde de uma pessoa ou quantas vezes ela bateu o carro. No Brasil, uma nova lei facilitará a conexão entre um número muito maior de bancos de dados de órgãos governamentais
Boi na linha
O governo americano monitora quase todos os telefonemas internacionais e grande parte do tráfego na internet. Quando julga necessário, utiliza também uma tecnologia que capta as emanações de computadores e reproduz, a centenas de metros de distância, tudo o que aparece na tela
Olhos onipresentes
Companhias como a Space Imaging permitem que uma pessoa monitore qualquer ponto na face da Terra com fotos diárias de satélite. Governos, empresas e lojas apostam em milhões de filmadoras que registram tudo o que acontece nas ruas. Da mesma forma, pais instalam câmeras secretas para vigiar a própria casa à distância
Seu rosto é familiar
Muitas redes de varejo cadastram todas as compras de seus clientes. Câmeras que reconhecem traços faciais logo aperfeiçoarão esse processo, registrando até o caminho percorrido dentro da loja pelas pessoas. Essas informações são usadas para criar perfis eletrônicos que, muitas vezes, não têm a menor semelhança com a realidade