Televaidade sem limite
Quem aprecia isso, claro, é o ¿povão¿, que está do lado de lá da fronteira.
Jerônimo Teixeira
Ratinho, Gugu e João Kleber estão aí para preservar a nossa integridade. Para uma certa classe média educada, a baixaria desses comunicadores é uma espécie de fronteira da decência na TV. Com doses ambivalentes de humor e horror, podemos até assistir a esses programas de vez em quando, só para reafirmar o quanto detestamos todo esse mau gosto. Quem aprecia isso, claro, é o “povão”, que está do lado de lá da fronteira.
Só que essa linha divisória é tênue e nem sempre é possível identificá-la claramente. Quem imaginaria que o Programa do Jô, cujo astro é reputado pela sofisticação, também entraria na linha freak show?
Já faz um tempo apareceu um entrevistado cuja única credencial era o paladar insalubre. O sujeito dizia-se capaz de comer qualquer bicho. Lambia-se todo por uma asa de urubu. No meio da conversa, o garçom chileno entrou com uma travessa sobre a qual dois gambás assados (alô, Ibama!) estavam dispostos de forma ornamental, para serem saboreados diante das câmeras. Jô declinou do convite para acompanhar o banquete, mas o saxofonista Derico comeu uns bocadinhos. Detalhe: esse gourmet do grotesco não caçava. Suas excêntricas iguarias eram recolhidas na estrada. Toda vez que um gambá ou qualquer outro animal distraído atravessava na frente de um caminhão, lá estava nosso personagem raspando os restos do asfalto para colocá-los no forno.
Os protocolares 15 minutos de fama prometidos por Andy Warhol exigem mais estômago do que talento. Se você come carcaça, está apto a dar seu recado na maior rede de televisão do país. Estou sendo um tanto implicante, e de propósito. Meu objetivo é apenas destacar os preconceitos sociais que determinam nossa melindrada crítica ao baixo nível da televisão brasileira. Aceitamos mais facilmente a baixaria quando ela sai do elevador de serviço. Ratinho é insuportável porque seu bigode e sua grosseria dividem o mesmo universo com as atrações do seu circo de horrores. Jô Soares, quando entrevista personagens “desviantes” (passe o eufemismo), usa o humor – que tantas vezes falha quando ele conta as gastas piadas enviadas pelos telespectadores – para marcar sua distância.
Dependendo da perspectiva, podemos até considerar esse traço como uma das qualidades do entrevistador: Jô tem classe. Em um programa mais recente, sacou 50 reais do próprio bolso para dar a uma simpática senhora que aluga óculos de sol em Ipanema. Quando Sílvio Santos – ex-patrão de Jô – pergunta “quem quer dinheiro?” para a platéia, é o retrato do novo-rico, ostensivo e vulgar. Quando Jô tira a carteira do bolso, o gesto tem um certo desprendimento natural.
A entrevista com o devorador de gambás foi ao ar no ano passado e, desde então, que eu tenha visto – não assisto ao programa com toda essa freqüência –, Jô não manteve mais conversação elegante sobre as delícias desconhecidas de nossas esburacadas rodovias. Seu assunto preferido é outro: ele mesmo. Como diria Millôr Fernandes: o cabotino pelo menos não anda por aí falando dos outros. Desde que se lançou como romancista com O Xangô de Baker Street, o entrevistador tem tido dificuldade até de falar com os outros, tão absorvido ele anda pela sanha autopromocional. Os entrevistados são coadjuvantes do brilhante entrevistador. Quase não passa dia sem que o programa enalteça a contribuição seminal de Jô Soares para as letras pátrias e o palco nacional.
O gordo até sondou suas chances de imortalidade ao entrevistar Nélida Piñon, presidente da Academia Brasileira de Letras. A campanha recrudesceu nos últimos meses com a estréia da peça Frankensteins, adaptada e dirigida por Jô. Ele, é claro, entrevistou o elenco no seu programa.
No quadro “Repórter por um Dia”, do Fantástico, apareceu fazendo jornalismo em causa própria: o tema da “reportagem” era – que surpresa! – Frankensteins. Tudo com o aplauso daquela certa classe média educada, embevecida com a inteligência de Jô.
Televisão é um negócio autopromocional por natureza. David Letterman – host de um show de entrevistas fúteis, similar ao do brasileiro, na tevê norte-americana – está se promovendo toda vez que espinafra no ar a direção de sua própria emissora, a CBS. Mas, pelo menos, essas provocações revelam um capitalismo que já ultrapassou as relações servis (veja só o contraste: quando Jô mudou-se do SBT para a Globo, um de seus primeiros entrevistados foi o doutor Roberto Marinho…). Com Letterman, a vaidade pelo menos serve ao humor. Com Jô, o humor serve à vaidade.
* Jornalista e mestre em Teoria da Literatura pela PUC/RS
Os artigos publicados nesta seção não traduzem necessariamente a opinião da Super.
Frase
“O humor de Jô Soares na TV serve apenas para sua autopromoção”