Veleiros tecnológicos: Aventureiros do século XX
Dez veleiros de aço, tripulados por amadores, saíram da Inglaterra para dar a volta ao mundo em sentido contrário às correntes a aos ventos. Da comida desidratada à comunicação por satélite, a tecnologia lhes garante a sobrevivência.
Fátima Cardoso e Ivan Martins, de Southampton
Maluco. Foi o que pensaram, disseram e escreveram sobre Chay Blyth, um inglês decidido a dar a volta ao mundo sozinho num veleiro, na contramão, há 21 anos. Ao redor do mundo, como a frota do explorador português Fernão de Magalhães realizara em 1522. Sozinho, como o navegador canadense Joshua Slocum fizera em 1898. Em sentido contrário às correntes marítimas e aos ventos, como ninguém ousara.Blyth conseguiu um barco de aço patrocinado pela British Steel, a maior usina siderúrgica britânica. Partiu de Southampton, na Inglaterra, e voltou 292 dias depois. Ao desembarcar, esgotado pela aventura, chamada na época de “a viagem impossível”, garantiu ao jornal The Times em sua primeira entrevista: “Eu nunca faria isso de novo e jamais sujeitaria outro ser humano à mesma situação”.A promessa foi por água abaixo Há três anos, o hoje promotor de eventos náuticos Chay Blyth foi chamado a organizar uma regata ainda mais desvairada que sua viagem pioneira. A British Steel Challenge, como foi batizada a prova, acenava com o temerário desafio de refazer a rota em contramão, mas desta vez com a participação de pessoas comuns, sem nenhuma experiência com o mar.
Anúncios apareceram em jornais e televisão chamando aventureiros em potencial, sob a condição de nunca terem participado de nenhuma regata transoceânica. Era preciso coragem também para desembolsar quase 30 000 dólares, a serem pagos em suaves prestações durante os três anos de treinamento.Apareceu gente de todas as idades, profissões, tipo físico, cor dos olhos, peso e altura. Muitos deles não sabiam sequer velejar. Pessoas normais, dessas que não chamam a atenção quando entram num ônibus. Mas com uma atração atávica pela aventura que os fez admitir a idéia de enfrentar até os vagalhões do Cabo Horn, entre o sul do Chile e a Antártida — o lugar mais perigoso do planeta quando se está sobre a água na opinião de qualquer marinheiro. “A viagem envolve perigo, mas é exatamente isso que as pessoas querem: aventura”, diz Blyth. É claro que, como um respeitável promotor de eventos náuticos, ele não pode permitir que seus clientes acabem no fundo do mar.Por isso, cada um dos dez veleiros da regata, projetados para resistir à fúria dos ventos, dos mares e aos erros de uma tripulação de amadores, leva a bordo um skipper (o capitão) profissional e uma parafernália de equipamentos eletrônicos de navegação e segurança. Esses aventureiros do século XX só lembram seus antecessores no gosto pelo perigo. Em lugar do sextante para descobrir a posição do barco no globo, há um computador ligado a satélites, em lugar de carne apodrecida e biscoitos disputados aos ratos como refeição, alimentam-se de uma dieta baseada em comida desidratada; em lugar da morte certa em caso de queda na água, vestem roupas térmicas e portam bips sinalizadores para que seja possível resgatar o perdido no mar.”Naquela época eu jamais faria uma viagem dessas” confessa o médico aposentado inglês Campbell Mackenzie, 60 anos, tripulante do barco patrocinado pela Rhône-Poulenc e médico oficial da prova. Mas ele reconhece que todo equipamento de segurança não é suficiente para tornar a empreitada tão tranqüila quanto passear de pedalinho pelo lago do Hyde Park, em Londres. Mas foi mesmo assim, atendendo a um chamado interior que ele define no mais puro estilo navegar é preciso: “É um impulso primitivo — não é desejo de morte, mas de viver perigosamente”. Se fossem perguntados na mesma hora, os tripulantes responderiam em coro que a vida na Inglaterra anda um tanto monótona, nada muda, não há guerras nem inflação. A regata é uma oportunidade única de viver uma aventura, dessas que não se fazem mais como antigamente.Como há 21 anos, quando Chay Blyth enfrentou o mar em condições muito diferentes das atuais. Navegação ele ainda fazia por sextante, a comunicação pelo rádio era precária e a qualidade da comida desidratada, bem inferior. Não havia as roupas térmicas que existem hoje e nem seu barco, o British Steel, contava com o dessalinizador dos barcos atuais para tirar do mar a água de beber.O pior de tudo é que, além de sozinho, Blyth fez uma viagem sem escalas, ao contrário da regata, dividida em quatro pernas — nome que se dá a um trecho qualquer da prova. Seus sucessores não estão sujeitos aos delírios de solidão que o faziam deitar em pânico no convés e esconder a cabeça num cobertor, com medo da luz. E o período mais longo que eles ficarão sem pisar em terra é sessenta dias. O slogan publicitário da viagem de Blyth — “Um barco de aço para um homem de ferro” — soaria hoje um pouco exagerado. “Com ou sem eletrônica, as pessoas ainda têm de passar oito horas por dia no convés manobrando o barco”, discorda Blyth. Ele insiste que os participantes da regata estão em pior situação. “Eles ficam sob a pressão de uma corrida e eu tinha todo o tempo do mundo”, compara.Foi nessa tripulação de novatos que o projetista David Thomas pensou quando desenhou os veleiros. Ao contrário dos milionários barcos de regatas famosas como a America’s Cup e a Withbread (está também ao redor do mundo, só que na mão certa), equipados com toda a tecnologia que o dinheiro pode comprar os participantes da British Steel Challenge foram idealizados e construídos com a preocupação de que os aventureiros a bordo completem a prova vivos.Em detrimento da velocidade, todos os detalhes do projeto privilegiaram a segurança e a resistência. A estrutura dos barcos é feita inteiramente de aço. O convés é de aço inoxidável, e o casco feito de uma folha de 4 milímetros de aço B-50, uma mistura duríssima que oferece a melhor relação possível entre peso e resistência. Cada um dos veleiros pesa 35 toneladas, o dobro dos veleiros de corrida, e tem 67 pés (20,421 metros) de comprimento. Em mar bravio, essa massa é constantemente erguida por ondas de 3 metros de altura e largada no ar para se chocar contra a água. A rotina de sobe-cai-bate se repete por horas, dias e meses, envolvendo quantidades de energia gigantescas. “Todo mundo que já saltou errado do trampolim sabe que a água não é macia quando se bate nela”, compara Thomas. Além disso, há o choque permanente e violento das ondas contra as laterais do barco, as enormes variações de pressão sobre o casco e a ininterrupta atuação química da corrosão.Para resistir a tanto esforço, o aço ainda é o material mais confiável. Materiais mais duros e mais leves como as fibras de carbono e os compensados de espuma e fibra de vidro, usados nos barcos de velocidade, podem ser uma bela fonte de encrencas neste caso. Quando ocorrem problemas com esses materiais modernos, geralmente são definitivos. Materiais de alta tecnologia também são difíceis de consertar. Um furo num casco de aço pode ser reparado onde houver um maçarico, mas não é em todo canto que se encontram compensados de fibra de vidro e técnicos capazes de lidar com eles.Ainda assim, a natureza às vezes ganha a batalha contra o veleiro. Peças enormes, como a retranca, podem se partir ao meio se estiverem do lado errado de uma rajada de vento. “Isso ocorreu na segunda perna da regata, a caminho do pólo sul. Tivemos que despachar uma retranca sobresselente por um avião da Real Força Aérea que ia para as Falklands”, conta Andrew Roberts, um dos diretores da prova. A disposição, o formato e tamanho das velas são outros fatores essenciais. Ao contrário dos veleiros de corrida convencionais, que navegam com o vento de popa (por trás), os barcos da British Steel Challenge navegam de frente para o vento. Os ventos têm velocidade muito maior, e por isso as velas são menores. “Velas maiores, em menor número, nos dariam mais velocidade, mas teriam custo elevado em segurança e operacionalidade”, explica o projetista Thomas.Ele optou por quatro velas menores, mais fáceis de manejar do que três grandes. Resultado: um veleiro mais seguro e manobrável, embora 20% mais lento. No tempo dos descobridores, só se podia saber que um navio havia chegado a algum lugar quando ele voltava. Nesta regata, os organizadores conseguem saber, de suas confortáveis salas em Southampton, onde anda cada barco. Os veleiros levam uma antena modelo Standard-C ligando-os à Inmarsat, uma rede internacional de satélites marítimos. A cada quatro horas, emite-se automaticamente um sinal a um satélite, informando a posição. Em troca, os barcos recebem todos os tipos de dados: fax, informações meteorológicas e correspondência. No caso de pane, basta apertar um botão e a antena envia um sinal de socorro via satélite.A outra comunicação com os céus se dá por meio dos satélites do GPS (sigla em inglês para sistema de posicionamento global). Na mesa de navegação, um computador ligado a essa rede informa a latitude e a longitude em que se encontra o veleiro com uma precisão de 50 metros. Mais do que isso, basta informar a esse computador onde se esta e para onde se vai, e ele informa a melhor rota a seguir, segundo variáveis como a velocidade e a direção dos ventos. Isso só é possível porque todos os censores e instrumentos do barco estão interligados. Assim, os censores de vento na ponta do mastro passam dados tanto ao computador do GPS, quanto aos mostradores digitais consultados pelo skipper. Os satélites só transmitem dados, e não voz. Para falar com os portos e outros barcos, há um rádio VHF, de pequeno alcance. Para falar com o mundo, há um rádio de ondas curtas, de longo alcance, que abrange as freqüências de 2 a 24 megahertz.O pior acidente possível durante uma tempestade é alguém cair na água. Baixar as velas e ligar o motor para controlar o barco é uma manobra complicadíssima. Mas o pior é que os acidentes passam despercebidos. Mesmo que o infeliz seja visto, só com a cabeça fora d’água ele geralmente some no meio das ondas. Por isso, cada tripulante da regata carrega um Personal EPIRB, sigla de transmissor de rádio de emergência pessoal. Pendurado no pescoço ou dentro do bolso da roupa de sobrevivência, esse “radinho” liga automaticamente em contato com a água e aciona um alarme na cabine do barco. Então, uma antena estreia a área até apontar numa direção em que o sinal é mais forte denunciando a posição em que o acidentado está boiando no mar. Isso seria inútil nas águas gélidas do sul do planeta, onde uma pessoa não sobreviveria mais do que 10 minutos. Mas a bagagem inclui uma roupa de sobrevivência feita de um plástico muito leve e impermeável. Com ela, uma pessoa pode sobreviver até três horas em águas a 5°C.Mesmo em cima do barco, sob uma tempestade gelada, eles vestem outras roupas térmicas e à prova d’água tecidas a partir de microfibras. Essas microfibras. que compõem o fio do tecido, são tão pequenas que impedem a água penetrar de fora para dentro. mas deixam o vapor passar no sentido contrário. Como a temperatura de uma pessoa é em torno de 36,5°C, mais quente que o ambiente, o suor sai pela roupa em forma de vapor. Por causa da diferença de pressão n movimento do ar é sempre do calor para o frio, ou seja, do corpo para o ambiente, impedindo que o frio penetre.Velejar perto da Antártida tem esses e outros perigos — um deles é bater nos temíveis icebergs. Essas traiçoeiras montanhas de gelo, porém, podem ser avistadas na tela do radar mesmo durante a noite, a até 40 quilômetros de distância. O radar também localiza outros barcos e tempestades vindouras. Outro método de prever a chegada das tormentas é consultar o barômetro digital, um aparelho com sensor de pressão atmosférica que guarda na memória a variação das últimas horas, calculando-se o tempo ficará estável ou não.Todos esses equipamentos são alimentados com energia elétrica armazenada em baterias, recarregadas todos os dias por um dínamo movido pelo motor do barco. Sem a eletricidade não funcionaria um dos aparelhos fundamentais, o dessalinizador, que transforma a água do mar em água potável. Uma bomba suga a água salgada e a empurra sob alta pressão (800 libras por polegada quadrada) através de uma membrana muito fina, que deixa passar as moléculas de água e barra as de sal. Além de usada para beber, a água é essencial também para comer — a maior parte da comida a bordo é desidratada. Há iguarias como frango ao curry, ovo em pó e carne, bastando adicionar água para se ter o prato pronto. “Se acabar a água morremos não só de sede, mas também de fome”, ataca de humor inglês o marceneiro Rod Street. tripulante do barco da Rhône-Poulenc.A sensação inevitável diante de tantos equipamentos é que os tripulantes dos veleiros da British Steel Challenge navegam numa concha tecnológica à prova de riscos e desconfortos. Nada mais enganoso. “A eletrônica fornece informações, mas toda ação é humana”, diz um dos organizadores, Andrew Roberts. “A cada momento da prova, metade da tripulação está no convés, puxando, empurrando, amarrando, carregando, enrolando, dobrando, encharcada e praguejando. Se o barco estiver sob ventos de 70 quilômetros por hora, eles vão estar lá. Se ondas de 4 metros de altura lamberem o convés, se a temperatura externa for baixíssima e o barco estiver 25 graus inclinado, eles ainda vão estar lá.”
Boxes da reportagem
Simon Walkerex engenheiro, 24 anos
“Deixei a engenharia para trabalhar como marinheiro. Entrei nesta regata para navegar ao redor do mundo e enfrentar o desconhecido
Valerie Elliottprofessora, 50 anos“
Com meus quatro filhos já adultos, queria viver uma aventura, algo que exigisse esforço físico, antes que fique velha demais.
”John O’Driscollskipper, 50 anos“
Se todos os equipamentos eletrônicos quebrarem, eu uso a bússola, o sextante e chego onde quiser. Apenas ninguém vai saber onde o barco está.
”Jerry Walsinghamgerente, 38 anos“
Nunca tinha velejado, sou do tipo que fica em casa vendo TV. Meu desafio é manter a boa convivência e o sorriso mesmo sob uma tempestade
”Rod Streetmarceneiro, 46“
Já trabalhei no Oriente médio, e estava achando a vida na Inglaterra muito certinha. Minha ambição sempre foi viajar ao redor do mundo”.