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Chefs e cientistas criam alternativas para pratos polêmicos

Lagostas fervidas vivas, gansos forçados a comer até não digerir mais, atuns caçados até a extinção e tubarões aleijados. Tudo isso pode ter fim. Fazendeiros, chefs e cientistas buscam alternativas para alguns dos pratos mais sofisticados (e polêmicos) da culinária. Eles estão conseguindo – sem abrir mão do sabor.

Por Felipe Van Deursen
Atualizado em 13 jul 2020, 14h54 - Publicado em 11 jun 2012, 22h00

A lagosta

A cena é famosa. Está até nos desenhos animados. Escolher a lagosta que será fervida viva para o deleite – ou trauma – dos comensais. O motivo é manter o frescor da carne. Sandro Dias, professor de história da gastronomia no Centro Universitário Senac, afirma que livros clássicos de culinária ensinam a tratar crustáceos como bichos que não sentem dor. Mas o cerco à prática está montado. União Europeia e Nova Zelândia, por exemplo, já têm leis que protegem a lagosta. E há pessoas buscando novas maneiras de tratar o animal.

É o caso do advogado britânico Simon Buckhaven, que largou o direito quando, de férias na França, pediu uma lagosta – e se arrependeu. Por dez anos, Buckhaven desenvolveu, com o apoio da Universidade de Bristol, no Reino Unido, um equipamento que eliminaste o possível sofrimento do animal (a ideia de dor nos crustáceos foi por anos debatida pela ciência, mas os últimos estudos indicam que, sim, eles sofrem) e mantém seu tão afamado sabor. O resultado foi o Crustastun, equipamento do tamanho de um micro-ondas cujos eletrodos emitem uma frequência que promete anestesiar o sistema nervoso da lagosta em meio segundo. A morte vem em 5 segundos, contra longos minutos na panela. A máquina, lançada em 2009, já foi vendida para países como Inglaterra, Irlanda, Noruega e Portugal. O Crustastun na versão para restaurantes sai por 2,5 mil libras (cerca de R$ 8 mil). Mas há também uma maior, criada para a indústria, que custa quatro vezes mais.

MAS E AÍ, É BOM?
Para o chef Giorgio Locatelli, do Locanda Locatelli, um dos melhores restaurantes de Londres segundo o Guia Michelin, prestigiada publicação francesa de gastronomia, lagostas preparadas com o aparelho ficam melhores. “A carne é mais macia e suculenta. Mantém a umidade”, diz.

Comida sem dor
Segundo um estudo da Universidade de Glasgow, o Crustastun elimina a dor das lagostas e deixa sua carne com mais proteínas e menos bactérias. (Alex Silva/Superinteressante)
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O ganso

São 30 cm de comprimento. A ave engole uma torrente de ração que desce pelo cano metálico, completamente enfiado em seu esôfago. Por 10 segundos, quatro vezes ao dia, o animal parece mais um saco de penas preenchido com milho. Nas horas vagas, digere a refeição enquanto aguarda a próxima sessão em uma gaiola individual. Após cerca de um mês, seu sistema digestivo não suporta mais comida. É hora do abate. Só na França, maior produtora e consumidora, seu fígado movimenta um mercado de R$ 3,8 bilhões ao ano. Não é um fígado comum. Ele cresce até dez vezes de tamanho. É um fígado gordo. Ou seja, um foie gras.

A alimentação forçada (gavage) de gansos e patos é o meio usado para produzir foie gras em escala industrial e abastecer refeições sofisticadas que celebram essa iguaria de textura amanteigada no mundo todo. Mas a pressão pelos bons tratos aos animais já conseguiu sua proibição em alguns lugares. Até a cidade de São Paulo chegou a banir a produção do fígado de ganso em 2015, mas a lei terminou suspensa. De qualquer maneira, o debate está abrindo espaço para uma gastronomia mais ética. Para seus defensores, não é preciso eliminar o foie gras, com 5 mil anos de história e eleito, em uma pesquisa do Ministério da Economia francês, o símbolo máximo da culinária mais sofisticada do mundo. A ideia é provar que se deliciar sem culpa pode ser possível.

Egípcios, gregos e romanos já conheciam as delícias dos fígados inchados. “Homero menciona a prática na Odisseia”, diz Mark Caro no livro The Foie Gras Wars (inédito em português). E é essa capacidade que os produtores exploram há séculos, a ponto de muitos deles dizerem que não existe foie gras sem gavage.

Não é o que pensa um fazendeiro de Estremadura, na Espanha. Há 200 anos, a Patería de Sousa gaba-se de fazer patês ecológicos. Lá, as aves são criadas em liberdade e têm alimentação baseada em frutas e sementes da própria fazenda (e sem os sinistros tubos). E ela tira vantagem de um detalhe que a indústria, devido à demanda incessante o ano todo, ignora: patos e gansos engordam naturalmente com a chegada do frio. São aves migratórias, que acumulam gordura para suportar a viagem. O que o proprietário Eduardo Sousa faz é oferecer o que elas procurariam ao Sul: figos, nozes, sementes etc. Sem precisar prendê-las. Com a ajuda do clima favorável da região, ele as convence a ficar para o inverno. Sousa é reconhecido por fazer um foie gras de primeira linha, mas seus desafios são enormes. “Para criar mil gansos, preciso de 12 meses, 500 hectares e muitas árvores para fazer o que eles conseguem em 15 dias e 100 m²”, diz, referindo-se aos produtores tradicionais.

O resultado é um foie gras ainda mais caro. O pote de 180 g custa 199 euros na Espanha. Mas a demanda é grande. A importadora brasileira Rosa Maria Zoboli chegou a comprar por impulso tudo o que Sousa havia produzido em um ano: 540 disputados frascos, desembolsando o que seria hoje mais de R$ 400 mil. Apesar do custo, ela (que também teve sua epifania verde ao pedir uma lagosta de férias na França) acha que o investimento valeu a pena. “Dependemos dos caprichos da natureza”, explica Sousa. Desafios de quem não trata a comida como indústria.

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MAS E AÍ, É BOM?
Há chefs que torcem o nariz para a falta de confiabilidade na produção de Sousa. Mas o espanhol tem fãs confessos, como Dan Barber, ícone da gastronomia sustentável e um dos maiores chefs do mundo. “É inacreditável, melhor que qualquer um”, diz à SUPER.

Comida sem dor
Um espanhol quer lembrar que não é preciso forçar o ganso a comer para engordar. A ave faz isso naturalmente. (Alex Silva/Superinteressante)

O atum

Na década de 1970, um peixe que até então era usado para fazer ração de gato virou iguaria: o atum. E é de uma espécie de atum, o atum-azul, máquina de meia tonelada, 3 m de comprimento e veloz como uma lancha, que vem um dos itens mais cultuados da culinária do Japão: uma camada de gordura chamada toro. O problema é que o peixe está acabando. As 6 milhões de toneladas de todas as espécies de atum que consumimos por ano colocaram o atum-azul na lista de animais mais ameaçados de extinção da ONG WWF.

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Para combater isso, há três caminhos. O primeiro são fazendas marinhas. Viável, mas uma medida cara. O atum-azul é um animal selvagem, que vive em constante migração e come dez vezes mais que um salmão de cativeiro, por exemplo. E atum de fazenda produz carne de menor qualidade, segundo especialistas. Outra alternativa é a substituição do azul por uma versão desenvolvida pela Universidade Kinki, no Japão: o kindai. É um atum-azul domesticado, sem o comportamento que o faz ser comparado a um tigre do mar. A terceira, defendida por especialistas como o jornalista americano Trevor Carson, autor de The Story of Sushi, é a mais radical: abandonar o toro. Para ele, trata-se de comida pouco sofisticada e culturalmente irrelevante. Não faria falta. “Se a ideia é apreciar a qualidade do atum-azul, coma a carne dele, akami. Se é para comer a gordura que derrete na boca, que os fãs adoram, vá de atum-branco”, diz.

O chef Helio Takeda, professor de gastronomia da Universidade Anhembi Morumbi, largou o toro devido à ameaça ao atum-azul. “Podemos comer peixes, como carapau ou atum-amarelo, abundantes no Brasil. Mas não têm a mesma qualidade”, diz.

MAS E AÍ, É BOM?
“Atum-branco é menos sofisticado que toro, mas é uma boa alternativa”, diz Carson. E kindai pode ser ainda melhor. “É peixe de fazenda, pode ter mais gordura, mais toro.” Mas ele lembra que ainda se debate se kindai é uma medida sustentável devido aos altos custos de manutenção das fazendas.

Comida sem dor
Um exemplar de atum-azul chegou a ser vendido por R$ 1,4 milhão. Ou R$ 5,3 mil o quilo. (Alex Silva/Superinteressante)
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O tubarão

Sopa de barbatana de tubarão é uma sofisticada iguaria chinesa, consumida nas alas mais tradicionais do país e também em restaurantes ao redor do mundo. O costume é responsável pela matança de mais de 70 milhões de tubarões todos os anos. A pesca é controversa porque consiste simplesmente em pegar os peixes, cortar suas barbatanas e jogá-los de volta ao mar, onde, incapacitados de se orientar, afundam e sangram até a morte. Por causa da gastronomia. Estima-se que algumas espécies estejam reduzidas a 1% da população de dez anos atrás, segundo a revista Scientific American.

O grande desafio de combater seu consumo é que, assim como o foie gras, trata-se de um costume histórico, com 700 anos de tradição. A sopa é servida em casamentos e comemorações. Embora esteja caindo de popularidade entre as camadas mais ocidentalizadas, onde é substituída até por vinho francês (a questão principal é o status, acima do sabor, afinal), a sopa ainda é popular na China e em Taiwan. E é nessa ilha que alguns pesqueiros investem em uma alternativa mais ecologicamente viável, segundo o portal Taiwan News.

No lugar do tubarão, a cooperativa Kouhu vende barbatanas de tilápia de Taiwan, um peixe largamente domesticado, a restaurantes de Taiwan, Hong Kong e Japão. O diretor da cooperativa, Wang Yi-feng, diz que eles vendem a preços quatro vezes menores, o que motiva a procura. A medida diminui a demanda pelos tubarões e eleva o valor agregado da tilápia, que deixa de ser só ração de peixe para ser também comida sofisticada. Além disso, ela não tem mercúrio, comumente encontrado no tubarão. Para Dan Barber, o chef defensor do foie gras verde, o futuro de toda a comida está em pratos assim.

MAS E AÍ, É BOM?
Para a jornalista taiwanesa Rachel Chan, autora de reportagens sobre a tradição, não há diferença entre sopa de barbatana de tubarão e de tilápia de Taiwan. “Não têm muito gosto e a textura é a mesma”, diz. “Quem se preocupa com os animais vai escolher essa alternativa.”

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