A arte de viver bem
Tratamentos à base de pintura, dança e música revelam o poder da arte na recuperacção de portadores de deficiência.
Nelson Liano Jr
Começam a soar os atabaques e o berimbau. A roda de capoeira vai se formando. Júlio Cesar Motta, 29 anos, que tem paralisia cerebral, se aproxima. Os médicos lhe haviam dito que jamais moveria as pernas. Mas não é isso que se vê. Ele desce da cadeira de rodas e começa a gingar o corpo apoiado na cabeça, enquanto move as pernas aplicando e se esquivando de golpes. Depois de alguns rodopios, Júlio volta para sua cadeira, apanha o atabaque e marca o ritmo para os companheiros. Os quatro anos de capoeira lhe permitiram superar limites. “A capoeira deixa meu corpo mais ágil e leve”, afirma. Depois de Júlio Cesar, é a vez de Jerry Daniel de Carvalho, 18 anos, entrar na roda. Com movimentos suaves e precisos, parece um capoeirista como qualquer outro. Mas Jerry é um aluno especial. Ele tem síndrome de Down.
Elementos simples como música, ritmo, movimento, cores e texturas são ferramentas valiosas na recuperação de deficientes físicos e mentais. A arte estimula regiões do cérebro que outras técnicas não conseguem alcançar, tem o poderoso dom de elevar a auto-estima do portador de deficiência e ainda favorece sua integração com outras pessoas. O envolvimento que geralmente ocorre entre o paciente e a atividade artística promove também um tratamento em geral mais duradouro, porque o deficiente não encara as sessões como obrigação ou sofrimento e sim como um prazer. Resultado: o desenvolvimento é mais rápido e contínuo.
A utilização da arte na recuperação de deficientes é uma aplicação recente, descoberta no final da década de 60. Foi naquela época que surgiram instituições como a Very Special Arts, uma organização não-governamental fundada em 1974, nos Estados Unidos, por Jean Kennedy Smith, irmã do presidente americano John Kennedy, que procura integrar os deficientes no mercado de trabalho utilizando técnicas artísticas. Para se ter uma idéia da força que essa terapia ganhou, a Very Special Arts funciona hoje em 84 países, inclusive no Brasil.
“A motivação gerada pela atividade artística é tão ou mais importante que a técnica de reabilitação. O deficiente não encara o tratamento como algo puramente terapêutico e, assim, os benefícios são mais amplos. As técnicas de reabilitação mecânica, por exemplo, são um sofrimento para o portador de deficiência, porque ele não tem nenhum ganho emocional”, diz o neurologista Antenor Chicarino, que acompanha o desenvolvimento de alguns deficientes envolvidos com atividades artísticas.
Chicarino vive e trabalha em Guaratinguetá, interior de São Paulo, e entre seus pacientes estão Jerry e Júlio, os protagonistas da roda de capoeira descrita no início deste texto. A evolução dos dois na capoeira é atribuída ao mestre Ponciano de Almeida, que há mais de 20 anos ensina os movimentos da luta para portadores de deficiência. “O trabalho com o aluno especial exige mais atenção do professor. Mas todos têm um potencial para desenvolver e, em geral, eles superam as próprias expectativas”, diz Ponciano. Chicarino concorda. “Todas as pessoas que são portadoras de algum tipo de deficiência, mental, sensorial, ou mista, têm suas potencialidades. Ninguém é totalmente incapaz”, afirma o neurologista.
O ganho é palpável, diz Sofia Criscuolo Martins de Carvalho, fisioterapeuta da Universidade Federal de São Carlos, que há 14 anos trabalha na Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais de Guaratinguetá. “A capoeira trabalha com uma série de movimentos de alongamento e relaxamento que regulam o tônus muscular, desenvolvendo a reação de equilíbrio e as relações de proteção, permitindo o desenvolvimento físico. A música, o ritmo e a atividade em grupo os estimulam.” Fisiologicamente, as técnicas têm a função de feedback. Ou seja, normalmente, é o cérebro que estimula a parte motora ou sensorial. Mas, no caso de tratamentos como a capoeira, o estímulo motor é que induz a função cerebral.
No Instituto Padre Chico, no bairro do Ipiranga, em São Paulo, nasceu um grupo de balé clássico que promove espetáculos sofisticados. Detalhe: todas as participantes são cegas. As meninas aprendem as posturas e os passos por meio do tato e de orientações verbais. A professora faz o movimento e as alunas aprendem a posição passando as mãos pelo seu corpo. Em seguida, tentam imitá-la e recebem instruções para corrigir o que houver de errado. Nessa brincadeira de seguir o mestre, as alunas não ganham apenas o reconhecimento por um espetáculo bonito. Elas aprendem noções de equilíbrio, de espaço e das dimensões de seu próprio corpo.
“O balé exige noção espacial e muitos deficientes não conhecem nem o próprio corpo. Então, tive de ensinar o que é uma mão, uma perna e que movimentos é possível realizar com cada membro”, diz a bailarina e fisioterapeuta Fernanda Bianchini, professora das meninas do Padre Chico. “A falta de visão também prejudica o equilíbrio, que é fundamental no balé. No começo, as alunas não conseguiam ficar apoiadas em um pé só nem por dez segundos. Ao longo do tratamento, elas conseguem ficar 30 segundos mantendo a postura. No final das contas, a diferença entre as meninas cegas que fazem balé e as que não fazem é gritante.”
Na verdade, os resultados vão além dessas melhoras pontuais. “O deficiente visual está sempre com o olhar baixo. Ele come com a cabeça baixa, canta com a cabeça baixa. No balé ninguém pode ficar assim. O balé exige uma postura ereta, alongada, uma consciência corporal muito grande. E o que acontece é que o deficiente muda a postura com a dança”, diz a professora. Marina Guimarães, de 14 anos, nem sabia o que era balé. Cega desde os primeiros meses de vida, ela foi descobrindo a arte na prática e acha que graças ao balé se tornou mais independente, conseguindo explorar muito melhor o espaço à sua volta. “A Marina sempre foi muito independente. Mas o balé melhorou a leveza dos seus movimentos”, diz a mãe, Miriam Guimarães.
Geisa Pereira da Silva, de 15 anos, sonhava ser bailarina, mas o sonho parecia perdido para sempre quando a menina ficou cega, aos 8 anos. “Ela teve de aprender a andar de novo. Ao sair do hospital, não enxergava e não andava”, diz a mãe, Gilvani Pereira de Souza. O balé fez Geisa perder o medo de andar e de movimentar-se. Sua coordenação motora melhorou bastante. Braços e pernas que haviam atrofiado voltaram ao normal. “Ela viu que por meio do balé poderia superar as limitações”, diz Gilvani. “Quando eu enxergava, achava que jamais poderia fazer o que as bailarinas faziam. E agora eu consigo, graças à minha força de vontade e à ajuda da minha professora”, diz Geisa.
Uma das iniciativas mais bem-sucedidas para a educação do deficiente visual, no Brasil, é o Instituto Laramara. Localizado na Barra Funda, em São Paulo, o Laramara impressiona pela qualidade das instalações, divididas entre dois edifícios que não lembram em nada um centro assistencial. Ali funcionam estúdio de gravação musical, gráfica, fábrica de montagem de máquinas de braile e laboratório de informática, além de um ateliê de artes plásticas e salas para aulas de violão, teclado e dança.
A ONG foi criada há dez anos e é mantida pela família do casal Mara e Victor Siaulys, a partir de sua experiência com a filha, Lara Siaulys, de 22 anos, que nasceu cega. “É fundamental dar oportunidade para a criança cega aprender, se não ela fica com defasagem intelectual, com retardo mental e disfunções neuromotoras”, explica Mara. Sua filha envolveu-se com música, hoje é baterista e estudante de música na Unicamp e tem muita independência. “A Lara faz parte de uma banda”, diz a mãe, que se formou em pedagogia voltada para o estudo de deficientes. A música foi um dos elementos importantes na sua educação. Ela é muito independente e viaja sozinha pelo mundo.”
Um personagem que chama a atenção no Laramara é Nino Carlos Nascimento Silva, 24 anos, responsável pelo estúdio de gravação. Há oito anos, ele perdeu quase toda a visão em um acidente automobilístico. Na época, era DJ na noite paulistana. O choque fez com que permanecesse quatro anos em casa. Sem perspectivas, chegou a pensar em suicídio. No Laramara aprendeu a tocar violão. Começou a trabalhar no estúdio e hoje considera sua vida normal. “Eu não sabia que gostava tanto de instrumentos. Tocando, mixando e editando no estúdio eu me sinto reintegrado e saudável. Minha deficiência deixou de me impedir de fazer as coisas de que gosto. Descobri que o ser humano tem uma incrível capacidade de adaptação, é possível fazer tudo, a questão é aprender.”
Eliana Ormelezzi, coordenadora das atividades artísticas do Laramara, afirma que a arte melhora a vida dos deficientes. “Eles se descobrem e encontram canais de expressão que desconheciam em si mesmos, tudo levando para um desenvolvimento humano, pessoal e social mais amplo.”
A julgar pelo trabalho do artista plástico Paulo Pitombo, não há limitações para o desenvolvimento de deficientes. Pitombo dá aulas de desenho e pintura para cegos e deficientes visuais no Museu de Arte Moderna e no Laramara. Para ele, falta de visão não é empecilho para essa atividade, essencialmente visual. “É preciso entender a visão como o ato do pensamento, não só como uma questão de luz e captação do nervo óptico.” No caso de pessoas com baixa visão, as artes plásticas ajudam muito, segundo ele.
“Quem tem baixa visão otimiza sua capacidade através dos exercícios de cor e forma. O deficiente visual que pinta não só potencializa o resquício de visão que houver como ainda consegue recuperar parte dela.” Pitombo fala por experiência própria, pois é deficiente visual. “Eu não tenho a visão central. Então, foi preciso otimizar minha visão periférica. Aprendi a olhar mais pelo fato de estar desenhando.” Pitombo acha que as formas são um universo ainda desconhecido para os deficientes visuais. “O que cada cor representa dentro do espírito de quem não enxerga? Que dimensão essas pessoas dão para a textura? Que tipo de matéria é a tinta? Isso tudo é muito estimulante e cria uma liberdade de representações.”
Outra experiência interessante é a de Célia Horta, mestre em psicologia pela Universidade de São Paulo e especializada em atendimento de deficientes auditivos. Em 11 anos de trabalho, Célia associou o tratamento ao teatro de bonecos e já teve uma de suas peças, chamada Meu Deus, Isto Fala!, em cartaz em São Paulo. A psicóloga conta que o tratamento procura facilitar o entendimento entre o deficiente e seus familiares. “Para isso, é preciso remover alguns preconceitos gerados pela falta de informação sobre o assunto. A idéia é transmitir informações mostrando quais as necessidades de cada um.” A peça conta a história de atores deficientes que se reúnem para ensaiar uma peça sobre a vida do inventor do telefone, Graham Bell. O cientista americano, que tinha a esposa e a mãe quase surdas, pesquisava um aparelho para surdez quando descobriu o telefone.
O texto procura ensinar a platéia a lidar de maneira natural com os portadores de deficiência. Uma das manipuladoras de bonecos é deficiente auditiva – em mais uma prova de que a vida imita a arte.
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