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A genialidade oculta das formigas

Só dois tipos de animal praticam a agricultura. Um é o Homo sapiens. O outro é este aqui.

Por Flávio Dieguez e Demétrius Paparounis
Atualizado em 5 set 2018, 18h22 - Publicado em 31 mar 1993, 22h00

Apenas dois gêneros do Reino Animal foram espertos o bastante para fugir às incertezas da vida e garantir a sobrevivência por meio daquilo que semeiam e colhem. O primeiro é definitivamente um novato. Existe há pouco mais de 2 milhões de anos, aprendeu a arte do cultivo há coisa de 100 séculos e hoje é representado por uma única espécie sobre a face do planeta, o Homo sapiens – remanescente solitário do gênero Homo, que surgiu há 2 milhões de anos com o Erectus. Seu formidável concorrente existe há um tempo que se mede na casa dos 100 milhões de anos, trouxe praticamente do berço as técnicas agrícolas e se multiplicou em quarenta espécies sobre a Terra.

São as saúvas, que aprenderam a cultivar um fungo sobre um canteiro de folhas cortadas, para depois usá-lo como alimento. Por isso, muitos entomologistas, estudiosos de insetos, as consideram os mais avançados animais dessa categoria — talvez mais que as abelhas, suas primas. Não é à toa que saúvas e abelhas têm tanta importância no mundo moderno. Ambas são tataranetas de um inseto genial, que há mais de 200 milhões de anos descobriu um meio de colonizar o subsolo. Este era, então, um vasto e inexplorado ambiente, apenas à espera de um aventureiro que o ocupasse.

Formiga saúva

Mas fazer ninho em tal lugar significava nada menos que oferecer a prole à inexorável carnificina de fungos, bactérias e outros microorganismos que ocupavam o lugar desde tempos imemoriais. A menos que se tivesse um bom desinfetante à mão — e foi isso que descobriram os ancestrais de formigas, abelhas e vespas, coletivamente chamados himenópteros. Contemporâneos dos dinossauros, os antigos himenópteros guardavam remota semelhança com os seus descendentes.

Logo após a invenção do anti-séptico do solo, eles começaram a se transformar rapidamente. E quando se toma consciência do resultado é difícil evitar a sensação de que o planeta, em boa parte, pertence a eles, por mais desagradável que isso soe aos ouvidos humanos. É chocante perceber que as formigas não são pragas — como ensina o geneticista americano Edward Wilson, da Universidade Harvard. “Se elas desaparecessem, centenas de milhares de espécies seriam extintas e muitos ecossistemas ficariam perigosamente desestabilizados.”

Suas responsabilidades começam pelas tarefas básicas de manutenção da vida no mundo. Ao lado dos cupins e minhocas, as formigas arejam, revolvem e drenam diariamente toneladas de terra e assim garantem a boa saúde do solo, mais tarde enriquecido pela matéria orgânica que os insetos levam para os ninhos. “Hoje se sabe que as formigas são mais importantes que as minhocas nesse trabalho”, diz o mirmecólogo, ou especialista em formigas, Carlos Alberto Brandão, da Universidade de São Paulo. Wilson, por sua vez, calcula que elas desfazem e enterram nove de cada dez pequenos animais mortos em qualquer ponto do planeta.

As formigas também estão entre os mais importantes disseminadores de sementes, feito equivalente à disseminação do pólen pelas abelhas.

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As formigas também estão entre os mais importantes disseminadores de sementes, feito equivalente à disseminação do pólen pelas abelhas. Ainda mais impressionante, porém, é a tremenda influência das formigas sobre grande número de seres vivos. O tamanduá é o caso mais escandaloso, pois é rigorosamente desenhado para comer formigas e cupins. Mas com as árvores ocorre algo parecido: um terço delas no Brasil serve néctar às formigas em troca de proteção, revela o biólogo Paulo Sérgio Oliveira, da Universidade de Campinas, SP. O néctar (ou açúcar) é excretado com outros resíduos inúteis, dispostos em pequenas caroços sobre as folhas, e ao longo dos milênios houve um nítido aumento da parcela de néctar.

É como se as árvores convidassem as formigas a viver em seus galhos. Elas não só devoram insetos predadores de plantas, comedores de folhas, como enxameiam ao simples cheiro de estranhos e espantam mesmo animais de grande porte (o homem, inclusive). Sem essas formigas-lixeiras, ou pseudomirmecíneas, no jargão técnico, as árvores do grupo das acácias são literalmente destruídas por predadores, como provou o biólogo americano Daniel Janzen em 1967.

Em anos recentes, Oliveira encontrou prova semelhante com relação ao Cerrado brasileiro. “Impedíamos que as formigas subissem em um grupo de árvores e mantínhamos outro grupo liberado.” Em poucos dias, as árvores desamparadas estavam visivelmente pior que suas vizinhas. Outro exemplo admirável são os formicarídeos — pássaros cujo meio de vida consiste em surpreender pequenos bichos afugentados pelas taocas, formigas carnívoras das florestas. A dependência dessas aves é tal que a forma de suas pernas se alterou para que pudessem pousar em ramos junto ao solo, que são quase verticais.

Nessa posição estratégica, logo acima da coluna de taocas, os bicos não deixam escapar grilos, lagartixas, aranhas e outros acepipes em fuga. O poder das formigas fica claro quando se sabe que os formicarídeos constituem 240 espécies — toda uma grande família de pássaros da América do Sul e Central. Diante disso, é natural que os himenópteros tenham suscitado grande interesse científico nos últimos anos. Sabe-se, antes de mais nada, que eles tiram sua força da quantidade: estima-se que as formigas sejam 10 000 trilhões em todo o mundo (elas só não vivem nos pólos, ao que se sabe).

Formiga saúva

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Edward Wilson acrescenta que elas são mais numerosas que o conjunto dos vertebrados terrestres, isto é, todos os mamíferos, aves, répteis e anfíbios juntos. Assim, embora cada uma pese 1 milionésimo do peso de um homem, a massa viva de todos os formigueiros alcança 1 milhão de toneladas, apenas 300 vezes menos que o peso total da humanidade. Abelhas e vespas, embora sejam relativamente menos abundantes, ampliam de maneira considerável a população mundial dos himenópteros.

Mas o que tornou os himenópteros tão numerosos, em primeiro lugar? A resposta, dizem os entomologistas, está numa espécie de inteligência que não funciona no cérebro: ela se encontra em todo o organismo desses seres, embutida nas habilidades desenvolvidas por eles. Acima de tudo, sua sagacidade transparece por meio da vida em sociedade: entre milhões de espécies classificadas na categoria dos insetos, apenas eles e os cupins desenvolveram ao máximo esse método de dividir tarefas e multiplicar a eficiência do trabalho.

Em suas comunidades, todas as fêmeas operárias estéreis e os machos servem apenas para inseminar a rainha, única fêmea fértil. Chamam-se “eussociais” os seres que praticam tal forma de matriarcado, que foi decisiva: somente 5% de todas as espécies de abelhas, por exemplo, têm comportamento social, mas estas últimas superam largamente em número os 95% restantes. Daí o entusiasmo com a descoberta, há poucos meses, das primeiras sociedades que não reúnem himenópteros ou cupins.

Colméias são estádios: abrigam 50 mil indivíduos. Mas formigueiros são metrópoles, com até 5 milhões de moradores

Elas são formadas por pequenos parasitas de plantas, chamados afídios, e também por um besouro australiano que habita túneis cavados no eucalipto. Embora pequenas e simples, tais comunidades podem revelar novas facetas desse fenômeno crucial. Chega-se a dizer que colméias e formigueiros não são simples ninhos — são um ser vivo em si mesmo. As colméias são como estádios: abrigam em média 50 mil indivíduos, mas são verdadeiras metrópoles: podem reunir mais de 5 milhões de habitantes.

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Em cada um deles, túneis estreitos interligam dezenas de “panelas” — os locais onde as saúvas efetivamente vivem. São ocos subterrâneos, geralmente com meio metro de altura, usados para diversas funções: desde lixeiras comunitárias (também usadas como cemité-rios), até berçários onde a rainha deposita ovos. No final, a construção equivale a um prédio de três andares enterrado a 10 metros de profundidade. Aí, a maior panela é a de cultivo, na qual as folhas que chegam do exterior são dispostas com cuidado e adubadas com o hormônio fertilizante, excretado pela rainha, de nome ácido indolil-acético.

Uma casta inteira de saúvas, as chamadas jardineiras, com 2 milímetros de comprimento, nunca sai do formigueiro. Elas existem para cuidar do fungo, o que inclui cortar ervas daninhas: fungos que não servem para comer. As cortadeiras, que trazem as folhas, têm 5 milímetros e labutam no mundo externo sob a proteção dos taludos soldados, com 1,5 centímetro.

É curioso notar que o sauveiro leva mais de 100 dias para nascer. O primeiro passo é a revoada: até 4 000 fêmeas aladas deixam um ninho adulto e, depois de inseminadas em pleno vôo por 30 000 machos, tornam-se rainhas. Aquelas que escapam aos predadores e às intempéries (muitas vezes menos de 0,5% do total) trabalham dez horas sem descanso para cavar um abrigo de 11 a 12 milímetros de diâmetro, a 15 centímetros de profundidade.

Após bloquear a entrada — por segurança —, as rainhas cospem uma minúscula muda de fungo que haviam trazido na boca e começam o cultivo. Na falta de folhas, elas sustentam o crescimento do fungo com o fertilizante real. Depois de cinco ou seis dias, ainda sem se alimentar, as rainhas põem alguns dos ovos que armazenam no corpo, cujo número alcança 3 milhões, em média.

Assim, aos vinte dias nascem as jardineiras para cuidar da horta e quase três meses depois surgem as cortadeiras, o que dá vida definitiva ao novo ninho. Os soldados aparecem aos 22 meses e os bitus e içás — machos e fêmeas de asas —, aos 38 meses. Estes são os únicos moradores além da rainha que não são estéreis. Significativamente, nascem pouco tempo antes da primeira revoada, isto é, o primeiro passo para reiniciar a multiplicação dos sauveiros.

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Um sauveiro processa 8 toneladas de folhas por ano

Embora haja casos de ninhos que sobreviveram após o nascimento de nova soberana, a regra é eles desaparecerem com o fim do estoque de ovos e a morte da rainha, geralmente aos 15 anos de idade. Nesse período, o sauveiro processa nada menos que 8 toneladas de folhas por ano — o suficiente para alimentar três bois, lamentam os especialistas em pragas. Sem dúvida, foi justamente essa eficiência que sustentou o visceral preconceito contra a saúva. Já em 1560, o padre José de Anchieta afirmava desdenhosamente que, entre as formigas do país, só mereciam menção “as chamadas içás, que estragam as árvores”. E o poeta Mário de Andrade fazia eco ainda em 1928: “Pouca saúde e muita saúva os males do Brasil são!”

Esse verso parece inspirado num vaticínio famoso, escrito 100 anos antes pelo naturalista francês Auguste Saint-Hilaire: “Ou o Brasil acaba com a saúva ou a saúva acaba com o Brasil”. O erro básico desse modo de ver é que ele esquece o principal vilão da história: o próprio homem. Mas é fácil perceber que a saúva causa grandes estragos onde o homem gerou fortes desequilíbrios ecológicos. Os pastos são um exemplo histórico: em alguns deles se podem contar até 64 sauveiros em cada quadrado de apenas 100 metros de lado. Nos últimos anos, a ameaça das saúvas voltou a crescer devido aos reflorestamentos, geralmente de eucaliptos, que a saúva adora.

O mais escandaloso resultado dessa prática ocorreu em Mato Grosso do Sul, que se diz ostentar a maior concentração de formigueiros do mundo: reunidos num só, eles cobririam 500 quilômetros quadrados, área quase igual à da cidade de Porto Alegre. O desastre foi detectado no centro do Estado, onde a mata de 2 500 quilômetros quadrados havia sido derrubada para dar lugar a eucaliptais. A conclusão inevitável dos biólogos é que a praga saúva segue os desajeitados passos humanos na natureza. E não só a saúva: a doméstica lava-pés, por exemplo, tem sido acusada de devorar até crianças no Estado americano do Texas, para onde foi levada provavelmente em cargas de navios.

Originária de Mato Grosso, onde não chega a assustar, ela proliferou e se metamorfoseou em praga por estar fora de lugar, num ambiente em que não tem rivais ou predadores à altura. Aí, as lava-pés atacam bezerros recém-nascidos e também silos de cereais e pessoas. Também na Europa há infestações recentes e preocupantes de diversas formigas que, em pontos-chaves como os hospitais, podem causar prejuízo e acidentes sérios.

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É compreensível, portanto, o ressentimento existente contra as formigas; vistas com isenção, porém, seus danos apenas salientam sua incrível força e capacidade de sobrevivência. Nada disso seria novidade se durante tanto tempo não se estudassem as formigas pelo avesso: mais para destruí-las do que para conhecê-las. Hoje, essa situação parece estar se invertendo.

Ainda não está muito claro como os himenópteros aprenderam a tirar o máximo proveito do mundo subterrâneo, até chegar ao nível de sabedoria das abelhas e saúvas. Afinal, muitas formigas modernas nem vivem no solo: sem contar as que se instalam nos galhos ou ninhos de folhas, várias delas se abrigam em troncos caídos e outras são nômades, sem casa fixa. As nômades mais terríveis são as carnívoras do gênero Eciton: todas as noites, os 50 000 membros de um bando se agarram uns aos outros e formam uma massa viva, no centro da qual se abrigam a rainha e seus ovos.

Também há vespas e abelhas com todos os tipos de moradia, desde buracos no chão, galhos e troncos ocos até as sofisticadas colméias. Apesar disso, os mais antigos himenópteros parecem ter sido moradores do solo parecidos com as atuais vespas solitárias e carnívoras. Com o tempo, esses insetos do passado teriam aperfeiçoado a toca e eventualmente se tornaram eussociais, criando um dos fenômenos mais importantes e curiosos em todo o reino da vida.

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