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A origem das espécies

Meses antes de morrer, Stephen Jay Gould explicou como o genoma pode mudar até a nossa visão da seleção natural.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h54 - Publicado em 31 jul 2005, 22h00

Rafael Kenski

Além de figurinha carimbada no mundo da divulgação científica, o paleontólogo Stephen Jay Gould foi o que se pode chamar de um professor caxias. Durante os 35 anos que esteve à frente do curso História da Vida, na Universidade Harvard, EUA, ele só abandonou o programa de suas clas-ses duas vezes. A primeira vez foi nos anos 60, após uma invasão da reitoria pelos estudantes. A segunda foi no início de 2001, quando interrompeu a aula para falar do impacto do mapeamento do genoma. “É um feito comparável à invenção das ferrovias no século 19 ou ao desenvolvimento da eletrônica e das telecomunicações”, disse.

Para Gould, o mapeamento dos nossos genes vem comprovando que a evolução biológica é bem mais complexa do que se imaginava. E, apesar de ter sido um ferrenho defensor de Charles Darwin, ele dizia que a seleção natural não explica, so-zinha, a evolução de todas as espécies. Idéias como essa o tornaram conhecido no mundo todo como um dos mais polêmicos cientistas dos EUA. Seus artigos científicos trataram de temas como biologia, geologia, arte, religião, história e paleontologia e, muitas vezes, foram reunidos em livros. De seu escritório em Nova York, ele falou à SUPER por telefone poucos meses antes de morrer.

P: Qual será o verdadeiro impacto do mapeamento do código genético humano na ciência?

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R: A grande descoberta do Projeto Genoma é o número reduzido de genes que o ser humano possui. Não temos nem o dobro de genes do nematóide C. elegans, um pequeno verme. Esse dado é uma prova da ingenuidade do pensamento reducionista na biologia. Segundo essa visão, a complexidade de um organismo deveria ser resultado direto do maior número de genes ou proteínas. Não é o que acontece. Não temos tantos genes a mais que outros seres vivos. Aparentemente, cada gene pode fazer várias proteínas. Portanto, a com-plexidade de um animal não pode ser reduzida aos seus elementos básicos – seria o mesmo que avaliar a complexidade de uma casa pela quantidade de tijolos. A tendência de ver os seres vivos apenas como um produto dos genes vai mudar. Haverá mais respeito à integridade do organismo.

O ser humano terá de ser estudado de uma forma mais holística?

É o que tentamos fazer. E isso é um desafio ainda maior. Se pensássemos de maneira reducionista, que um gene faz uma proteína, seria fácil curar doenças genéticas. Precisaríamos apenas achar a seqüência errada, consertá-la e a doença seria erradicada. Na maioria dos casos, a solução não será tão simples. Provavelmente poucas doenças são causadas por apenas um gene defeituoso. Não poderemos patentear todo tipo de gene, esperando que os cientistas descubram que ele causa alguma moléstia. Tudo indica que a maioria das doenças são causadas por muitos genes interagindo entre si e com o ambiente. Além de estudar como o material genético trabalha durante o desenvolvimento do organismo, precisaremos saber como ele interage com a nutrição e com o ambiente. Sem dúvida, uma visão bem mais integral do homem.

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O ser humano ainda está evoluindo?

A evolução não deixa de seguir seu rumo. Podemos averiguar isso ao perceber que alguns grupos se reproduzem mais rapidamente que outros. Os indianos estão se reproduzindo mais que os europeus, enquanto a população de aborígenes australianos está diminuindo. Mas esse processo é insignificante porque as diferenças genéticas entre os homens são muito específicas. Todos os seres humanos são muito parecidos. O que ocorre é que as mudanças culturais são tão rápidas que as alterações biológicas não importam mais. Com o uso em larga escala da engenharia genética, poderíamos mudar os homens, mas seria apenas um processo tecnológico. A evolução natural é um processo muito lento perto da velocidade das mudanças culturais. Os seres humanos não mudaram nos últimos 15 mil anos. Biologicamente, somos as mesmas pessoas que viviam nas cavernas há milhares de anos. É impressionante o que mudamos culturalmente com o mesmo corpo e o mesmo cérebro.

O que aconteceria se praticássemos a clonagem em massa?

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Essa é mais uma questão ética. Existem usos benéficos da clonagem para a agricultura e na pecuária. O enxerto é uma forma de clonagem, apenas não é uma modificação genética e a planta que resulta não é exatamente uma réplica. Quanto à aplicação em humanos, podem surgir usos inapropriados. Companhias poderiam rastrear as notícias em busca de crianças que morreram, contatar os pais e oferecer um filho idêntico ao que eles tinham.

Como o homem interfere na evolução?

Tudo o que fizemos desde o surgimento da agricultura teve um impacto importante na evolução de algumas espécies, como o cultivo do milho, do arroz e de diversos tipos de alimento. Nós também já modificamos muitas espécies por cruzamento. No entanto, o maior impacto é a mudança do meio ambiente. Um dos maiores exemplos é o seu país, o Brasil, onde a remoção de florestas é muito acelerada. A forma como exterminamos hábitats naturais e levamos muitas espécies à extinção é o maior impacto que os humanos têm no processo evolutivo.

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A ciência é capaz de explicar as diferenças entre os aspectos bioló­gicos e culturais do ser humano?

De certa forma ela já faz isso. Nós não conhecemos cada detalhe dessas diferenças, mas temos uma compreensão básica de quais são elas. As mudanças culturais estão marcando o ser humano de forma muito rápida. Aprendemos os traços culturais e ensinamos diretamente às gerações seguintes. A herança biológica é darwinista e mendeliana, e opera em um processo muito mais lento e indireto. Sabemos por que a biologia e a cultura são tão diferentes e quais são as propriedades de cada uma, apesar de não conhecermos cada detalhe da interação complexa entre as duas.

Existe alguma pergunta complicada demais para ser respondida pela ciência?

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Não. Existem algumas questões que poderiam ser respondidas. Mas simplesmente não temos a informação necessária para isso. E existem outras que a ciência não consegue responder não pela complexidade, mas porque ela é uma explicação do mundo baseada em fatos. A ciência nunca vai conseguir lidar com as questões morais, por exemplo. Ela não pode falar a respeito do que deveríamos estar fazendo e da maneira certa de nos comportar. A ciência se limita apenas a descobrir as conseqüências de cada comportamento, mas não tem como decidir se elas são boas ou más. Muitas dessas boas questões pertencem à religião. Eu não quero dizer que elas não possam ser respondidas – embora algumas não possam mesmo! – mas é importante que elas sejam discutidas. Questões morais e éticas podem ser discutidas, mas a ciência não pode respondê-las.

Stephen Jay Gould

• O cientista morreu em 20 de maio de 2002, vítima de um câncer de pulmão que se alastrou até o cérebro.

• Em 1982, foi desenganado pelos médicos – e sobreviveu por duas décadas – após descobrir que tinha um tumor abdominal maligno.

• Um de seus dois filhos, Jesse, é autista.

• Além da paixão pela teoria evolucionária, era fanático por beisebol.

• Em 1997, apareceu como convidado em um episódio do seriado Os Simpsons.

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