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A vida secreta dos pombos

Eles reconhecem pessoas, fazem apostas e realizam tarefas complexas – como corrigir palavras, detectar tumores e até distinguir um Monet de um Picasso.

Por Eduardo Campos Lima e Bruno Garattoni
Atualizado em 11 ago 2021, 09h11 - Publicado em 26 fev 2018, 14h43

Um velhinho joga um punhado de milho no chão, atraindo dezenas de pombos para a calçada. Ele vai embora todo feliz, mas as outras pessoas não gostam muito, porque têm de abrir caminho, espantando os bichos, para poder passar. Você já deve ter presenciado uma cena como essa, e não deu muita bola para ela. Mas os pombos, sim. Enquanto corriam de um lado ao outro para pegar o milho e escapar dos pontapés, eles estavam prestando bastante atenção a todas as pessoas envolvidas – e memorizando o rosto de cada uma.

Essa foi a conclusão de cientistas da Universidade Paris Nanterre, que em 2011 fizeram uma série de experiências. Todo dia, dois voluntários bem parecidos (mesma faixa etária, altura, peso e cor da pele) iam até um parque e interagiam com os pombos. Um deles dava milho para as aves. O outro tentava espantá-las. Depois de uma semana, os pombos se tornaram capazes de reconhecer e diferenciar a pessoa boazinha da malvada.

Os cientistas tentaram confundir as aves, vestindo o voluntário malvado com um sobretudo branco – a cor que, até então, era usada pelo bonzinho. Nada mudou. Então o sujeito malvado assumiu uma postura amistosa, passando a alimentar os pombos. Mas os bichos não caíram nessa, pois se lembraram de que ele havia sido hostil. “Ficou provado que os pombos conseguem diferenciar e memorizar rostos humanos”, afirma o cientista Ahmed Belguermi, líder do estudo.

Também pudera. Eles são nossos principais companheiros nas grandes cidades, gostemos ou não disso. Estima-se que existam 260 milhões de pombos urbanos, ou seja, o mundo tem mais pombos do que brasileiros (e cada pombo vive em média 6 anos, tempo suficiente para bombardear as cidades com 60 kg de cocô). Praticamente tudo o que essas aves comem vem, direta ou indiretamente, de mãos humanas – e por isso o cérebro delas se desenvolveu para nos entender e conviver conosco. “Os pombos aprendem, por tentativa e erro, que um determinado bairro tem mais comida que outro, ou que seres humanos pequenos – crianças – devem ser evitados, pois podem persegui-los e tentar agarrá-los”, afirma Mike Colombo, psicólogo da Universidade de Otago (Nova Zelândia) e autor de vários estudos sobre a inteligência dos pombos.

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Os bichos pertencem à família Columbidae, que inclui 42 gêneros e 310 espécies. A mais comum é a Columba livia, espécie selvagem conhecida como pombo-das-rochas. Essa ave foi domesticada 5 mil anos atrás por civilizações mesopotâmicas, e deu origem aos pombos urbanos atuais (Columba livia domestica). No começo, os pombos só serviam de comida. Mas, com o tempo, gregos e egípcios perceberam que eles tinham uma capacidade de orientação excepcional e podiam ser usados como correio, levando mensagens a até 100 km. Isso é possível porque o pombo tem um desejo nato de voltar para seu ninho.

Se você morasse na cidade X e quisesse se comunicar com os vizinhos da cidade Y, bastava presenteá-los com pombos. Isso porque, no momento em que fossem soltos, os bichinhos inevitavelmente voltariam até você – trazendo pedaços de papel com mensagens enviadas pela outra cidade. A humanidade usou os pombos-correio por milênios, mas só recentemente a ciência descobriu como eles se orientam. “Eles se guiam pelas posições do Sol ao longo do dia. Mas também têm outra referência, o campo magnético da Terra”, explica a zoóloga Dora Biro, da Universidade Oxford. O bico e os ouvidos do pombo contêm partículas ferrimagnéticas, ou seja, que reagem ao campo magnético do planeta. É uma espécie de bússola biológica.

Os pombos geralmente voam em grupo, e trocam informações entre si sobre as melhores rotas. Isso foi comprovado por uma experiência realizada com pombos criados na Universidade de Oxford. Os cientistas levaram um deles até um lugar a 8,5 km da universidade, onde o bicho foi solto. Os cientistas repetiram o processo 12 vezes, até que aquele pombo aprendesse, por tentativa e erro, o caminho mais curto para voltar (o bicho era monitorado por GPS). Depois, fizeram o teste com um segundo pombo, que foi colocado para voar junto com o primeiro. Em vez de sair batendo asas a esmo por aí, ele aprendeu com o pombo veterano, e logo de cara já fez uma rota boa.

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A experiência foi repetida com cinco gerações de pombos, e cada uma voou melhor que a anterior. “Cada geração realiza melhorias, se baseando no conhecimento acumulado até aquele ponto”, explica Biro. Ou seja: os pombos têm sua cultura, que acumulam e transmitem para seus sucessores. Como nós, humanos.

Imagem sem texto alternativo (Marcel Lisboa /Superinteressante)

Eles também possuem outro comportamento similar ao humano: podem derrubar líderes incompetentes. Os cientistas de Oxford colocaram 40 pombos para voar em bando – o objetivo era ver quais aves voavam mais rápido (assim dá para detectar quem são os líderes do bando – via de regra, são as aves que voam na frente). Depois, eles prenderam alguns dos bichos numa sala e confundiram sua percepção de tempo, acendendo as luzes de noite e apagando de dia. Por fim, montaram oito grupos de pombos. Em alguns grupos, todos os bichos haviam sido colocados na salinha do mal. Em outros, só o líder tinha passado por isso.

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Os oito grupos foram soltos, e voaram de volta a seus ninhos. Nos grupos em que todos os pombos estavam com “jet lag”, foi um desastre: todos erravam o caminho. Mas na outra situação, quando só o pombo líder estava desorientado, algo interessante aconteceu: as demais aves resolveram ignorar suas instruções e corrigir a rota. “O grupo resistiu a ser guiado por um líder com informações erradas”, diz Biro.

Os pombos só são capazes de diferenciar pessoas, aprender com colegas, desobedecer aos seus líderes e fazer uma série de outras coisas porque seu cérebro é surpreendentemente avançado. “Eles têm cérebros bem pequenos [do tamanho de uma noz]. Mas é possível que sua arquitetura neuronal seja melhor do que a nossa”, diz Onur Güntürkün, neurologista da Universidade Ruhr de Bochum (Alemanha) e especialista no cérebro de aves. Os pombos não são mais inteligentes do que os humanos, claro. Mas eles aproveitam melhor o pouquinho que têm.

Os pombos (e as aves em geral) não possuem neocórtex, que é a região mais avançada do cérebro e só existe nos mamíferos. Mas eles têm uma estrutura cerebral similar, que se chama pallium. Nela, os neurônios dos pombos ficam 50% mais próximos entre si, em média, do que os neurônios humanos – o que pode aumentar a capacidade cognitiva dos bichinhos, e ajudar a compensar o pouco tamanho dos seus cérebros. “Eles têm neurônios idênticos aos que nós temos no córtex cerebral, embora arranjados de maneira diferente. Do ponto de vista de cognição por volume, o cérebro dos pombos é superior ao dos mamíferos”, afirma Güntürkün.

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Por isso, eles estão entre as espécies mais usadas em experiências sobre inteligência animal. “É difícil comunicar ao bicho o que você espera dele. Mas os pombos sempre me surpreendem”, diz Thomas Zentall, especialista em psicologia animal da Universidade do Kentucky. Os pombos fazem bagunça, fazem sujeira, fazem cocô. Mas também fazem ciência. Pense nisso na próxima vez em que se deparar com eles – o que, pode apostar, vai acontecer assim que você pisar na rua.

Imagem sem texto alternativo (Marcel Lisboa /Superinteressante)

DOUTOR POMBO
Os pombos são capazes de olhar mamografias e identificar, com 85% de acerto, a presença de microcalcificações: pequenos depósitos de cálcio que podem preceder o câncer de mama. Essa foi a conclusão de cientistas americanos, que em 2015 treinaram pombos para interpretar exames.Combinando os pareceres de quatro aves, a precisão era ainda maior: 99%. Mas os pombos não vão tomar o emprego dos médicos. Convocados a interpretar tumores (para dizer se eram benignos ou malignos), eles não acertaram nada.

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REVISORES COM ASAS
Numa das experiências mais bizarras (e extenuantes) já feitas com pombos, pesquisadores da Nova Zelândia passaram quatro anos ensinando os bichos a identificar erros de ortografia. Publicado em 2016, o estudo narra a odisseia. Os pombos eram colocados em frente a uma tela onde apareciam palavras de quatro letras, em inglês. Eles deviam bicar as palavras que estavam escritas corretamente, e ignorar as demais. “Depois de três anos, o pombo mais bem treinado tinha aprendido cerca de 60 palavras, que diferenciava de 8 mil palavras escritas erroneamente”, diz Damian Scarf, psicólogo da Universidade de Otago e autor do estudo.

CRÍTICOS DE ARTE
Em 1995, Shigeru Watanabe, da Universidade Keio (Japão), ensinou oito pombos a distinguir obras do pintor impressionista Claude Monet de telas do cubista Pablo Picasso. Ele colocou os pombos dentro de uma caixa com uma pequena tela sensível ao toque, e exibiu alternadamente quadros dos dois artistas. Quando surgia uma obra de Monet, famoso pelas cenas belas e delicadas, e o pombo bicava a tela, o animal ganhava uma guloseima. Já quando aparecia um Picasso, todo emaranhado, o pombo não ganhava nada, bicasse ou não a tela. Após 20 dias de treinamento, as aves ficaram craques naquilo: passaram a diferenciar obras dos dois pintores com 90% de acerto, inclusive ao analisar quadros que não haviam visto antes. O estudo mostrou que os pombos são capazes de classificar objetos complexos, e até generalizar padrões: num teste posterior, eles conseguiram relacionar as obras de Braque, Matisse e Picasso, de um lado, e de Cézanne, Renoir e Monet, de outro. Os bichos também aprenderam a diferenciar desenhos de fotografias, e pinturas infantis de rabiscos aleatórios.

VICIADOS EM JOGO
Thomas Zentall, professor da Universidade do Kentucky, colocou pombos dentro de uma caixa com duas telas, que os bichos podiam bicar. Ambas eram brancas. Mas a da esquerda, ao ser bicada, ficava amarela – e dava uma recompensa de três grãos de comida. Já a tela da direita era uma aposta de risco. Em 80% das vezes, ela ficava vermelha, e não dava nenhum prêmio. Em 20% das vezes, ela ficava verde, e liberava uma pequena bolada: dez grãos de comida, uma espécie de jackpot. As duas telas podiam ser bicadas à vontade, quantas vezes o pombo quisesse. Logo, a aposta segura seria bicar a tela da esquerda e ganhar sempre. Mas os pombos sempre preferiam arriscar. “Todos eles demonstraram uma forte preferência pela chance de ganhar dez grãos”, conta Zentall. O curioso, de acordo com o pesquisador, é que perder não inibia as escolhas dos pombos: eles continuavam insistindo na aposta de maior risco, da mesma forma que os apostadores inveterados – humanos – agem.

AO VIVO NA TV
Um estudo feito em 2008 por Shigeru Watanabe, da Universidade Keio (o mesmo dos pombos críticos de arte), demonstrou que essas aves reconhecem a si mesmas em vídeos. Até então, a identificação da própria imagem parecia ser uma capacidade restrita a algumas espécies, sobretudo primatas e mamíferos marinhos. Cinco pombos foram treinados para diferenciar imagens em que apareciam ao vivo de imagens gravadas. Quando escolhiam a imagem ao vivo, ganhavam comida. Depois o teste foi repetido, mas com um “delay”. E os pombos conseguiram reconhecer a própria imagem até 7 segundos depois. Pode parecer pouco, mas é mais do que crianças de 3 anos (cuja memória dura 2 segundos).

PENSANDO RÁPIDO
Os pombos têm reflexos mais rápidos que os humanos. Numa experiência da Universidade Ruhr (Alemanha), em 2017, pessoas e pombos tiveram de executar tarefas banais, como apertar um botão. O desempenho foi igual. Mas, quando havia um pequeno intervalo entre o fim de uma tarefa e o início de outra, o tempo de reação dos pombos era 250 milissegundos mais rápido que o dos humanos. (Talvez por isso eles sempre se antecipem, na rua, a qualquer tentativa de pegá-los.)

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