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Alergia, o mal do século

As alergias fazem vítimas em ritmo de epidemia. Mas novos estudos e drogas mostram que é possível cortar o mal pela raiz

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h52 - Publicado em 30 nov 2000, 22h00

Jomar Morais

Um menino americano é atualmente um símbolo de esperança para milhões de pessoas que padecem de uma doença que não apenas maltrata suas vítimas e as inabilita para os prazeres mais corriqueiros da vida como também, não raro, pode matá-las. Drew William, 13 anos, é agora uma criança quase normal. Em Dillon, no Estado do Colorado, sua cidade natal, ele pratica esportes, brinca na rua com os amigos, diverte-se com animais domésticos. Não era assim até dois anos atrás. Jogar no time de beisebol da escola, por exemplo, era algo impossível. Bastavam alguns minutos de esforço físico e o menino curvava-se, ofegante. Ir ao cinema ou freqüentar ambientes com aglomeração de pessoas quase sempre significava o início de uma sessão de tortura, provocada pelo súbito estreitamento de suas vias respiratórias. Pior: o simples contato com alguém que tivesse antes acariciado um gato ou um cão podia mandá-lo para o hospital. “Minha vida se resumia a tomar quilos de remédios”, lembra o garoto. Drew tinha crises agudas de asma, um tipo de alergia incômodo e traiçoeiro.

Drew não está curado. Não depende mais de tantos remédios mas ainda tem que tomar regularmente pelo menos um medicamento. A melhoria radical em sua qualidade de vida, porém, é um feito extraordinário que marca a maior vitória da ciência, em 80 anos, na luta para controlar as alergias em sua origem. Até então, todos os recursos desenvolvidos para combater a doença limitavam-se a aliviar sintomas, sem qualquer efeito preventivo.

A virada começou nos laboratórios das empresas de biotecnologia Novartis, Genentech e Tanox, nos Estados Unidos, onde um grupo de cientistas produziu uma droga experimental, o Xolair. O remédio, previsto para chegar às farmácias no primeiro semestre de 2001, impede que as células do sistema imunológico sejam acionadas toda vez que o corpo entra em contato com algum alergênico – qualquer substância inofensiva que, por razões ainda não inteiramente compreendidas, é avaliada pelo sistema de defesa de quem é alérgico como um agente patológico. Pode ser o pólen de uma planta, a poeira doméstica impregnada de dejetos de ácaros, a proteína de um fruto do mar ou uma molécula do níquel usado em bijuterias. Mais de uma centena de substâncias atuam como alergênicos. Nessas ocasiões, o alarme falso costuma promover um cenário de guerra no qual as células de defesa disparam histaminas e outras secreções letais que, na ausência de vírus e bactérias, acabam por agredir o próprio organismo, configurando a crise alérgica.

O problema é sério. Cerca de dois bilhões de pessoas, um terço da população do planeta, apresentam complicações de fundo alérgico, segundo estimativas da Academia Americana de Alergia e Imunologia. Nenhuma outra doença, em momento algum da história, afetou tanta gente, dado suficiente para que especialistas comecem a encará-la como uma epidemia. Só nos Estados Unidos, a cada ano 5 000 pessoas morrem sufocadas durante crises de asma. Outros 90 milhões de americanos convivem diariamente com o desconforto de rinites e dermatites, as variedades alérgicas mais comuns. Aqui, estima-se que as alergias atazanem a vida de 25 milhões de brasileiros – 50% mais que há 20 anos – e que estejam por trás de metade das faltas ao trabalho em São Paulo, a maior cidade do país. Encontrar a cura efetiva para o mal tornou-se, assim, um desafio que envolve mais do que interesses de saúde pública.

A pista que levou ao desenvolvimento do Xolair foi dada por uma descoberta recente na geografia do sistema imunológico. Cientistas da Escola Médica de Harvard e da Universidade Northwestern, nos Estados Unidos, constataram que a imunoglobulina E, ou IgE – o anticorpo que ativa as células de defesa nos processos alérgicos –, é uma estrutura em forma de Y dotada de duas caudas que se movimentam em direção a uma espécie de fechadura existente na membrana da célula de defesa .Só após o encaixe das presilhas da imunoglobulina nessa reentrância celular é que a ação defensiva é disparada. Com o Xolair, os pesquisadores da Novartis, da Genentech e da Tanox garantem ter criado um clone de anticorpo capaz de se encaixar na “fechadura” da célula de defesa antes que o IgE a alcance, impedindo desse modo que o processo alérgico seja detonado.

O anticorpo anti-IgE, como é conhecido o novo remédio entre especialistas, já foi testado em 2 000 pacientes – o menino Drew é apenas o mais conhecido – e demonstrou ter ação polivalente diante de uma doença de mil faces. Substâncias alergênicas podem provocar irritações na pele, inflamações nas mucosas, distúrbio intestinal, bloqueio das vias respiratórias e muito mais. Por agir num ponto do processo comum a todas as complicações, espera-se que o Xolair funcione em todas elas. A fórmula, porém, está longe de ser a solução definitiva do problema, segundo Wilson Rocha Filho, coordenador do Serviço de Alergia e Pneumologia Pediátrica do Hospital Felício Rocha, em Belo Horizonte. “Ela não impede a produção de IgE”, diz Wilson. “E é aí que está o xis da questão.”

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Um alérgico que venha a tomar o Xolair, poderá evitar os dissabores da reação desproporcional do seu sistema imunológico diante de um alergênico. Entretanto, o organismo prosseguirá produzindo IgE e disparando ordens de ataque que, amanhã, talvez consigam vencer o bloqueio do remédio ou provocar efeitos ainda desconhecidos no corpo. Trata-se de um detalhe que tem a ver com as causas profundas das alergias, outra área escura recentemente iluminada por novas pesquisas.

Durante muito tempo imaginou-se que as alergias eram um mal hereditário, a partir de evidências que mostram ser de até 70% a probabilidade de filhos de pais alérgicos desenvolverem a doença. O avanço dos processos alérgicos no ritmo do desenvolvimento tecnológico e da melhoria das condições de vida levou os cientistas a considerar outras hipóteses. Sabe-se agora que populações carentes do Leste da Rússia, da Índia, da Indonésia e da África registram até 50% menos incidência de casos de alergias que as de países ricos – sobretudo quando comparadas aos habitantes das grandes metrópoles européias e americanas, onde há mais assepsia e cuidados médicos. Dados de estudos realizados este ano pela pediatra alemã Erika von Martius e por cientistas do Laboratório de Imunologia e Alergia de Roma acabaram por expor um paradoxo sobre o qual se vai edificando uma explicação surpreendente para a causa das alergias – a chamada “hipótese higiênica”.

Ao observar crianças que vivem em fazendas no interior da Alemanha e da Áustria, onde bebem leite cru e estão em contato com a terra e o esterco, Erika constatou que a ocorrência de complicações alérgicas entre elas é 75% menor do que entre meninos que moram nas cidades. Já o estudo italiano, que envolveu 480 cadetes da Força Aérea e foi tema de artigo no British Medical Journal, revelou que as alergias respiratórias são menos freqüentes entre militares que na infância estiveram expostos a micróbios transmitidos pela água e alimentos não tratados. É inusitado, mas diante de achados como esses, os estudiosos inclinam-se a concluir que a supressão de doenças como sarampo, rubeóla, caxumba e até as verminoses da infância – todas praticamente erradicadas nos países desenvolvidos – pode ter também o seu lado nocivo, por deixar ocioso o sistema imunológico, que ficaria como que “inventando” inimigos.

“Alguma coisa no estilo de vida ocidental está contribuindo para os processos alérgicos”, afirma Donald Leung, chefe da Divisão de Pediatria do National Jewish Medical and Research Center, em Denver, um dos núcleos de estudos avançados sobre as alergias. A aceitação da “hipótese higiênica” está crescendo na comunidade médica e isso pode levar a uma revisão de posturas no trato com crianças. “Até meninos que ficam resfriados com mais freqüência nos primeiros anos de vida parecem menos propensos a desenvolver alergias”, lembra Wilson.

O zelo de pais superprotetores, que não permitem que os filhos andem descalços, tenham contato com animais ou que só banham bebês em água mineral ou fervida, seria, portanto, contraproducente. Nesse contexto também não há lugar para o pavor de germes, como o que levou o magnata americano Howard Hughes, morto em 1976, a passar os últimos 30 anos da sua vida recolhido a uma sala asséptica a fim de não contrair doenças.

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Essa tese apóia-se na hipótese de que a exposição a micróbios na infância reforça os linfócitos – células brancas do sangue que atuam no combate a bactérias do tipo Th1, fazendo-as prevalecer sobre os linfócitos Th2, que também reagem a parasitas mas são responsáveis pelo erro de avaliação que induz o processo alérgico. São os Th2 que, diante de substâncias alergênicas, estimulam a produção do anticorpo IgE. Num sistema imunológico que não enfrentou agentes patológicos nos primeiros anos de vida, conforme essa hipótese, dá-se a inibição das células Th1, deixando o campo livre para as “leituras” equivocadas dos linfócitos Th2.

Claro que isso tudo não significa que você deva ceder quando seu filho se recusar a tomar banho. “Mas é provável que o corpo humano não esteja conseguindo mudar tão rapidamente quanto a civilização”, diz Fernando Martinez, diretor do Departamento de Ciências da Respiração da Universidade do Arizona. Convivemos há milênios com vírus e bactérias e, de repente, nos tornamos altamente assépticos. Jamais também nossos hábitos alimentares foram alterados tão radicalmente nem houve tanto acesso a remédios e outros produtos químicos – detalhe que, pelo menos no que se refere a alergias, tem aproximado a medicina tradicional das terapias alternativas e aberto caminho para os tratamentos baseados em alimentação saudável e que prevêem menos drogas em circulação no organismo.

Para quem está acostumado a aliviar crises alérgicas respiratórias com anti-histamínicos e esteróides – drogas que, entre outros efeitos colaterais, podem afetar os reflexos e o processo do crescimento em crianças, é difícil acreditar que uma simples dieta possa resolver o seu problema. Mas o músico paulistano Marcelo Effori, 30 anos, afirma que foi por meio da dieta higienista , que conseguiu livrar-se de uma rinite que o fustigava desde criança. “Fazia inalações constantes e tomei até vacinas, mas nada adiantava”, afirma. “Como fico muito tempo dentro de estúdios com ar-condicionado, gravando, a rinite era uma tortura.”

A homeopatia também tem sido usada com freqüência no tratamento das alergias. Esse método terapêutico, criado há mais de dois séculos pelo médico alemão Samuel Hahnemann, acaba de ter sua eficácia no tratamento de rinites referendada por um estudo da Universidade de Glasgow, na Escócia. A pesquisa envolveu 51 pacientes, divididos em dois grupos. Os integrantes de um deles, tratados com remédios homeopáticos, apresentaram após um mês um índice de melhora de 28%, contra apenas 3% do grupo que tomou apenas placebo (substância sem o princípio ativo). Na clínica homeopática do Hospital do Servidor Público Municipal, em São Paulo, esse tipo de terapia tem sido eficaz em 70% dos casos de asma, segundo Romeu Carrillo Júnior, diretor da unidade.

Alergias são o motivo de 10 milhões de consultas médicas por ano nos Estados Unidos. No mundo, só a venda de anti-histamínicos movimenta 8 bilhões de dólares anualmente. São números superlativos que não conseguem expressar, no entanto, o drama real de quem padece com a doença, como atesta o alergista Wilson. “Um de meus clientes, uma criança de 12 anos, é alérgica a leite de vaca e já teve vários choques anafiláticos por causa da ingestão acidental de leite, às vezes em produtos em que jamais se imaginaria existisse tal ingrediente, como sardinha enlatada”, diz o médico. A sensibilidade do menino à lactase, uma proteína láctea, é tamanha que o simples fato de o leite ferver na cozinha é suficiente para deixá-lo em crise no quarto. Seu problema continua inalterado após um tratamento de dessensibilização com vacinas experimentais americanas.

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Mesmo nos casos triviais, como rinites e eczemas, as alergias trazem embutidos riscos maiores. Rinites desaguam com freqüência em sinusites crônicas e podem provocar pneumonia. Eczemas costumam ser um incômodo ainda maior para pessoas submetidas a estresse. Há também os casos de alergias a picadas de insetos, que podem ser fatais. “Picadas de abelha matam, a cada ano, 40 pessoas com hipersensibilidade à enzima do inseto nos Estados Unidos”, diz o dermatologista João Luiz Cardoso, do Hospital Vital Brazil, em São Paulo, especializado em problemas decorrentes do ataque de animais peçonhentos. “Em nosso hospital, 15% dos atendimentos são feitos nessa área.”

Pessoas com esse tipo de fragilidade terão um dia a chance de viver normalmente? Enquanto se debate a parcela de culpa da modernidade na expansão das alergias, as esperanças de soluções a curto prazo se concentram na engenharia genética, em cujos laboratórios desenvolvem-se novos clones e vacinas que possam funcionar. No ano passado, uma equipe americana da Universidade Johns Hopkins em Baltimore testou com êxito, em ratos, uma vacina feita a partir do DNA do amendoim, pasme, uma das fontes mais freqüentes e perigosas de alergia alimentar. Se funcionar em humanos, dentro de algum tempo muita gente poderá se ver livre da obrigação de andar com injeções de adrenalina, o antídoto, para proteger-se em casos de ingestão acidental do alergênico. Em Medford, Massachusets, a Kinetix Pharmaceuticals tem outro alvo: a criação de um inibidor da enzima kinase, que cataliza as reações da célula de defesa após o acoplamento do anticorpo IgE e tende a ser uma alternativa para os pacientes nos quais o anti-IgE sintético não faz efeito – afinal, cerca de 15% do grupo de teste não respondeu positivamente à droga.

Pode não ser o ideal, mas são avanços que melhoram consideravelmente a rotina de pessoas como Drew William, o menino que voltou a viver após o Xolair. “Eu agora posso jogar beisebol sem preocupação”, diz o garoto. “Na verdade, posso fazer quase tudo.”

Para saber mais

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Na livraria: Tudo Sobre Alergias

Joanne Clough, Andrei Editora, São Paulo, 2000

Allergies: What You Need to Know

Mark Giuliucci, Johns Hopkins Health, EUA, 1999

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Na Internet:

https://www.nationaljewish.org

https://www.foodallergy.org

https://www.sbai.org.br

https://www.genentech.com.br

jmorais@abril.com.br

Ação sem reação

Novas versões de remédios contra alergias provocam menos efeitos colaterais

Novidades como o anticorpo sintético anti-IgE ainda levarão algum tempo para se tornarem rotina no tratamento de alergias. Existem, porém, boas notícias para quem procura amenizar as crises alérgicas com drogas tradicionais, como esteróides e anti-histamínicos. As versões atuais desses medicamentos apresentam efeitos colaterais mais suaves do que há 15 anos e novas pesquisas sugerem que alguns deles são menos nocivos ao organismo do que sempre se imaginou.

Em outubro, o último relatório do Programa de Controle da Asma Infantil, um estudo realizado entre crianças de 5 a 12 anos de idade pelo Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos, comunicou que a redução no crescimento das crianças asmáticas tratadas com esteróides inalantes ocorre apenas no primeiro ano do tratamento e não excede a 9 mm. Nos quatro anos seguintes abrangidos pela pesquisa, não se verificou nenhuma diferença no ritmo de crescimento em relação a crianças que não tomam a droga. O estudo deve continuar por mais quatro anos, até que os garotos alcancem a adolescência. Toda a nova geração de anti-histamínicos, que inclui remédios como Claritin, Allegra e Singulair também provoca menos sonolência e perda de ação motora em crianças e adultos.

Outra boa nova, dessa vez para quem tem eczema, foi comunicada na mesma época pela Academia Européia de Dermatologia. Trata-se de um creme desenvolvido pela Novartis, nomeado SDZ ASM 1%, que inibe a inflamação cutânea sem tornar a pele extremamente fina, um dos efeitos colaterais de remédios do gênero.

A guerra suicida contra os alergênicos

Como o Xolair, novo remédio a ser lançado em 2001, promete acabar com as reações alérgicas

1. A invasão

Através da pele, das vias respiratórias ou do aparelho digestivo, a substância alergênica entra em contato com o corpo e é detectada pelo sistema de defesa do alérgico como sendo um vírus ou uma bactéria

2. A reação

Os linfócitos Th2 se agitam e induzem a produção de imunoglobulina E (IgE), anticorpo em forma de Y que, no processo alérgico, transmite a ordem de destruição do “inimigo” às células de ataque do sistema imunológico

3. A batalha

Os anticorpos IgE se encaixam nas “fechaduras” das células de ataque e essas disparam histaminas contra o inimigo imaginário. Surgem irritações na pele e nas mucosas

4. O recuo

Um anti-IgE, como o Xolair, atua fechando a área de encaixe nas células de ataque, antes que o IgE consiga acoplar-se. A ordem para destruir o suposto agente patológico (o alergênico) não é transmitida, frustrando assim a crise alérgica

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