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Anatomia da loucura

Pioneiro da Neurologia, ele ensinou os cientistas a enxergar a diversidade das doenças mentais. Suas pesquisas sobre a histeria e sua maneira de lidar com os pacientes mudaram os rumos da Medicina

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h47 - Publicado em 31 mar 1991, 22h00

Gisela Heymann

Em outubro de 1985, um jovem médico chegou a Paris,vindo de Viena, na Áustria. Embora costumasse julgar-se indeciso, sua viagem à capital francesa tinha um objetivo bem definido: conhecer o “patrão”, como dizia, assistir às suas aulas de Patologia Clínica e discutir com ele anatomia cerebral. O estrangeiro esperava também ter acesso a cérebros de crianças mortas para pesquisar. Só que o mestre trabalhava no Hospital La Salpétrière, onde a grande maioria dos pacientes eram mulheres — todas sofrendo de alguma forma de doença mental. E foi por isso que o visitante acabou fazendo a autópsia, não de uma criança, mas de uma mulher idosa, vitima de atrofia cerebral e epilepsia parcial. O episódio entrou para a história porque o médico se chamava Sigmund Freud e o “patrão”, a quem ele ia ouvir toda terça-feira no lotado anfiteatro do La Salpétrière, era Jean-Martin Charcot.Freud tinha imensa admiração pelo trabalho de Charcot e se preocupava em agradá-lo. Acabou sendo notado. O célebre professor convidou três vezes o entusiasmado discípulo às concorridas reuniões em sua casa, no Boulevard Saint-Germain. Eles conversavam em alemão e Freud ganhou do anfitrião uma fotografia com dedicatória. De volta a Viena, pendurou o retrato na parede da sala e deu ao filho o nome de Jean Martin. 

Quando Charcot morreu, em 1893, aos 68 anos, o criador da psicanálise falou dele como “o maior pesquisador da jovem ciência da Neurologia, o pai dos neurologistas de todos os países e um dos maiores homens da França”.Charcot não ignorava o quanto valia. Grave, sério, calado, era porém suficientemente vaidoso para raspar as têmporas a fim de acentuar os traços que julgava nobres do rosto. Era um exemplo perfeito dos cientistas de seu tempo: positivista, acreditava no inexorável progresso da ciência e na sua capacidade de explicar todo e qualquer fenômeno, em todo e qualquer campo do conhecimento. À frente de um hospício que abrigava algo como 5 000 doentes, o metódico Charcot resolveu observar, anotar, fotografar aquilo que chamava de “museu patológico vivo”. Com a montanha de dados que colecionou durante os anos de permanência no La Salpétrière, assentou o estudo da Neurologia em bases científicas.Diferenciou a histeria da alienação e da epilepsia, provou que esses males, ao contrário do que se acreditava, não eram típicos do século XIX, não se manifestavam exclusivamente em mulheres, nem tampouco eram causados por distúrbios nos ovários. 

Descobriu diversas enfermidades novas, como a que passou a ter o seu nome (ou artropatia neurogênica, uma lesão da medula que faz os músculos das pernas e braços contrair-se), postulou que o cérebro não era uma massa homogênea, mas dividia-se em regiões que comandam, cada qual, partes distintas do corpo e criou, enfim, pela primeira vez, uma clínica de atendimento externo para doentes mentais.Embora, aos olhos de hoje, tal atendimento ambulatorial pareça algo elementar, a clínica representou uma espécie de revolução no diagnóstico das perturbações neurológicas. Assim, uma mulher com sintomas de nervosismo causados por razões as mais diversas, como esterilidade, por exemplo, não era mais internada por tempo indeterminado no pavilhão das histéricas. Os nove volumes da obra de Charcot sobre o sistema nervoso e suas doenças Ihe valeram a primeira cadeira de ensino de Neurologia do mundo. Ele veio a ser também um dos primeiros médicos especializados de que se tem noticia.Um dos três filhos de um construtor de carruagens parisiense, Jean-Martin teve a sorte de poder escolher a profissão, algo decididamente incomum na primeira metade do século passado. 

Ao notar nele uma extrema aptidão para o desenho, além de afiada inteligência, mas sem poder custear os estudos dos três, o pai decidiu que ao menos Jean-Martin merecia traçar os próprios rumos — entre a pintura e a Medicina. Sem escolha, o irmão mais velho herdaria a atividade paterna e o terceiro seguiria carreira militar. Jean-Martin não desapontou o fabricante de carruagens. Sua trajetória no internato dos Hospitais de Paris foi nada menos do que brilhante. Aos 28 anos defendeu tese de doutoramento sobre a gota e aos 35 ganhou fama — sem falar numa boiada de francos — por tratar do banqueiro e futuro ministro das Finanças Achille Fould. A única condição imposta pelo ilustre paciente ao jovem médico era que este aparasse os bigodes.Em 1862, com 37 anos, ingressou no famoso Asilo de Mulheres do Hospital de La Salpétrière, onde conjulgou por bom tempo as habilidades de clinico geral com as pesquisas sobre doenças do sistema nervoso. De certo modo, não havia abandonado a prática do desenho. Seu raciocínio era visual, isto é, dependia de minuciosas observações e desenhos precisos de membros atrofiados ou de rostos distorcidos de suas pacientes. Nos raros momentos de humor, também se exprimia por figuras. Ao enviar uma carta, costumava rabiscar, no lugar reservado ao nome e endereço do remetente, um galo que punha um ovo com o número seis. 

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Os amigos não tinham dificuldade em desvendar o que significava o enigma: 6, rue du Coq (galo, em francês). Ali, Charcot morava antes de ocupar a luxuosa casa de Saint-Germain, para onde, mais tarde, convidaria o fascinado Sigmund Freud.Como, no entanto, era dado ao mais severo rigor, quando entrou para o que se supunha ser o maior hospício do mundo resolveu vasculhar sua história, assim como todos os cantos daquele trágico lugar. O asilo fora criado em 1657 para abrigar uma população que não se enquadrava nos restritos padrões sociais da época. Um ano depois da fundação, misturavam-se no seu pátio mulheres cegas, surdas, inválidas, doentes mentais ou simplesmente miseráveis. junto com crianças abandonadas. Um século mais tarde, 8 000 pessoas estavam confinadas no que já então se tinha transformado num misto de hospício com prisão de segurança máxima. A situação chegou a tal ponto que em 1792 um suposto “complô de mulheres” foi alegado para justificar um bárbaro massacre promovido pelas forças da ordem nas dependências do La Salpétrière.Em 1862, Charcot encontrou ali 4 000 internas — e fez questão de examinar uma a uma, em seu consultório. Um escândalo: na época, a praxe médica mandava o doutor ir até onde estivesse o paciente, ou seja, ele passava em revista de uma só vez dezenas ou mesmo centenas de pessoas de um pavilhão. 

Afrontando o costume, o novo professor fazia com que a doente entrasse em seu gabinete. Diante de ajudantes e alunos, mandava que ela se despisse enquanto seus olhos percorriam cada reação, cada anomalia. Charcot nada dizia aos discípulos que se entreolhavam. curiosos. Repetindo o processo com as sucessivas pacientes, ele fazia comparações, traçava intermináveis esquemas, diferenciava sintomas. Em casa, passava noites em claro estudando cada detalhe. Numa dessas madrugadas, constrangido, precisou chamar a mulher: de tanto enrolar os cabelos com o dedo indicador enquanto passava horas a fio debruçado sobre os estudos aprontou um nó tão grande que Madame Charcot teve de socorrer o marido com uma tesoura para que ele pudesse soltar a mão.Ao cabo de semanas de trabalho, chegou ao que lhe pareceu serem as características imutáveis e universais do grande ataque histérico, “válido para todos os tempos, todos os países e todas as raças”. Para ele, a manifestação da doença se dividia em quatro fases sucessivas: a aura, estado que precede a crise, quando o doente começa a se agitar sem, no entanto, perder a consciência; a fase epileptóide, manifestada por gritos, palidez e perda de consciência; o período de contorções, também chamado “clownesco”, acompanhado de atitudes passionais e gesticulações teatrais; e, finalmente, a fase de resolução, com choros, risos e delírios.

Numa época em que perturbações mentais eram automaticamente associadas a comportamentos perigosos, sendo as pessoas encarceradas e postas a ferros, as pesquisas de Charcot representaram o início de uma nova compreensão dos distúrbios psíquicos, abrindo caminho, entre outras coisas, para as ousadas teorias de Freud sobre a sexualidade infantil e a repressão dos desejos. Coerente com a lógica científica em voga, Charcot optou por uma explicação estritamente biológica do problema da histeria —apontando para o fator hereditariedade —, mas não deixou de fazer alusões à influência das emoções no processo. Do mesmo modo, não lhe escapou a questão da sexualidade, mencionada na sua obra Iconografia fotográfica de La Salpétrière.O homem de pequena estatura que gostava de posar para fofos com ares de Napoleão e se sentia lisonjeado quando comparavam-no ao poeta italiano Dante Alighieri, tornou-se uma das personalidades mais controvertidas da sociedade parisiense de então. Emboradistante da política, protestou patrioticamente contra a anexação da Alsácia e da Lorena pela Alemanha na guerra franco-prussiana de 1870, recusando-se a dar aulas ou conferências naquele país. No hospital, era considerado um deus tanto pelas pacientes quanto pelas enfermeiras, estas não menos enclausuradas que as primeiras, que literalmente dedicavam as vidas àquele “grande asilo de misérias humanas”.Seu nome correu mundo e trouxe-lhe à porta personalidades ilustres da política, das artes e da filosofia de muitos países. 

O imperador brasileiro Pedro II, por exemplo, fez questão de procurá-lo no consultório, como admirador é claro, não cliente. Durante anos, adotou o hábito de receber em casa, semanalmente, entre a primavera e o verão, a fina flor da intelectualidade francesa. Alguns colegas, porém, se insurairam contra seus métodos, sobretudo a exposição das doentes nas famosas aulas das terças-feiras, as incontáveis fotografias tiradas de todos os ângulos das infelizes mulheres. Houve quem o acusasse de farsante ao observar as sessões de hipnotismo a que recorria —e que seriam imitadas por Freud.No anfiteatro do hospício, o autoritário Charcot se recusava a explicar um ponto de vista sem demonstrá-lo “ao vivo”. Mandava entrar uma das pacientes e convocava um auxiliar. “Faça-a dormir”, ordenava. O assistente apoiava por alguns instantes as mãos sobre os olhos da mulher. Ela emitia apenas um suspiro antes de cair em sono profundo. Logo, começava a obedecer a cada estímulo muscular provocado por Charcot, contorcendo-se como num ataque histérico. Em resposta aos que o acusavam de fraude, ele argumentava que a doente, não dispondo de conhecimentos de Anatomia, não poderia ter simulado os movimentos que o professor alegava ter induzido. 

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Teatro ou não, o mestre tinha um trunfo definitivo: o grande número de curas alcançadas.Recursos médicos tão diversos como eletrochoques e uma até então inédita intimidade com os sintomas de cada paciente associavam-se perfeitamente a uma imensa confiança que as pessoas sentiam naquele personagem misterioso, de olhar seguro e andar calmo. Mas ele não vivia apenas para a ciência. Amava a literatura e a música — indo até mais longe do que um amador comum. Por exemplo, leu e anotou toda a obra de Shakespeare, seu autor favorito. Apreciava Mozart e Beethoven, mas detestava Wagner, de quem dizia ser demasiado enfático. Não fosse para um concerto, jamais saía de casa às noites, nem gostava de ser importunado pela família. Seguiu à risca o exemplo paterno, decretando que a filha Jeanne deveria ser mãe de família e o filho Jean-Baptiste, médico. 

As ordens não foram contestadas. Jean-Baptiste, porém, entregou-lhe o diploma, engajou-se na Marinha, conquistou fama como grande explorador e morreu como herói a bordo do Porquoipas? na Antártida.Jean-Martin Charcot encarnou, como poucos, a ebulição por que passaram as ciências biológicas em geral e a Medicina em particular na segunda metade do século XIX; Com a nvençãp da anestesia, que a neurocirurgia seria praticada sem maiores problemas por seus sucessores. Foi seguidor fiel de Claude Bernard (1813-1878), o cientista francês que fundou a medicina experimental e o primeiro a defender a separação entre Nerologia e Psicologia. Em suma, puxou pela primeira vez o fio da meada que embaraçava todas as doenças mentais numa única, grande e indistinta categoria — a loucura.”Existem mais coisas entre o céu e a terra do que é capaz de sonhar a vã filosofia”, Charcot invocava seu bem-lido Shakespeare para justificar a obsessão de classificar separadamente cada moléstia psíquica, descrevê-la exaustivamente e tratá-la de maneira distinta e específica.

 

 

 

 

 

Para saber mais:

Freud explicou

(SUPER número 3, ano 1)

 

 

 

 

 

 

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