Cetáceos produzem registros vocais análogos aos de cantores humanos
"The Voice" no oceano: golfinhos e baleias emitem falsetes e graves para comunicação e ecolocalização – recurso para encontrar presas em águas profundas.
Golfinhos, narvais, cachalotes e orcas – um grupo de cetáceos com dentes conhecidos como odontocetos pelos cientistas – usam alguns dos sons mais sofisticados da natureza para se comunicar e para caçar.
Com a finalidade de identificar presas em águas profundas e escuras, algumas espécies emitem uma sequência de cliques rápida e ensurdecedora: o volume pode passar de 200 dB, enquanto um show de rock fica em uns 110 dB. Pense no som que você faz ao estalar a língua, só que amplificado pelo paredão de alto-falantes do Metallica.
Essa vibração estrondosa se propaga pela água, bate nos obstáculos ao redor (que podem ser qualquer coisa: pedras, o leito do oceano e outros seres vivos) e volta para os tímpanos do golfinho, que assim consegue estabelecer a posição e a distância do peixe que está prestes a virar almoço. Trata-se de um sonar biológico – o bicho “vê” com os ouvidos. Isso o torna um dos caçadores mais formidáveis dos mares. E você aí com medo de tubarão, rs.
As “pregas vocais” dos golfinhos se chamam lábios fônicos. Mas ficam no interior do nariz, e não na laringe, como as nossas. Além da ecolocalização, esses lábios são responsáveis por gerar uma variedade de grunhidos, assobios e outras emissões complexas, que os biólogos mal começaram a decifrar. Sabe-se que a comunicação dos golfinhos tem até nomes: sons que identificam membros individuais de um grupo.
Agora, um grupo de pesquisadores de universidades alemãs e dinamarquesas descobriu que os lábios fônicos dos odontocetos são capazes de gerar sons em registros vocais diferentes. Isso significa que essas estruturas têm o mesmo leque de recursos que as pregas vocais humanas: produzem falsetes (como a voz fininha do Prince em “Kiss”) e vocal fries (por exemplo, os gemidos graves de Marilyn Manson em seu cover de “Sweet Dreams”). O vocal fry, diga-se, é o registro por trás dos cliques do sonar.
A descoberta foi anunciada hoje no encontro anual da Associação Americana para o Avanço da Ciência (AAAS), em Washington, que a Super está cobrindo. Os pesquisadores coletaram dados de várias formas: áudio e vídeo do aparelho fonador em ação em cetáceos treinados – e também analisaram, em laboratório, os lábios fônicos de cetáceos mortos. O artigo científico completo está disponível aqui.
Os testes com botos mortos revelaram que os lábios fônicos continuam capazes de produzir os cliques de ecolocalização quando submetidos a ar sob pressão em laboratórios. Usar os animais mortos para o experimento é engenhoso, porque prova que não há nenhum tipo de ação muscular por trás do som, como ocorre quando um humano estala a língua. Os lábios ficam tensionados em uma posição fixa, e é a passagem do ar em altíssima velocidade que faz essas estruturas vibrarem. Trata-se de um fenômeno inteiramente aerodinâmico.
Não é brincadeira emitir sons tão altos em profundidades superiores a 100 metros, conforme a pressão da água vai se tornando esmagadora. Para piorar, golfinhos não têm guelras e precisam voltar à superfície para respirar periodicamente, como quaisquer outros mamíferos. Quando chegam lá embaixo, só resta algo como 10% da capacidade total dos pulmões. Mesmo assim, eles expelem o ar com uma força cem vezes maior que um trompetista (até 100 kilopascais, contra 3 a 14 quilopascais para os músicos profissionais).
Essa descoberta põe os golfinhos, botos e cetáceos similares no grupo seleto de animais que têm registros vocais diferentes – até então, humanos e alguns pássaros eram os únicos que sabíamos vir equipados com o hardware biológico necessário para esse feito.
Mais uma para a longa lista de espertezas dos golfinhos. Ainda há muito para descobrir: embora o estudo atual tenha dado um passo imenso na compreensão da ecolocalização, ainda resta quase tudo a saber sobre os “idiomas” dos cetáceos – e qual papel cada registro vocal tem na comunicação entre eles.