Clonagem ,homens em série
A técnica usada na tentativa de produzir clones de gente é bem parecida com aquela que trouxe ao mundo a ovelha Dolly, em 1997.
Maria Fernanda Vomero
Enquanto você lê esta reportagem, há alguém tentando clonar um ser humano em algum lugar do mundo. Na surdina. Provavelmente, o pesquisador responsável pela tarefa acaba de soltar um suspiro inquieto ao constatar que, mais uma vez, a experiência falhou. A técnica usada na tentativa de produzir clones de gente é bem parecida com aquela que trouxe ao mundo a ovelha Dolly, em 1997, e outros tantos mamíferos desde então . São centenas de óvulos para gerar alguns poucos embriões. Em seres humanos, até hoje, nenhum deles vingou, devido a causas ainda desconhecidas. Diante do fracasso, expresso em abortos espontâneos e fetos malformados, restam alguns milhões de dólares investidos e grupos de doadoras de óvulos, de candidatos à clonagem e de mães de aluguel – todos frustrados. A meta é trazer ao mundo um bebê saudável, o que provavelmente daria ao pesquisador o prêmio Nobel pelo nascimento do primeiro clone humano.
Embora pareça, essa cena não faz parte de Admirável Mundo Novo (1932), livro de Aldous Huxley, que retrata um mundo em que a reprodução é feita em laboratório, sem sexo, e as pessoas são clonadas de acordo com as exigências da sociedade. Os esforços de duplicar seres humanos são reais. Um dos cientistas debruçados sobre a tarefa é o americano Panayiotis Zavos, especialista em medicina reprodutiva e professor emérito da Universidade do Kentucky. Em março deste ano, ele anunciou a formação de um consórcio de pesquisadores com o objetivo de clonar gente. Além de Zavos, há a bioquímica francesa Brigitte Boisselier, diretora científica da Clonaid, empresa do movimento religioso dos Raelians com sede nos Estados Unidos, que pretende produzir o primeiro ser humano clonado em breve. (Os Raelians acreditam que a vida na Terra foi criada por extraterrestres e que, um dia, eles voltarão. A clonagem seria a possibilidade de alcançar a vida eterna.)
A receita para duplicar um indivíduo não é um segredo de Estado: segue, basicamente, os mesmos passos do processo usado para clonar ovelhas, vacas e ratos.
“A clonagem humana provoca uma apreensão muito grande, porque o debate sempre se encaminha para a vulgarização do tema – a duplicação de um milionário excêntrico, de um grande esportista ou de uma beldade qualquer”, diz o médico Volnei Garrafa, especialista em bioética (campo da filosofia que reflete sobre questões biológicas) e professor da Universidade de Brasília. De fato, não existe a possibilidade de usar a clonagem para formar um exército de pessoas geneticamente idênticas, prontas para empunhar armas na primeira guerra que aparecer – fantasia sempre recorrente. As questões que apimentam o debate entre opositores e defensores da clonagem humana são outras. Clonar gente traz algum benefício para a humanidade? É ético? Deixa de ser?
Se os resultados da clonagem de mamíferos ainda não são satisfatórios, por que tentar duplicar pessoas? “Ações inescrupulosas em relação à clonagem de gente trarão descrédito para aqueles que fazem pesquisas sérias nos campos do desenvolvimento humano, com grande impacto sobre a medicina”, afirma o geneticista Ian Wilmut, da Universidade de Edimburgo, na Escócia, “pai” da ovelha Dolly.
“Devemos sempre fazer a ciência avançar antes de colocá-la em prática”, diz o veterinário brasileiro Lawrence Smith, professor da Universidade de Montreal, no Canadá. Especialista em clonagem por transferência nuclear, Smith integrou a equipe escocesa que criou Dolly, e agora trabalha com o aperfeiçoamento das técnicas de clonagem em bovinos. Para chegar ao bezerro Starbuck II, duplicata de um touro já morto, foram 68 tentativas. Nem todos os óvulos se tornaram embriões, nem todos os embriões vingaram. Somente quatro deles permaneceram implantados no útero de uma vaca receptora durante pelo menos um mês de gestação e, desses, três foram abortados espontaneamente.
Perto das 277 tentativas para chegar até Dolly, Starbuck II foi um sucesso. “Trata-se de um avanço, sim, mas ainda há falhas enormes”, diz Smith. Até agora foram clonadas em laboratórios do mundo inteiro cinco espécies de mamíferos – ovelhas, ratos, cabras, vacas e porcos. Os próximos na mira dos cientistas são os felinos. A maioria dos clones morreu nos vários estágios do desenvolvimento embrionário, foi abortada naturalmente durante a gestação ou nasceu com deficiências respiratórias, imunológicas e metabólicas, sobrevivendo apenas alguns dias ou semanas. Mas os animais que vingam são tão saudáveis quanto aqueles que nascem por métodos naturais – pelo menos na aparência. Só que não existe comprovação científica de que a clonagem não traga problemas futuros.
“Podemos nos dar ao luxo de aceitar algumas anomalias em animais clonados”, afirma Smith. “Mas não devemos tomar seres humanos como modelos experimentais.” Na opinião dele e de outros tantos especialistas, enquanto as pesquisas com mamíferos não forem animadoras, não se deve testar em gente. “Conhecemos a técnica para clonar um indivíduo, mas ainda não conseguimos torná-la eficiente”, afirma o médico paulista Roger Abdelmassih, um dos maiores especialistas brasileiros em reprodução assistida.
Tanto Zavos quanto Brigitte, cientistas que anunciaram a clonagem de gente para breve, sabem de tudo isso. Então, por que correr tantos riscos? Em outras palavras: qual a utilidade da clonagem humana, além do mero diletantismo científico? “As técnicas de clonagem apresentam riscos como qualquer outro procedimento e estamos buscando minimizá-los”, diz Zavos, que há 25 anos realiza experiências na área de infertilidade humana. Ele pretende fazer clones para ajudar casais que não conseguem ter filhos por nenhum outro método, natural ou artificial. “Temos boa parte da tecnologia necessária, mas ainda precisamos desenvolver ou refinar outras etapas.” Zavos já colocou a mão na massa e disparou sua experiência de clonar gente. Brigitte e outros três cientistas de sua equipe também entraram em ação. “O primeiro ser humano que vamos clonar é um bebê de 10 meses de idade, morto em um acidente”, diz. “O pai dele nos ajudou a comprar os equipamentos para o nosso laboratório. E nós vamos ajudá-lo a ter o filho de volta.”
Brigitte, que também é professora na Hamilton College, em Nova York, afirma que o baixo índice de eficiência das técnicas de clonagem de animais não a assusta. “As taxas de sucesso da fertilização in vitro – uma técnica que ajuda centenas de casais com dificuldades para ter filhos – não são altas, ficam em torno de 35% para cada tentativa”, diz ela. “Estão próximas dos índices alcançados com a clonagem de gado – e não sabemos tanto sobre reprodução em gado quanto sabemos sobre reprodução humana. Por isso, estou confiante com o bom resultado da nossa pesquisa.”
Para o pesquisador australiano Alan Trounson, diretor do Instituto de Reprodução Assistida da Universidade Monash, em Melbourne, tais justificativas não se sustentam. “Clonar humanos agora, na minha opinião, equivale a prescrever uma nova droga para mulheres, sabendo que essa droga pode trazer problemas e efeitos reversos para a prole”, diz ele. “Isso não seria apropriado nem correto.” Um dos primeiros cientistas do mundo a clonar mamíferos, Trounson acredita que existe um longo caminho a ser percorrido até que a técnica se torne segura. “Trata-se ainda de um processo extremamente perigoso. Precisamos aprender a reprogramar direito o núcleo de uma célula adulta.”
Segundo Trounson, muitos problemas que aparecem na gestação, como a placenta anômala e o crescimento exagerado do feto, podem estar relacionados à reprogramação de certos genes. Lygia da Veiga Pereira, especialista em genética molecular e professora da USP, tem a mesma opinião. Lygia se refere a um fenômeno natural chamado imprinting, uma espécie de carimbo que certos genes recebem, dependendo da origem, materna ou paterna. Todas as células possuem uma duplicata de cada gene. Em algumas delas, só aqueles vindos da mãe funcionam; em outras, apenas as cópias recebidas do pai.
Para transformar uma célula de sangue ou de pele em um novo ser, ou no tecido de algum órgão, todas as informações prévias do núcleo são apagadas para que, no futuro, quaisquer genes sejam ativados. Durante esse processo, é provável que os “carimbos” materno e paterno, fundamentais para o desenvolvimento normal do embrião, também desapareçam. “Uma hipótese para tentativas fracassadas de clonagem é o fato de essas informações do núcleo ficarem atrapalhadas após a reprogramação”, afirma Lygia, que é contrária à clonagem humana. Um gene que deveria se manifestar fica inativo e vice-versa. “Talvez exista alguma característica inerente à biologia dos mamíferos que torne a eficiência da clonagem tão baixa. Não evoluímos para ser duplicados – clonar seres humanos é totalmente antinatural.”
Os defensores da prática discordam. “Ao fazer um clone de alguém, estamos apenas criando um gêmeo univitelino, mas com alguns anos de diferença”, afirma o médico Roger Abdelmassih, que ajudou cerca de 2 400 bebês de proveta a nascerem e não vê problemas em trazer ao mundo outros tantos por meio da clonagem, no futuro. “Muitos casais que perdem seus filhos em acidentes me procuram, pedindo que eu os ajude a ter outro filho. Principalmente as mães em idade avançada”, diz ele. “Se o processo de clonagem já estivesse dominado, não seria lógico dar àqueles casais uma criança com as mesmas características do filho morto?”
Trata-se de uma pergunta espinhosa. Afinal, o primeiro impulso de pais que perderam o filho é tentar trazê-lo de volta. “Clona-se biologia, mas não biografia”, afirma o padre Léo Pessini, especialista em bioética do Centro Universitário São Camilo, em São Paulo. A criança será fisicamente idêntica àquela que morreu. Mas nascerá numa outra época, passará por experiências distintas, terá outra personalidade. Enfim, será outra pessoa. “Hoje, graças à ciência, podemos viver mais e melhor”, diz o padre Léo. “Mas temos de aceitar o fato de que somos mortais. Isso não podemos mudar.”
Para o médico americano Arthur Caplan, do Centro de Bioética da Universidade da Pensilvânia, na Filadélfia, o desejo de clonar um ente querido ou de criar uma duplicata de si mesmo pode esconder sentimentos como egoísmo e vaidade. “Não há meios de trazer de volta uma pessoa morta ou recriar um atleta. Nem com clonagem. Os clones são indivíduos únicos, dotados de livre-arbítrio”, diz ele. Os opositores da clonagem humana discutem se existe ética ou não em qualquer uma das razões arregimentadas em favor da prática. A Igreja Católica, por exemplo, argumenta que não. “A clonagem permite o domínio de um indivíduo sobre outro”, afirma o monsenhor Elio Sgreccia, vice-presidente da Pontifícia Academia pela Vida, com base no Vaticano. “Não se pode impor a alguém uma estrutura física, fabricar uma pessoa a partir da própria vontade e dar-lhe características semelhantes às de outro ser por simples arbítrio. Isso é uma instrumentalização, uma maneira de escravizar.”
Sem haver consenso nem mesmo entre os próprios cientistas, a clonagem humana para fins reprodutivos encontra restrições em diversos países. Muitos, como a Austrália e o Canadá, ratificaram a proibição da prática. Nos Estados Unidos, no dia 26 de abril último, um senador e um deputado republicanos apresentaram projetos de lei que tornam ilegal a clonagem de células humanas, não importa se usadas em pesquisas ou para reprodução. No momento, a Inglaterra é o único país do mundo que abriu uma brecha para a clonagem: permite experiências com embriões clonados para fins terapêuticos, com o objetivo de pesquisar a cura de doenças como o mal de Parkinson e produzir tecidos de órgãos vitais em laboratório para facilitar transplantes.
A chamada clonagem terapêutica parte do estudo das células-tronco, que são células não-diferenciadas com potencial para se transformar em qualquer tipo de célula ou tecido do organismo – desde neurônios até células epidérmicas, sangüíneas ou musculares. Elas existem em pequena quantidade no indivíduo adulto, espalhadas por todo o corpo, mas constituem o embrião com poucos dias de idade, quando ele ainda é um conjunto de células totalmente iguais, sem nenhuma especialização.
A idéia é usar a técnica de transferência de núcleo (a mesma que originou Dolly) para criar um embrião clonado e extrair dele as células-tronco, descartando o que não for aproveitado. Imagine um indivíduo com o fígado parcialmente comprometido. O núcleo de uma célula saudável desse paciente seria colocado no óvulo anucleado de uma doadora. A partir daí, haveria um embrião, geneticamente idêntico ao paciente, cujas células-tronco seriam colhidas. Essas células evoluiriam para um tecido saudável de fígado, posteriormente transplantado para o paciente (em substituição ao tecido doente). O restante daquele clone seria descartado.
A clonagem terapêutica elimina toda ameaça de incompatibilidade, problema comum nos transplantes tradicionais. Mas o fato de o embrião ser jogado fora, depois de ter suas células-tronco aproveitadas, traz de volta a discussão sobre a ética do processo, como no debate em relação à clonagem humana para fins reprodutivos. “Trata-se de um ato de canibalismo criar um embrião, que já é uma vida, somente para utilizar suas células, mesmo que seja com o propósito de curar um indivíduo adulto”, diz o monsenhor Elio Sgreccia, do Vaticano. “Não vejo problema moral em desenvolver um embrião para aproveitar suas células-tronco”, afirma o bioeticista Volnei Garrafa, da UnB, contra a clonagem reprodutiva mas a favor da terapêutica. “A questão, nesse caso, é religiosa e não ética.”
Os grupos pró-vida – que são contrários à clonagem humana tanto quanto são contra o aborto ou a eutanásia – sugerem que os pesquisadores, em vez de utilizarem células-tronco embrionárias, invistam na tentativa de reprogramar células adultas para que se tornem células-tronco. As descobertas nessa área são recentes. “Por enquanto, nossas experiências se restringem a estudos com ratos. Mas já temos resultados publicados em que células-tronco do sangue de um indivíduo adulto geraram células do fígado, do intestino, do músculo e até neurônios”, diz o médico Steve Bartelmez, professor assistente de patologia da Universidade de Washington que, há 15 anos, estuda células-tronco sangüíneas e seu uso na recriação de tecidos de órgãos como o coração, por exemplo, em laboratório. De qualquer modo, a clonagem terapêutica ajudaria somente a reparar tecidos comprometidos, mas jamais órgãos inteiros, como o rim. “Nenhum órgão, com exceção da pele, pode ser recriado fora de um animal”, afirma.
Se a sabedoria popular já recomendava ir com calma na hora de discutir assuntos como religião, política e futebol, use essa mesma prudência quando entrar num debate sobre clonagem humana. Argumentos a favor ou contra não faltam; mas ainda não existem respostas definitivas para muitos dos resultados positivos ou negativos obtidos nas experiências com clonagem reprodutiva ou terapêutica. “O limite está na prudência, na avaliação dos riscos e dos benefícios”, diz o médico Marco Segre, especialista em bioética da USP.
Aguardemos as cenas do próximo capítulo.
Operação clonagem humana
A técnica usada é a mesma que trouxe Dolly ao mundo
1 – O cientista retira o núcleo do óvulo de uma doadora. Em seu lugar, coloca o núcleo de uma célula do corpo do candidato à clonagem.
2 – O óvulo modificado possui, então, 46 cromossomos – como se tivesse sido fertilizado por um espermatozóide.
3 – O óvulo passa a dividir-se, formando um embrião.
4 – Esse embrião é transferido para o útero de uma voluntária.
5 – Se vingar, terá informações genéticas idênticas às daquele indivíduo que cedeu a célula somática. Ou seja, será um clone.
Era só o que faltava
A clonagem pode reforçar o aparecimento de uma nova modalidade de eugenia
Você deve estar acostumado a ouvir histórias sobre discriminação de raça, religião ou nacionalidade. Mas prepare-se: a nova modalidade de segregação talvez seja genética. O anúncio do mapeamento do genoma humano tornou possível identificar os cerca de 30 000 genes constitutivos da espécie humana. Com isso, um simples teste revelará se existe predisposição genética de uma pessoa desenvolver uma determinada doença ou não, por exemplo. Em caso afirmativo, tal informação poderá ser usada por convênios de saúde, seguradoras, agências de emprego, entre outras. O indivíduo será julgado, então, por seu perfil genético. Em 1996, uma pesquisa realizada pela médica americana Lisa N. Geller, na época na Universidade Harvard, mostrou que a discriminação genética já vem sendo praticada por instituições diversas e até por órgãos do governo nos Estados Unidos. Mas onde é que entra a clonagem humana nessa história toda?
Se ela se mostrar eficiente e for, num futuro não tão distante, considerada aceitável do ponto de vista legal, poderá servir para reforçar essa discriminação. Somente indivíduos com genomas irretocáveis vão entrar na lista dos clonáveis. Ou então, a clonagem humana será colocada a serviço da “eugenética”, neologismo cunhado a partir do já conhecido termo “eugenia”, ciência que estuda as condições mais propícias para a reprodução e o melhoramento da espécie humana. Claro, trata-se de um belo exercício de imaginação, porque a clonagem dificilmente estará ao alcance de grande parte da população, como está hoje a cirurgia plástica, por exemplo. Mas os critérios de eugenética são bem diferentes daqueles que existiram na época de Adolph Hitler: prevenir e curar doenças e malformações consideradas de origem genética e melhorar as competências humanas, como a inteligência, a criatividade, a memória, entre outras, desde o estágio embrionário.
A clonagem pode contribuir, nessa linha de pensamento, para perpetuar certas características consideradas fundamentais para a espécie. E assim caminha a humanidade.
Para saber mais
Na livraria:
Who’s Afraid of Human Cloning?,
Gregory E. Pence, Rowman & Littlefield Publishers, Estados Unidos, 1998
Na internet