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Cobaias humanas

Cada remédio que existena prateleira da farmácia precisouantes ser testado - em humanos

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h48 - Publicado em 29 fev 2004, 22h00

Marcos Coronato

Eram 400 homens doentes, todos negros. Mas, para os cientistas que os observavam, eles valiam apenas como cobaias de laboratório. Os pesquisadores sabiam qual era a doença deles. Depois de algum tempo, sabiam como curá-la. Apesar disso, negavam-se a dar o tratamento. Apenas registravam metodicamente a piora nas condições de saúde dos doentes. Enquanto isso, os homens morriam, um a um.

Coisa de campo de concentração nazista? Não exatamente. A pesquisa com 400 portadores de sífilis foi feita em Tuskegee, Alabama, Estados Unidos. Terminou em 1972, com uma denúncia da própria comunidade científica, depois de se arrastar por quatro décadas. A penicilina era indicada como tratamento básico para a sífilis desde 1943. Em 1997, o então presidente Bill Clinton pediu desculpas àquela comunidade do Alabama. O Estudo de Sífilis de Tuskegee rendeu grande parte das informações que temos hoje sobre a doença, mas é consenso que foi um grande erro. Entrou para a história como exemplo de tudo que não se deve fazer em experiências médicas com seres humanos. Isso não quer dizer que as experiências com gente tenham sido abandonadas. Claro que não, nem se pensa nisso. Na verdade, elas são cada vez mais comuns, em um número crescente de países. Da próxima vez que for ao médico, você pode até ser convidado a participar de uma.

Homens ou ratos?

Afinal de contas, por que usar pessoas para entender doenças e testar remédios cujos efeitos nem conhecemos ? E como garantir que os experimentos sejam seguros? A primeira pergunta é fácil de responder. A segunda, não.

Usam-se pessoas em pesquisa médica porque nossa tecnologia não é boa o bastante para dispensá-las – e talvez nunca venha a ser. Todos os testes existentes – em laboratório, em animais, em simulações por computador – são incapazes de dizer com precisão como agirá uma droga no corpo do Homo sapiens. “Não temos como simular todos os efeitos que poderão ocorrer no organismo”, afirma o médico João Fittipaldi, diretor no Brasil da Pfizer, maior companhia farmacêutica do mundo. “Além disso, há questões como a variabilidade genética da espécie e a influência de fatores como gênero, idade e hábitos alimentares.” Em outras palavras: só sabemos se um remédio funciona e quais seus efeitos colaterais depois de testá-lo em centenas ou milhares de seres humanos. O problema é como garantir a saúde dessas pessoas.

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É tranqüilizador saber que as regras dos testes melhoraram muito desde a época em que qualquer um podia inventar um elixir e sair por aí vendendo. Hoje, a pessoa que aceita experimentar um candidato a remédio – chamada no jargão médico de “sujeito de pesquisa” – é cercada de cuidados e tem direitos bem definidos (embora alguns sejam motivo de briga no meio científico, como você verá a seguir). O caminho até esse ponto da história não foi curto. Ele começou a ser percorrido depois dos horrores dos campos de concentração nazistas, quando experimentos avaliavam a resistência do ser humano ao congelamento, ao afogamento, à altitude e a venenos, que normalmente levavam o “paciente” à morte. A revelação dos arquivos nazistas resultou na criação, em 1947, do Código de Nuremberg, após o julgamento dos criminosos de guerra – 27 médicos entre eles –, na cidade alemã de mesmo nome.

O Código foi um primeiro passo para tornar as pesquisas mais justas. Ele determinou princípios valiosos, vigentes até hoje: os testes só podem usar voluntários, devem ser feitos primeiro com animais e têm de parar se prejudicarem um único paciente. Parecem óbvios? Pois eles foram solenemente ignorados muitas vezes, mesmo depois da derrota nazista. Dos anos 1930 aos 60, houve de tudo um pouco: vírus da hepatite inoculado em crianças deficientes mentais, câncer provocado em idosos, cirurgias cardíacas feitas em pessoas saudáveis. Tudo em nome da ciência.

Cerca de 80 abusos do tipo, só nos Estados Unidos, foram documentados pelo anestesista Henry Beecher, professor da Universidade Harvard, morto em 1976. Quando divulgou um estudo com 22 dessas pesquisas, em 1966, Beecher mostrou ao mundo uma realidade até então comodamente escondida: o horror do uso de gente como cobaia não era exclusividade nazista.

Dois anos antes, em 1964, o Código de Nuremberg havia gerado um filhote: a Declaração de Helsinque, que lista os direitos do sujeito de pesquisa. A declaração, assinada numa Assembléia Médica Mundial, até hoje orienta médicos nos cinco continentes. Sim, nos cinco continentes. Afinal, já se foi o tempo em que os temores dos participantes de servir como cobaias eram limitados a um grupo de nações ricas, principalmente Estados Unidos, Alemanha, Suíça e Inglaterra. Esses eram e continuam sendo os países de origem de quase toda a pesquisa farmacêutica no mundo. Mas, agora, cidadãos em qualquer lugar do planeta podem ser envolvidos nos experimentos.

Ricos e Pobres

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É justamente o fato de essas pesquisas terem se espalhado pelo mundo que está gerando polêmica. Há hoje uma briga feia a respeito de pequenos detalhes na Declaração de Helsinque – mais precisamente, por causa de dois dos 32 parágrafos do texto (vide bula à direita). O motivo da briga é fácil de entender. Um desses parágrafos afirma que o método em estudo deve ser comparado com “o melhor método da atualidade”. Isso quer dizer que os pacientes têm de ser divididos em dois grupos, um tratado com o novo método, o outro tratado com “o melhor método” existente, a fim de se comparar os resultados. O segundo parágrafo-problema afirma que, depois de terminada a pesquisa, todos os participantes, dos dois grupos, devem ter acesso ao tal “melhor método da atualidade”, seja ele o que já existia antes ou o novo (se essa for a conclusão do estudo). Assim nenhum grupo será prejudicado.

Até 2000, essas afirmações eram mais brandas, pois incluíam o termo “se possível”. A Declaração se tornou rígida depois que os cientistas americanos Peter Lurie e Sidney Wolfe denunciaram, em 1997, negligência em experiências com Aids feitas em 15 países pobres, como Uganda e Tailândia. Os testes avaliavam o índice de transmissão do HIV da gestante para o feto. Já se sabia que a transmissão para o bebê, durante a gravidez, era muito maior entre mulheres sem tratamento (hoje, sabe-se que o tratamento com AZT reduz a taxa de transmissão de 25% para 2%). Apesar disso, as mulheres de um dos grupos receberam apenas placebo – ou seja, nada. É claro que muitos sujeitos dessa pesquisa pegaram Aids.

Por causa da denúncia, o texto mudou e tornou-se inflexível na defesa do “melhor método” em todos os países, inclusive os pobres. Nada mais de “se possível”. O problema, para os financiadores, é que essas regras levaram os custos às alturas – basta pensar no tratamento de doenças complicadas, como formas agressivas de câncer, e multiplicar pelas centenas ou milhares de pacientes envolvidos nos testes. As empresas afirmam que o custo de desenvolvimento de um novo remédio subiu de cerca de 300 milhões de dólares, em meados dos anos 90, para 800 milhões, atualmente. É por isso que representantes da comunidade científica e de laboratórios dos Estados Unidos e da Europa tentam mudar o texto da Declaração de Helsinque. A alteração que eles defendem é pequena, mas tão sutil quanto a pisada de um elefante.

Basicamente, eles querem que os pacientes tenham direito não mais ao “melhor método da atualidade”, mas sim ao “melhor método disponível” no país em que ocorre a pesquisa. Isso significaria reduzir, e muito, os custos em países subdesenvolvidos. Significaria, também, que os participantes de experiências nos países pobres teriam tratamento pior que os dos países ricos, algo no mínimo discutível.

Os defensores da mudança afirmam que oferecer “o melhor método existente” a apenas algumas pessoas, se ele não for disponível naquele país, seria discriminatório. Dizem também que o novo método deveria ser comparado com o melhor método disponível no país para que o governo local possa fazer uma escolha entre o método em uso e o novo. Por esse ponto de vista, seria inútil comparar com o “melhor método existente”, já que ele não existe localmente. Finalmente, há a questão do custo: se eles ficarem altos demais, poderiam tornar pouco atraente a pesquisa em países pobres. O médico britânico Stephen Tollman é um dos que fazem esse alerta: “A linguagem rígida da Declaração poderia, não intencionalmente, colocar em perigo a pesquisa nos países subdesenvolvidos”.

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Contra a mudança, alinharam-se latino-americanos, asiáticos e alguns europeus, com Brasil e Argentina no pelotão de frente. “O sujeito de pesquisa tem de receber o melhor tratamento existente, não importa se ele é fácil ou não de obter por aqui”, diz Corina de Freitas, secretária-executiva da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), o órgão que decide no Brasil quais experimentos podem ser feitos e quais têm problemas éticos. “Afinal, o contexto de uma pesquisa não é o mesmo que o da realidade de saúde pública”. Ela lembra que, das pesquisas em que estrangeiros buscam a cooperação de brasileiros, 80% visam a encontrar novos medicamentos. Embora o surgimento de um novo remédio seja um benefício para toda a sociedade, ele provavelmente será patenteado e vendido, para (muito justamente) dar lucro a quem o criou – geralmente um laboratório europeu ou americano. Por isso, ela considera justo, também, que o participante da pesquisa e seu país tenham algum benefício direto.

O que cientistas brasileiros, argentinos e de outros países pobres mais temem é que a flexibilização torne realidade uma crença popular, segundo a qual povos subdesenvolvidos servem apenas como cobaias da indústria farmacêutica. Volnei Garrafa, presidente da Sociedade Brasileira de Bioética e professor da Universidade de Brasília, afirma que não é bem assim – ao menos enquanto a convenção internacional for respeitada no formato atual. A preocupação é não deixar que essa situação ande para trás. “Não dá para um país entrar com a inteligência e outro com as pessoas”, diz Volnei. Diante da situação de confronto, a Associação Médica Mundial decidiu criar um grupo de trabalho para discutir o assunto. Um dos participantes é o médico brasileiro Dirceu Greco, da Universidade Federal de Minas Gerais. O grupo terá de apresentar propostas até maio. Elas vão dar o que falar na próxima Assembléia Médica Mundial, em Tóquio, em outubro de 2004.

E o Brasil?

Atualmente, há pelo menos 27 empresas farmacêuticas multinacionais fazendo testes no Brasil. Essas companhias, junto com universidades, realizaram em 2003 mais ou menos 1 200 pesquisas clínicas no país. O número de pesquisas em território nacional não pára de aumentar desde que se aprovou a Lei de Patentes, em 1996, com a qual passou-se a respeitar a propriedade intelectual de medicamentos. Cerca de 600 mil brasileiros já participam, a cada ano, de testes de potenciais remédios. “O país tem grande população, pesquisadores de padrão internacional, centros de excelência e custo relativamente baixo”, diz Flávio Vormittag, presidente da Interfarma, a associação das empresas – estrangeiras – que fazem pesquisa de novos medicamentos no Brasil.

Em princípio, receber pesquisas clínicas é bom negócio para o país. Os cientistas locais, chamados a colaborar, têm a chance de aprender. Além disso, cada povo tem características genéticas de maior ocorrência. Se os testes forem feitos apenas, digamos, na Alemanha, aumenta a chance de que efeitos colaterais só sejam detectado no Brasil com o remédio à venda.

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Mas por que alguém aceitaria tomar um remédio que ninguém sabe exatamente como funciona? Na maior parte dos casos, o convite é feito pelo médico a pessoas que não obtiveram resultados com a terapia tradicional, ou cuja doença não tem tratamento eficaz. O convite não pode envolver dinheiro, porque o pagamento ao sujeito de pesquisa é proibido no Brasil (na Europa também. Já nos Estados Unidos e no Canadá é permitido e os testes são até anunciados no rádio). A idéia é que as pessoas decidam participar só pelos possíveis benefícios a sua saúde.

O médico é o responsável por mostrar o grau de segurança da pesquisa e esclarecer dúvidas do paciente. Ainda há muito o que melhorar nesse campo: os termos de consentimento redigidos no Brasil, que têm de ser assinados pelo voluntário, são bem complicados. Eles são escritos em um tecniquês difícil de entender para pessoas com menos de onze anos de escolaridade, caso da maioria da população brasileira.

Antes de decidir aceitar participar de uma experiência, o convidado tem de saber o seguinte: qualquer molécula recém-descoberta e que tenha chance de virar um novo medicamento passa por uma verdadeira odisséia antes de entrar no corpo de alguém (veja infográfico acima). Ela atravessou pelo menos três anos de testes em laboratório e em cobaias – e não apenas camundongos. Os testes pré-clínicos (ou seja, antes de chegar às pessoas) têm de envolver pelo menos três mamíferos. Essa é uma briga à parte com os defensores dos direitos dos animais, já que ninguém inventou ainda uma maneira de dispensar os bichos. Apenas parte da interação da substância com tecidos vivos pode ser simulada em computador. No final das contas, de cada 50 remédios promissores que iniciam os testes pré-clínicos, apenas um chegará ao ponto de ser testado em humanos.

As pesquisas que chegam ao Brasil já se encontram, provavelmente, na chamada Fase Três – a última antes de o remédio ir ao mercado. Mas o trabalho do cientista só acaba num momento seguinte, a Fase Quatro. É a hora de ficar atento ao que acontece no mundo real. “Há efeitos colaterais raros, que só se manifestam quando centenas de milhares de pessoas são expostas à droga”, diz o médico André Feher, diretor do laboratório Eli Lilly. Ou seja: num certo sentido, todo mundo que toma remédio é um pouco cobaia.

Para saber mais

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Na internet:

https://www.saude.gov.br/sisnep, Site do sistema de informações sobre ética em pesquisa

Bula

Cobaias humanas

Esta bula é continuamente atualizada.Favor proceder a sua leitura antesde se submeter a pesquisas

Os direitos de uma cobaia

Todo sujeito de pesquisa, em qualquer lugar do mundo, tem uma série de direitos. Os principais deles são:

• Decidir se quer participar.

• Receber informações sobre os objetivos, métodos e riscos da pesquisa e dos tratamentos alternativos.

• Manter sua privacidade e anonimato.

• Abandonar a pesquisa quando quiser.

• Tratamento gratuito caso surjam complicações de saúde por causa da pesquisa.

! Receber o melhor tratamento já existente para sua doença ou o novo tratamento em teste, que deve ter potencial para se tornar o melhor existente.

• Comunicar-se facilmente com os pesquisadores.

• Receber informações que surgirem no estudo, como problemas ocorridos com outros voluntários.

• Indenização, caso a pesquisa cause alguma dano.

• Exclusividade nas informações que prestar e nas amostras retiradas de seu corpo – elas não poderão ser usadas em outras pesquisas.

! Depois de terminada a pesquisa, continuar recebendo o tratamento em pesquisa que tiver experimentado, se o considerar benéfico.

O que pode mudar

Representantes de países ricos querem diminuir os dois direitos destacados acima. Eles ficariam assim:

! Receber o melhor tratamento disponível em seu país ou o novo tratamento em teste, com potencial para se tornar o melhor.

! Depois de terminada a pesquisa, continuar recebendo o melhor tratamento para sua doença disponível em seu país.

Fonte: Conep (Comissão Nacional de Ética em Pesquisa)

A odisséia de uma molécula

Como funcionaa pesquisa clínica docomeço ao fim

Fase coleta

Moléculas com potencial farmacêutico são encontradas todo dia em todo tipo de ser vivo. Mas, de cada 10 mil, só 250 são consideradas promissoras e testadas

Fase Pré-clínica – 3 a 6 anos

TESTES IN VITRO

No laboratório, os cientistas testam num tubo de ensaio como as moléculas reagem com seus alvos e com outras moléculas do corpo humano

TESTES IN SILICO

Ainda não são padrão. A partir da estrutura 3-D das moléculas, os cientistas simulam em computador como ela reagirá com outras moléculas

TESTES IN VIVO

Testes em animais. As moléculas têm de dar resultado em três espécies de mamíferos antes de chegar aos humanos

Fase clínica – 6 a 7 anos

FASE I – 20 A 80 PESAS:

Geralmente são sujeitos saudáveis. O objetivo é determinar o grau de toxicidade da droga e a forma como o corpo a absorve e a excreta

FASE II – 100 A 300 PESAS:

Parte recebe a nova droga e parte o tratamento tradicional ou placebo, para comparação

FASE III – 800 A 8 MIL PESAS:

Doentes em hospitais de vários países ajustam a sintonia fina da dosagem da droga

Começam aqui os testes em pessoas – grupos cada vez maiores tomam os remédios. No começo são pessoas saudáveis que checam as reações às drogas. Depois, testes em doentes determinam a eficiência e a dosagem

Fase mercado

Depois de dez anos e 800 milhões de dólares, apenas uma das 10 mil moléculas que começaram o trabalho virou remédio

Os testes não acabam quando a droga chega ao mercado. O laboratório tem que continuar de olho: sabe-se que metade dos efeitos colaterais só é percebida depois

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