Culinária: Ciência ao molho Béarnaise
Quando menos se espera, uma das glórias da cozinha francesas desanda. Os cientistas explicam por que às vezes isso ocorre e por que às vezes não
Maria Inês Zanchetta e Waltraut Helene Lay
À primeira vista parece simples: de fato, não há dificuldade alguma em ferver um punhado de estragão e cebola picada numa mistura de vinagre e vinho até que boa parte do líquido tenha se evaporado. Depois de coada, a infusão volta ao fogo brando e a ela acrescentam-se gemas. Em seguida, já fora do fogo, manteiga derretida, aos poucos e sem parar de bater. Sal, pimenta, umas gotinhas de limão, salsinha picada, e está pronta uma das glorias da cozinha clássica francesa: o molho béarnaise, fino acompanhamento para aves, peixes e, principalmente, carnes grelhadas. Mas, como bem sabem os doutores de forno e fogão, as aparências enganam.
Esse é um dos molhos mais difíceis de fazer. Só quem já se aventurou a prepará-lo conhece as armadilhas escondidas na operação. Pois, mesmo que o cozinheiro não tenha feito nada de errado, a iguaria pode desandar quando menos se espera. A arte de cozinhar, que não é senão provocar reações químicas entre substâncias, tem dessas coisas. Mas aquilo que pode parecer um insondável mistério, como a causa do desastre de uma sauce tão ingênua, se explica pela teoria científica – a rigor, por duas teorias.
O risco está justamente no fato de que o molho béarnaise resulta de coisas que não se misturam como água (contida no vinagre e no vinho) e gordura (da manteiga). Por isso, a mistura pode transformar-se, em questão de segundos, numa espécie não exatamente apetitosa de flutuantes ovos mexidos.
É o que os químicos chamam floculação – isso quando ainda houver alguma chance de recuperar a mistura, por meio de artifícios que os cozinheiros profissionais conhecem bem. Mas, se tais macetes culinários falharem, é porque aconteceu o pior: a chamada coagulação, um fracasso literalmente irreversível.
A tragédia pode ter suas causas no superaquecimento, por puro descuido do cuca – pois o molho exige cozimento em fogo brando, de preferência em banho-maria -, e também nos processos físico-químicos que têm a ver com a composição dos ingredientes usados na receita. Pelas classificações da Química, molhos do tipo béarnaise pertencem à categoria das emulsões ou suspensões coloidais. Ou seja: partículas líquidas de gordura suspensas em outro líquido, no caso, o que resultou da infusão do vinho, vinagre e estragão. Quem se sai bem ao preparar esse molho saiba que conseguiu uma proeza – harmonizar os contrários. O mérito não é só do chef. Às vezes, sem que se dê conta, ele foi ajudado pela interação correta entre partículas de gordura, graças à qual elas se mantêm em suspensão.
Essa interação, que envolve forças de atração e de repulsão, é que assegura estabilidade e consistência a um béarnaise. Qualquer alteração nos ingredientes – na quantidade ou na qualidade – ou no modo de prepará-los pode romper o sutil equilíbrio que determina a intensidade daquelas forças, levando o molho ao lixo. Duas teorias explicam porque uma preparação como essa, fruto de substâncias que não se misturam, pode dar certo – ou não. Uma delas diz respeito às já citadas forças de atração e repulsão.
As forças de atração das partículas, chamadas forças de Van der Waals (VDW) em homenagem a seu descobridor, o físico holandês Johannes Diederik van der Waals (1837-1923), deveriam fazer com que as partículas se aglomerassem. No entanto, isso não ocorre, porque existem forças de repulsão. Elas se originam quando as partículas de manteiga entram em contato com o líquido e recebem a carga elétrica proveniente do ácido acético que contém o vinagre. As partículas de manteiga se comportam como se fossem bolinhas carregadas de eletricidade. Essas cargas, se forem positivas, vão atrair cargas negativas e vice-versa. Em volta de cada bolinha se estabelece, portanto, o que os cientistas chamam de dupla camada elétrica difusa.
Assim, quando elas se aproximam, atraídas pelas forças VDW, suas cargas elétricas interagem criando forças de repulsão – forças de Coulomb, descobertas pelo físico francês Charles-Augustin de Coulomb (1736-1806). Como as partículas estão em agitação, devido ao calor, conseguem se manter equilibradas (ou seja, sem se agregarem) e em conseqüência o molho fica homogêneo. Se, entretanto, ocorrer um superaquecimento, eliminando as cargas elétricas na sua superfície, as partículas de manteiga, em vez de se repelirem, se juntarão – e adeus molho béarnaise.
A segunda teoria baseia-se no efeito emulsificante da lecitina, substância da gema do ovo, numa suspensão de óleo em água. É que a lecitina possui geralmente numa de suas extremidades uma cadeia de átomos de carbono e hidrogênio chamada lipofílica, porque é solúvel em gordura. Logo, o grupo é atraído para dentro das partículas de manteiga. Na outra extremidade há um grupo de átomos chamado polar (eletricamente carregado), que por sua vez é atraído pela água – e essa atração separa para sempre a carga negativa da positiva. No caso do molho béarnaise, as partículas de manteiga são revestidas pela lecitina e a isso os cientistas denominam emulsificação.
Ou seja, a lecitina se orienta de forma que sua extremidade lipofílica se enterre nas partículas de manteiga, enquanto a extremidade polar é atraída pela água. Assim se forma – sempre segundo essa teoria – uma firme superfície carregada ao redor de cada partícula, impedindo sua fusão com as outras. Dessa forma, o molho não desanda. Processo semelhante ocorre com sabões e detergentes no processo de limpeza. Por serem substâncias capazes de interagir com gordura e água, também têm uma extremidade polar e outra lipofílica. Se alguém tentar enxaguar um prato engordurado verá que a gordura se mantém inalterada. Mas, se colocar detergente ou sabão, a gordura sairá na água. Pois a extremidade lipofílica do detergente é atraída pela gordura do prato.
Já a outra extremidade, a polar, se junta com a água – e tudo fica em pratos limpos. De volta ao molho: além da lecitina, a gema do ovo contém colesterol, outro agente emulsificante e um velho desafeto do coração humano. A diferença entre a lecitina e o colesterol é que enquanto a primeira favorece a suspensão do óleo em água, o colesterol, ao contrário favorece a suspensão de água em óleo. Para que as gemas cumpram seu papel no preparo do molho béarnaise, é preciso que a lecitina predomine sobre o colesterol. Para isso é necessário utilizar ovos frescos.
Isso porque, com o tempo de armazenamento, a lecitina se decompõe progressivamente, perdendo suas propriedades. Já o colesterol não se altera. A predominância do colesterol sobre a lecitina faz o molho desandar. Enfim, para evitar pontos de superaquecimento durante o preparo, o ideal é usar uma panela de cobre, que garante calor uniforme, ou uma panela de inox, que obtém o mesmo efeito em banho-maria. Experiências realizadas em laboratório indicam que a temperatura ideal para o cozimento é de 65 graus. A 70 graus, o molho flocula; acima dessa marca, é coagulação na certa. Nesse caso, o recurso é começar tudo de novo – ou mandar buscar uma pizza na esquina.
Para saber mais:
(SUPER número 8, ano 5)
(SUPER número 10, ano 7)
RECEITA DO CHEF JOSÉ
“Não é difícil fazer um molho béarnaise, mas é preciso ter muito carinho”, confidencia o cearense José Pereira de Souza, chef de cuisine do restaurante Le Coq Hardy, em São Paulo, três estrelas no Guia Quatro Rodas. Ele deve saber o que está dizendo: no ofício há dezenove anos, aprendeu em primeira mão, com um francês, naturalmente, os segredos dos pratos e sauces que fazem a fama da cozinha francesa. Sua receita de molho béarnaise:
INGREDIENTES: (porção para 4 pessoas), 2 cebolas roxas, médias, picadas, meio copo de vinho branco seco, meio copo de vinagre de vinho branco. Uma colher (de sopa) bem cheia de estragão, 4 gemas, 180 gramas de manteiga sal e pimenta-branca a gosto, salsinha picada, gotas de limão.
MODO DE FAZER: Mistura-se a cebola com o vinho, o vinagre e o estragão numa panela de cobre e leva-se para ferver em fogo brando até que o líquido se reduza a um quarto da quantidade inicial. Depois de coado, adicionam-se as gemas, ainda em fogo brando, batendo sem parar. Quando estiverem cozidas, isto é, misturadas ao líquido, com a consistência de um creme, tira-se a panela do fogo. Rapidamente, em outra panela, derrete-se a manteiga, que não pode dourar, pois a espuma que ela faz ao derreter se separará do restante – o que será fatal para o molho.
A manteiga deve ser escorrida aos poucos sobre a mistura das gemas com o líquido, sem parar de bater até se obter um creme homogêneo. Caso o molho desande, com a manteiga derretida transformada em pedaços no meio do líquido, basta colocar em outra panela uma colher(de sopa) de água, levar ao fogo brando e ir juntando aos poucos o molho desandado, batendo sempre. O batedor deve ser de arame, em forma de pêra. Então, resta misturar o sal, a pimenta, as gotas de limão, a salsinha picada e levar o molho imediatamente à mesa. O tempo de preparo é de dez minutos. Depois de pronto, o molho não deve ser aquecido ou levado à geladeira.
EM HONRA AO REI
O molho béarnaise tem o nome de quem nasce na região de Béarn, no sudoeste da França – mas ele próprio não nasceu ali. O nome é uma homenagem enviesada a Henrique IV (1553-1610), primeiro rei da dinastia Bourbon e filho ilustre da cidade de Pau, na região de Béarn. A alquimia que envolve o preparo do molho surgiu das mãos hábeis de um certo Collinet, de que só se sabe que era cozinheiro do restaurante Pavillon Henri IV, em Saint-Germain-en-Laye, a noroeste de Paris, por volta de 1830. Talvez inspirado no nome do restaurante, Collinet decidiu honrar o rei, a sua maneira – dois séculos depois de sua morte.