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Geneticistas mapeiam DNA selvagem para usá-lo em “superseringueiras”

O Brasil é a terra natal da seringueira, mas amarga o 10º lugar na produção de borracha. O empurrão que falta? Usar genes da Amazônia para melhorar as árvores de São Paulo.

Por Bruno Vaiano Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 28 jun 2018, 15h01 - Publicado em 28 jun 2018, 11h46

Em 1875, um botânico inglês chamado Henry Wickham passou uma temporada em Santarém, no Pará, e coletou 70 mil sementes de seringueira. A árvore, que na época só crescia na Amazônia, fornece o látex que serve de matéria-prima para a borracha. E borracha, no final século 19, era coisa muito séria para nós: o segundo maior produto de exportação brasileiro, atrás apenas do café.

Não havia uma lei que proibisse visitantes de saírem do país carregando sementes de Hevea brasiliensis. Mas D. Pedro II não era bobo: sabia que se algum espertinho conseguisse plantar a dita cuja com sucesso em outro paraíso tropical, nos acabaríamos perdendo o monopólio da borracha. E paraísos tropicais não faltavam: a Europa estava no auge da expansão imperialista, tomando conta de territórios africanos e asiáticos em ritmo de festa.

O que não podia acontecer, é claro, foi exatamente o que aconteceu. Wickham deu um jeitinho brasileiro na alfândega. Conseguiu uma licença falando que as tais 70 mil sementes eram só uma recordação. Seriam armazenadas em um herbário e usadas em estudos científicos. Chegando em seu país natal, é claro, deu o golpe. Primeiro, plantou tudo em Londres e esperou as mudas nascerem. O clima inglês não é dos melhores para uma árvore equatorial: só 2,6 mil vingaram. Depois, Wickham despachou esses bebês de seringueira para os quatros cantos do Império Britânico, que na época incluía o antigo Ceilão, Singapura e partes da Indonésia.

Deu certo. O clima quente, similar ao da Amazônia, era o que as árvores precisavam. Logo a Ásia virou uma máquina de produzir látex – tudo escoado diretamente para a maior potência industrial da época. Foi assim que o Brasil perdeu o primeiro lugar da borracha mundial. E o segundo. E o terceiro também. Hoje estamos em décimo, e as 190 mil toneladas extraídas em 2016 não deram conta de abastecer nem 35% do mercado nacional. Curiosamente, mais da metade disso vem de São Paulo. Um estado frio e seco em comparação aos do Norte do país, que são o habitat natural da seringueira.

Guerra dos trinta anos

Não é coincidência: incompatibilidades climáticas à parte, é no Sudeste que a vingança contra a borracha asiática está sendo armada. Desde a década de 1970, pesquisadores do Instituto Agronômico de Campinas (IAC) cruzam seringueiras artificialmente em busca da árvore (quase) perfeita: uma que produza muito látex, resista a doenças e pragas agrícolas e, principalmente, que sobreviva nas regiões mais frias do país – o que permite tornar a área de cultivo muito maior que os limites biológicos da espécie.

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Hoje, esse é um processo lento. Muito lento. É preciso pegar duas árvores campeãs de resistência ou produtividade, cruzá-las e aí acompanhar o crescimento das mudas, avaliando os pontos fortes e fracos de cada uma. As seringueiras bebês com mais potencial são identificadas, clonadas, testadas em laboratório, clonadas de novo, distribuídas entre os produtores, avaliadas em diferentes climas e solos e só então são plantadas em larga escala. Uma rodada de seleção artificial é, ao pé da letra, o trabalho de uma vida: leva 30 anos.

A explicação para a demora é óbvia: para descobrir se uma árvore é boa em alguma coisa, ela primeiro precisa crescer. E seringueira nenhuma cresce rápido feito bambu. É aqui que a genética pode entrar em campo e ajudar. Afinal, todo ser vivo vem de fábrica com um manual de instruções guardado no núcleo das células: o DNA. E quem domina a tecnologia necessária para ler esse manual pode descobrir como as seringueiras vão ser antes mesmo delas nascerem – o que torna o trabalho de seleção cerca de três vezes mais rápido. 

É exatamente essa a missão de uma equipe formada por pesquisadores do IAC, da Embrapa e de três universidades públicas paulistas. Em uma dupla de artigos científicos, eles compararam o material genético de 1117 seringueiras selvagens de várias partes do Brasil para ver se elas têm genes que não existem nas seringueiras de São Paulo – e também para descobrir quais regiões do DNA delas são responsáveis por cada uma de suas características importantes.

A ideia aqui, grosso modo, é a seguinte: se um grupo de árvores selvagens que têm uma característica externa parecida também tem um determinado trecho de DNA em comum, então é muito provável que esse trecho esteja associado a essa característica de alguma forma. 

Esse DNA todo não é coletado diretamente da natureza, mas de lugares chamados bancos de germoplasma coleções de sementes e plantas montadas por cientistas ao longo dos anos que servem como “arcas de Noé” botânicas. Algumas seringueiras que estão a salvo nesses bancos são as últimas representantes de populações que já foram queimadas ou desmatadas. Se essas populações continham algum gene especial, útil para o processo de seleção, esse gene só sobrevive nas coleções, e não mais na natureza. 

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A dama e o vagabundo

A análise das seringueiras selvagens deu um ótimo resultado: elas de fato tem muito mais variabilidade genética que as árvores que são cruzadas hoje em Campinas. E mais variedade significa mais matéria-prima para fazer árvores melhores. “Desses mais de 1000 indivíduos nós selecionamos uns 350 ou 400 e fomos ver se eles tinham variabilidade genética suficiente, maior que as dos programas de melhoramento que já existem em São Paulo”, explicou à SUPER Anete Pereira de Souza, da Unicamp. “Descobrimos que esses genes têm muitas versões diferentes na natureza. Essa informação não existia antes.” 

Aqui, uma analogia vem bem a calhar. Imagine as seringueiras paulistas como cães de raça de aparência muito característica, como os salsichinhas. O salsichinha foi criado na Alemanha para caçar texugos. Por isso ele é comprido e baixinho: tem o formato do túnel em que deve entrar. O problema é que, após muitos cruzamentos com um objetivo específico, ele também acabou desenvolvendo problemas crônicos na coluna e no coração. É o preço a se pagar por um funil genético: ele preserva tanto as características boas quanto as ruins.

Já um vira-lata não teve o seu corpo moldado para uma tarefa específica – e justamente por isso ele resiste melhor a muitos dos problemas de saúde que atingem os salsichinhas. As seringueiras originais, que vivem na Amazônia, são grosso modo como vira-latas: elas podem não ser tão boas na tarefa específica de produzir muita seiva em um lugar frio. Mas carregam uma variedade genética muito grande – e nessa salada, com certeza há genes esquecidos que podem se muito úteis para as árvores domesticadas se os cruzamentos forem feitos com cuidado. 

Moral de história? É cruzando damas e vagabundos que o Brasil pode voltar ao mapa da borracha. Nada como um pouco de experiência de vida para ajudar quem foi criado em laboratório.

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