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Império do sal

Ele já foi um artigo precioso, motivou guerras, ergueu impérios e estimulou o comércio entre os povos. Hoje, tempera - e salva - nossas vidas.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h54 - Publicado em 31 ago 2002, 22h00

Uilson Paiva / Marcio Penna

Esteja você num botequim ou à frente da mais refinada mesa, haverá sempre um saleiro ao seu alcance. Pois, acredite, essa substância que hoje temos fartamente à disposição foi um dos bens mais desejados da história humana. Apesar de encher os oceanos, brotar de nascentes e rechear camadas subterrâneas, o sal já foi motivo de uma verdadeira obsessão, desde o começo da civilização até cerca de 100 anos atrás. Sem saber que ele está presente em quase todo o planeta – isso só seria revelado pela moderna geologia –, povos e nações guerrearam por causa dele.

“Em todas as sociedades o sal ganhou um valor que excedia em muito o contido em suas propriedades naturais”, escreve o jornalista e ex-chef de cozinha americano Mark Kurlansky no livro Salt – A World History (Sal – uma história do mundo, ainda inédito no Brasil), uma bem temperada análise da influência dessa substância na trajetória da raça humana. A obra mostra como o sal esteve presente em alguns dos mais importantes momentos da humanidade, da Pré-História à Revolução Industrial.

Sem ele, adeus a vida

Quimicamente, a definição de sal é bem simples: trata-se de uma substância produzida pela reação de um ácido com uma base. Como há muitos ácidos e bases, há vários tipos diferentes de substâncias que podem ser chamadas de sal. O que chamamos popularmente de sal de cozinha, ou simplesmente sal, é o cloreto de sódio – formado a partir da reação do ácido clorídrico com a soda cáustica. A principal fonte dessa substância é a água do mar, porém ela também pode ser encontrada em jazidas subterrâneas, fontes e lagos salgados.

Além de cair bem ao nosso paladar, o sal é uma necessidade vital. Sem sódio, o organismo seria incapaz de transportar nutrientes ou oxigênio, transmitir impulsos nervosos ou mover músculos – inclusive o coração.

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Um corpo adulto tem, em média, 250 gramas de sal. Mas, como o perdemos constantemente, pela urina, pelo suor ou pelas lágrimas, é essencial repô-lo. Curiosamente, a deficiência de sal não dá um aviso claro – como a falta de comida, que causa fome. Por um mistério da fisiologia humana, ninguém sente um incontrolável desejo por sal. A carência, que pode até matar, manifesta-se em dores de cabeça, fraqueza e náusea. De qualquer forma, o homem aprendeu a reconhecer esses sinais e sempre buscou complementar sua alimentação com sal.

Aonde a vaca vai…

Os outros animais também precisam de sal. Como uma quantidade da substância é retida no organismo deles, povos primitivos que viviam basicamente da caça ou do pastoreio não necessitavam suplementar sua dieta com sal.

A situação mudou quando as comunidades se assentaram, desenvolveram a agricultura e uma alimentação mais rica em vegetais – pouco generosos em cloreto de sódio. Os rebanhos passaram, então, a ser guias do homem na procura da substância. Vacas, estima-se, consomem dez vezes mais sal que humanos. Segui-las era um método eficiente para chegar às fontes salinas.

A arqueologia revela o apreço de civilizações antigas pelo sal. “Não há melhor comida que vegetais salgados”, diz um papiro achado no Egito. Os egípcios, aliás, também foram pioneiros no uso do sal para conservar a carne.

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O Sal e o poder

Sem o sal, não seria possível estocar uma série de alimentos em um mundo sem geladeiras. Altas concentrações salinas inibem a proliferação de microorganismos na comida, conservando-a em boas condições de consumo por um tempo bem maior. Por esse motivo, o sal passou a ser indispensável em qualquer sociedade que pretendesse ter uma reserva de mantimentos. E, por isso, ele passou a ter valor de moeda.

Os chineses foram os primeiros a encarar a produção de sal como um negócio de grandes proporções. Desde o século XIX a.C., eles obtinham cristais de sal fervendo água do mar em vasilhas de barro. Essa técnica se espalharia pelo mundo ocidental e, um milênio depois, no Império Romano, ainda seria a mais disseminada. Quando o mar estava longe, o jeito era cavoucar a terra em busca do sal. Foi o que fizeram os celtas, os inventores da mineração de sal-gema. Segundo os registros arqueológicos, procuravam o sal sob o solo já em 1300 a.C.

O sal logo virou alvo da cobiça dos governantes, que passaram a tributar o comércio e a produção e a arrecadar grandes somas de dinheiro. Em várias civilizações, a extração de sal era monopólio estatal.

De tão essencial, o direito ao sal chegou a ser garantido pelo Estado. Os romanos, apesar de não manterem monopólio sobre o sal, subsidiavam seu preço para garantir que os plebeus tivessem acesso a ele. “Sal para todos” era um lema romano. Foi nessa época que surgiu a palavra “salada”, pois havia o costume de salgar os vegetais para amenizar o amargor de alguns deles. A ausência do saleiro numa mesa romana era um sinal de inimizade.

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Da mesma forma que deveria estar disponível para o cidadão comum, o sal era imprescindível para os legionários que conquistavam e mantinham o gigantesco império. Tanto que os soldados chegavam a ser pagos em sal, de onde vêm as palavras “salário”, “soldo” (pagamento em sal) e “soldado” (aquele que recebeu o pagamento em sal).

O sal, que Platão chamava de “uma graça especial dos deuses”, figura com freqüência nos rituais religiosos desde a antigüidade. Para os judeus, ele simboliza a eterna aliança de Deus com o povo de Israel. Na sexta à noite, os seguidores do Judaísmo molham o pão do sabá em sal.

Na liturgia católica, o sal do batismo é associado à longevidade e à vida eterna. Há indícios históricos de que esse ritual tenha raízes anteriores ao surgimento do Cristianismo. Em algumas regiões da Europa, já era hábito colocar sal na língua dos recém-nascidos com a intenção de purificar e proteger os bebês.

Mas a importância do sal para os católicos extrapolou o âmbito ritual – o produto passou também a significar lucro. Na Idade Média, monastérios eram localizados ao lado de minas de sal. Sob a direção da Igreja, esse negócio espalhou-se pela Europa, sobretudo nos Alpes, na Baviera e na Áustria.

Muitas cidades surgiram próximas de campos de extração salina – Roma é um exemplo. Já Veneza, que era um Estado independente e não produzia sal, deve boa parte da sua beleza aos lucros com a intermediação do comércio do produto. Outro centro urbano que prosperou graças ao negócio salineiro foi Salzburgo – em português, cidade do sal –, na Áustria. Nos arredores da cidade, há enormes jazidas de sal-gema que já eram exploradas pelos celtas na Idade do Ferro. E bem longe dali, na China, foi o dinheiro do sal que possibilitou ao governo construir a grande muralha.

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Hora do lanche

Mas, e a comida? Era de esperar que a produção do sal desse origem a verdadeiras maravilhas gastronômicas ao longo dos tempos. Os antigos chineses, por exemplo, inventaram vários condimentos salgados para realçar o sabor da comida à mesa – eles não tinham o hábito de jogar sal puro nos pratos prontos. O molho de soja, figurinha fácil até hoje nos restaurantes orientais, era um desses temperos.

Carnes e peixes curados, muitos deles artigos de luxo nos dias atuais, surgiram da necessidade de transportar alimentos em viagens longas. O comércio de peixe salgado enriqueceu nações e possibilitou as explorações marítimas de ingleses, espanhóis e portugueses. Os últimos caíram de amores pelo bacalhau salgado, hoje o alimento mais importante da culinária lusitana.

A abundância do produto ao longo do território francês facilitou o nascimento de 265 tipos de queijo. Na verdade, tudo o que os produtores queriam era preservar o leite adicionando sal. Mas os queijos foram surgindo casualmente, com as variações de clima e do manejo dos ingredientes. Da mesma forma, graças ao sal vieram ao mundo os vários tipos de presunto e salame.

Supertições bem temperadas

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Uma série de crendices também esteve relacionada ao sal. Na Europa Medieval prestava-se muita atenção à maneira como se manipulava essa substância. A etiqueta recomendava que o sal fosse tocado com a ponta da faca – jamais pelas mãos humanas.

Judeus e muçulmanos acreditam, ainda hoje, que o sal protege contra o mau-olhado. Preceitos judaicos determinam que ele seja manipulado apenas pelos dedos médio e anular. A crença reza que, se um homem utilizar o polegar, suas crianças morrerão; se usar o mínimo, ficará pobre; se escolher o indicador, virará um assassino.

Além disso, o sal esteve sempre relacionado à fertilidade no imaginário popular. Isso, segundo Mark Kurlansky, provavelmente se originou da observação de que os peixes do mar têm mais filhotes que os de água doce. Acreditava-se também que os ratos poderiam se reproduzir sem sexo, só com um pouco de sal. A origem desse mito era a velocidade espantosa com que crescia a população de roedores nos navios carregados com a mercadoria.

A tentativa de garantir a fertilidade perpetuou, nos Pirineus, o costume de estimular os noivos a irem para a igreja com sal no bolso esquerdo. Dizia-se que a simpatia protegia contra a impotência.

Sal no chá dos ingleses

O chá rendeu riquezas para a Inglaterra, mas também deu-lhe dor de cabeça. No século XIX, mais da metade da Índia era governada pela East India Company, empresa a quem o governo britânico delegava autoridade total. Entre outros desmandos, os lucros do sal produzido na região se destinavam única e exclusivamente aos ingleses.

O ativista indiano Mahatma Gandhi resolveu, então, liderar uma campanha pela independência – e o sal acabou se tornando um dos pretextos para a união do povo dominado. Afinal, todos comiam sal, independentemente da casta de origem. A única exceção era o próprio Gandhi, que se abstinha do tempero havia seis anos em sinal de rebeldia.

Ele teve a idéia de liderar uma caminhada com 78 seguidores para coletar sal de uma mina. Foi uma clara manifestação de desobediência à lei dos ingleses, os únicos que podiam coletar e manipular o produto. Para Ghandi, o simples gesto de tocar em sal quebraria simbolicamente o monopólio inglês.

Depois de 25 dias de caminhada, o mártir hindu já era seguido por milhares de pessoas. Ao chegarem ao destino, elas seguraram o sal entre os dedos e foram presas, o que só alimentou a revolta popular. Em uma semana, o movimento ganhou dimensão nacional e o sal pôde ser vendido abertamente nas ruas.

A pressão continuou até que os indianos do litoral ganharam autorização para coletar sal – desde que para uso próprio. Quando os ingleses propuseram sentar à mesa e selar o acordo com chá, Gandhi, vitorioso, aceitou. Mas pediu sua bebida com água, limão e… uma pitada de sal.

Quebrando o gelo

A geologia moderna – que facilitou a prospecção do sal-gema – e a modernização das salinas derrubaram os preços do sal no século passado. A chegada da comida enlatada e, principalmente, da refrigeração, reduziram drasticamente a demanda na indústria de alimentos. Ainda assim, a produção mundial é, hoje, de 210 milhões de toneladas por ano. Os Estados Unidos são responsáveis por 20% desse total, à frente de China, Alemanha, Canadá e Índia.

É na terra do Tio Sam que fica uma das regiões mais ricas do mundo nesse mineral. Salt Lake City, capital do Estado de Utah, está à beira de um dos maiores lagos salgados do planeta. Sorte dos americanos, que precisam do sal para muito mais do que para temperar guloseimas. Menos de 10% do sal que os Estados Unidos produzem é de mesa, aliás. A grande fatia – cerca de 50% – serve para derreter a neve das estradas no inverno.

Hoje, graças à tecnologia, contam-se pelo menos 14 000 utilidades para o sal, sobretudo na indústria farmacêutica. Muitas pesquisas relacionam problemas de pressão alta ao alto consumo de sal, mas ele não é o demônio que pintam. Usado em doses moderadas ou prescrito pelos médicos, o sal só faz bem. O iodo, adicionado ao produto refinado, previne doenças. E estudos mostram que o cloreto de sódio é benéfico para quem sofre de reumatismo.

Sem contar sua utilidade nas emergências. O que seria de um acidentado sem aquela garrafinha de soro fisiológico? Pesquisas recentes, algumas delas feitas no Brasil, empregam soluções salinas ainda mais concentradas que o soro nos momentos seguintes à internação de quem perdeu muito sangue. Cientistas da Universidade de São Paulo (USP) e do Instituto do Coração de São Paulo descobriram que o “salgadão”, como é chamado esse supersoro, controla arritmias cardíacas e reduz as lesões por falta de oxigênio no cérebro.

“Nem sempre se valoriza o que realmente faz diferença no dia-a-dia”, diz Mark Kurlansky. Hoje, pode até ser o caso do sal, que dificilmente freqüenta um bate-papo num boteco ou num restaurante três estrelas. Mas uma coisa é certa: sem ele, o mundo teria bem menos graça. Seria assim… meio “sem sal”.

Para saber mais

NA LIVRARIA
Salt – A World History, Maré Kurlansky, Walker & Co, 2002

Imagem: GettyImages

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