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Inferno no gelo

A trágica história da expedição canadense que naufragou no Ártico em busca de um continente escondido entre o Alasca e o Pólo Norte

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h51 - Publicado em 31 mar 2001, 22h00

Fennifer Niven

A expedição canadense a bordo do Karluk tinha tudo para ser a mais grandiosa viagem ao Ártico da história. Pela primeira vez um brilhante grupo de cientistas havia sido reunido com a missão de encontrar evidências de um continente escondido entre o Alasca e o Pólo Norte. O líder da empreitada, Vilhjalmur Stefansson, era famoso por seus estudos sobre a vida dos esquimós e escolhera a dedo os integrantes da equipe. Concentrado em seu ambicioso projeto, Stefansson planejara exaustivamente cada detalhe científico – embora não parecesse estender a mesma preocupação a outros aspectos práticos da viagem, como treinar os homens para sobreviver no Ártico ou cuidar da segurança do navio. O capitão do Karluk, o experiente navegador no gelo Robert Bartlett, não conseguiu disfarçar seu receio ao saber que a embarcação não passava de um velho baleeiro de madeira condenado por um especialista naval – que a julgou insegura como cargueiro, quanto mais como quebrador de gelo.

Bartlett havia estado no leme do navio Roosevelt com o almirante Peary, na primeira expedição ao Pólo Norte, em 1908, e conhecia a força do inverno ártico. Quando soube que a maioria da tripulação era formada de cientistas que nunca tinham colocado os pés naquela região, ficou ainda mais receoso. Mas seus temores não foram suficientes para desencorajá-lo. Comandando o Karluk, zarpou de Victoria, na Columbia Britânica (ao lado de Vancouver, Canadá), no dia 17 de junho de 1913.

Pouco menos de um mês após a partida, no início de agosto, o tenebroso inverno ártico começou a dar sinais de que seria inclemente. O Karluk margeava, por essa época, a calota polar e o som do gelo contra o casco era uma espécie de urro sinistro, contínuo, ensurdecedor. Estava claro que a proa do navio era fraca demais para poder penetrar no gelo. A condição do tempo piorava a cada dia e não demorou para que o Karluk ficasse paralisado no centro de uma vasta banquisa. Impaciente e decidido a tudo na sua busca do último continente, Stefansson resolveu deixar o navio com alguns homens dizendo que partiria numa caçada. O grupo já estava em terra há algum tempo quando uma forte tempestade empurrou a embarcação para o meio do Oceano Ártico, eliminando qualquer possibilidade de Stefansson e seus homens voltarem a bordo. O capitão Bartlett não se surpreendeu com o desfecho da atitude do líder da expedição. Nunca esperara mesmo ver Stefansson novamente. A partir daquele momento, o Karluk estava em suas mãos.

Havia 25 pessoas a bordo – 22 homens, incluindo dois caçadores esquimós que tinham se juntado à expedição em Point Barrow, Alasca, com a esposa e duas filhas de um deles. Todos estavam aterrorizados diante da perspectiva de o navio ser esmagado pelo gelo. Com o passar dos meses, a tragédia parecia iminente. Bartlett advertiu a tripulação: “Por volta do dia 10 de janeiro deveremos ter grandes problemas”. Era a data da próxima lua cheia, quando o navio ficaria mais suscetível às correntes da maré do Oceano Ártico.

Poucos minutos antes das cinco da manhã daquele dia, a tripulação acordou com um barulho parecido com o de um tiroteio. De repente, o Karluk estremeceu com violência. A brecha na superfície do gelo, a estibordo, alargou-se em todas as direções. O navio começou a levantar-se, sacudido e empurrado. O deque do Karluk, que, até então, mantinha-se 5 centímetros acima do gelo, levantou-se até atingir 25 centímetros. Quando ficou 33 centímetros mais alto que o passadiço, o navio começou a adernar perigosamente a bombordo (o lado esquerdo da embarcação, considerando a proa como sua frente), inclinando uns 25 graus. Bartlett fez com que a tripulação tomasse todas as precauções para amenizar o impacto da perda do navio. Eles não estavam equipados para sobreviver no mundo gelado que os aguardava fora do Karluk sobre o oceano congelado. Por volta de 18h45, houve outro estrondo. A água jorrava para dentro do casco e Bartlett foi obrigado a dar a ordem que todos temiam: “Abandonem o navio”.

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Durante esse tempo os esquimós haviam construído duas casas no gelo para servir de abrigo provisório para a tripulação. Quando o navio começou a afundar, o capitão colocou na vitrola que havia retirado da embarcação a Marcha Fúnebre, de Chopin. O Karluk afundou rápida e graciosamente, com a bandeira canadense tremulando até o final. Mesmo sabendo desde o início que o navio estava condenado, o capitão não pôde evitar as lágrimas.

“Adeus, velho camarada”, disse.

Então, veio o caos. Os homens e até os cães dos trenós pareciam em pânico. Todos os sentimentos de paz foram arrastados para o fundo do oceano junto com o navio. Assim como o Karluk, o abrigo provisório sobre o gelo logo desapareceria com a chegada da primavera. Era preciso caminhar para a terra mais próxima, a desabitada e inóspita Ilha Wrangel, cerca de 130 quilômetros ao sul de onde eles estavam , A possibilidade de encontrar ajuda para um resgate estava ainda bem mais longe. Na Sibéria. Como Bartlett sabia que a maioria da tripulação estava fraca demais para sobreviver a uma viagem dessas, resolveu levar todos até a Ilha Wrangel, de onde iniciaria sua viagem de 320 quilômetros até a costa da Sibéria. Em busca de ajuda, teria que percorrer mais 800 quilômetros sobre o deserto siberiano.

Até a ilha foram duas semanas de penosa caminhada. Alguns pensaram que jamais pisariam em terra firme novamente e quando, por fim, conseguiram sentir a terra por baixo da neve, muitos choraram. Selvagem, rochosa e cheia de montanhas, a Ilha Wrangel situa-se a 720 quilômetros do Alasca e a 320 quilômetros da costa siberiana. A tripulação estava acompanhada apenas dos ursos polares e das focas, que ficavam longe da praia. Antes de partir, Bartlett dividiu os homens em quatro grupos e deu instruções para que cada um deles instalasse um acampamento em áreas diferentes. Pediu que cada tripulante escrevesse uma carta curta para a família e prometeu que as entregaria assim que pudesse. Seu único companheiro de viagem seria o jovem esquimó Kataktovik, com quem dividiria a responsabilidade de cuidar dos cães, do trenó e das rações alimentares para 60 dias.

Depois da partida do capitão, o acampamento foi tomado por um sentimento de enorme solidão. Os homens tentavam não pensar no que aconteceria se Bartlett não chegasse até a Sibéria. Na noite do nono dia de viagem sob o gelo, Bartlett pegou a luneta e apontou-a para uma sombra no horizonte. Tinham finalmente avistado a Sibéria, nome que significa “terra que dorme”. Era, sem dúvida, a mais fria e selvagem região habitada do hemisfério norte, com temperaturas de 32ºC negativos e aterradoras tempestades de gelo. Depois de passarem uma noite com o primeiro nativo que encontraram, eles continuaram sua peregrinação, parando de vez em quando para tomar chá nas casas que surgiam pelo caminho. Numa delas, Bartlett soube que um navio baleeiro estava próximo do Alasca e era comandado por um homem chamado Pedersen. Pela descrição que lhe fizeram, Bartlett achou que devia ser o primeiro capitão que Stefansson havia contratado para comandar o Karluk, antes de chamá-lo para assumir o cargo.

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Quando soube que outro navio, o Bear, também estava na região, ficou ainda mais confiante no resgate. O Bear era um resistente navio americano que já tinha participado de um resgate no Ártico, em 1883. O próximo passo seria convencer o capitão a levá-lo consigo para salvar seus homens.

Com a ausência de Bartlett, tudo o que havia de pior em cada homem começou a aflorar no acampamento da Ilha Wrangel. O encarregado do comando da tripulação era o chefe das máquinas, John Munro – embora Bartlett preferisse William McKinlay, um jovem professor de matemática e ciências de 24 anos. Como ele não tinha nenhum cargo oficial no navio, não pôde assumir o comando. Nem mesmo era um explorador, apesar de seguir com avidez as explorações e os feitos dos expedicionários da época. O capitão logo percebeu que ele seria de grande valor no acampamento. E McKinlay provou sua coragem mais de uma vez, juntando forças para ajudar a manter alta a moral dos homens. Em agosto de 1914, quando mais um inverno ártico se aproximava, a situação dos náufragos era sombria e rapidamente tornou-se desesperadora. A caça diminuía e vários homens tinham morrido de uma doença misteriosa. Não havia nem sombra de um navio de resgate no horizonte. A maioria gastava a sua reduzida energia disputando alimentos.

O único pensamento de todos era: “Quando um navio virá nos resgatar? Será que virá?”

Todo os dias um dos homens subia ao topo de uma colina e esquadrinhava o horizonte com o binóculo, esperando ver a fumaça de algum navio. A esperança parecia nunca morrer. Mas a resposta sempre era: “Não, nenhum navio ainda, companheiros”. A tripulação estava desistindo de esperar por ajuda. Todos admiravam o capitão, mas não podiam desprezar a hipótese de que Bartlett tivesse morrido em sua travessia no gelo. Como imaginar que ele estava a caminho?

Depois de encontrar o navio Bear, Bartlett logo convenceu o capitão Cochran a navegar na direção dos náufragos na Ilha Wrangel. No dia 24 de agosto de 1914, ele estava apenas a 32 quilômetros do objetivo. Foi quando ventos fortes varreram o Bear para longe, na direção da costa da Sibéria. No dia 27 de agosto, a embarcação viu-se obrigada a voltar para o porto mais próximo a fim de reabastecer com mais carvão. Desesperado, Bartlett aproveitou a parada de reabastecimento para pedir ao capitão da pequena escuna King and Winge que passasse na ilha e procurasse os homens do Karluk. O capitão Swenson se comprometeu a tentar resgatar os sobreviventes. E cumpriu sua palavra.

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No terceiro dia depois de embarcar do porto Nome, onde havia prometido ajudar Bartlett, Swenson já podia avistar as montanhas da Ilha Wrangel. Ele e seus homens não sabiam o que encontrariam lá. Estavam quase com medo de saber. Alguém teria sobrevivido? Depois de procurarem sinais de vida, finalmente avistaram uma barraca rasgada. Não encontraram nenhum outro artefato, até que viram algo que paralisou por algum tempo os seus corações: uma cruz de madeira. Atrás dela, um mastro de bandeira. Era um sinal chocante de vida. E de morte. A 800 metros da costa, dispararam foguetes e tocaram o apito do navio. Ninguém apareceu. Por fim, a barraca foi aberta. Um dos sobreviventes saiu de lá sem demonstrar nenhum sinal de alegria ou emoção. Não sacudiu os braços nem gritou. Outros dois homens saíram da barraca e os três ficaram juntos observando o navio, paralisados, como se não estivessem acreditando no que viam.

Quando Swenson ficou frente a frente com os três sobreviventes, um deles avançou com a mão estendida. “Eu não sei quem vocês são”, disse. “Mas estou incrivelmente feliz em vê-los.” Outro perguntou se eles tinham médico a bordo. “Você não precisa de médico”, disse Swenson. “Precisa de um cozinheiro.” Depois de recolher os outros homens que haviam ficado nos outros acampamentos, os sobreviventes devoraram uma farta refeição e ficaram sabendo que quase toda a Europa estava em guerra. Mas as notícias perturbadoras pareciam “não significar nada”, como relatou McKinlay, o jovem professor de ciências, em suas memórias. Naquele momento, comparada ao resgate deles, a guerra parecia um problema pequeno para os homens do Karluk.

No dia seguinte, já em alto-mar, foram avistados pelo Bear. Quando encontraram o capitão Bartlett, deram três vivas e começaram a contar as novidades. Bartlett não conseguia disfarçar a emoção. Estava finalmente frente a frente com aqueles homens que não via desde março. “Estão todos aqui?”, foram suas primeiras palavras. “Não, senhor”, respondeu McKinlay. Bartlett estudou o grupo com os olhos, examinando cada rosto esquelético. Notou que pelo menos oito membros de sua tripulação não estavam lá. O capitão baixou os olhos, em silêncio. Não havia nada a dizer.

Todos foram então transferidos para o Bear. O navio tinha um médico a bordo, além de contar com roupas e outros suprimentos. Os sobreviventes dormiram entre os mais finos lençóis, os primeiros em mais de um ano. Depois de examinar cuidadosamente cada um dos homens, o médico deduziu que a doença misteriosa que teria causado a morte de alguns náufragos era nefrite, inflamação dos rins causada pelo excesso de proteína e gordura na dieta. Sem carboidratos, com o fim dos biscoitos para equilibrar o consumo de proteína, eles também não durariam muito.

Os homens do Karluk haviam sido dados como mortos há muito tempo e, mesmo em meio à cobertura da guerra, a imprensa internacional voltou sua atenção para o resgate dos sobreviventes da expedição que zarpara em junho de 1913 em busca de um continente Ártico jamais encontrado. Assim como os outros sobreviventes, William McKinlay não sabia o que o mundo reservava para ele dali para a frente. Terminou unindo-se aos irmãos ao alistar-se na Primeira Guerra Mundial. Mesmo depois de ter sido ferido e dispensado da batalha, em 1917, ele tinha certeza de uma coisa: o pior já havia passado.

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Jennifer Niven é autora do livro The Ice Master (O Mestre do Gelo), a ser lançado no Brasil este mês pela Editora Alegro com o nome Karluk.

Frase

“Nem todos os horrores da guerra poderiam apagar as lembranças daquele ano no Ártico”

William McKinlay, professor de ciências e tripulante do Karluk

Entrando numa fria

Quando o Karluk foi preso e esmagado pelo gelo, a tripulação teve que caminhar sobre o Ártico

1. Junho de 1913

Depois de zarpar, o Karluk segue rumo ao norte pela costa do Alasca

2. Agosto de 1913

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Preso em uma banquisa de gelo, o návio fica à deriva e é arrastado pelas correntes

3. Janeiro de 1914

Com o Karluk esmagado pelo gelo, a tripulação é obrigada a caminhar sobre o oceano gelado até a Ilha Wrangel

4. Março de 1914

O capitão Robert Bartlett começa sua caminhada de 1 120 km até a Sibérica

5. Maio de 1914

Bartlett finalmente chega ao Alasca de onde pertirá o resgate de seus homens

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