Machu Picchu: viagem ao passado da América
Nosso repórter sobe os Andes e chega ao coração de Machu Picchu pela trilha inca, uma misteriosa rota de 700 anos
Não importa o que o passageiro bebeu durante a viagem. Quem aterrissa em La Paz, sede do governo boliviano, desce do avião meio grogue, devido ao ar rarefeito. Que o diga Alceu Nunes, diretor de arte da Super e protagonista desta aventura, que começa a 3.600 m acima do nível do mar, na capital mais alta do mundo. “É uma sensação estranha, uma tontura… o chão parecia longe”, diz. Em alguns casos, os sintomas da altitude podem evoluir para náuseas, enjôos e diarréias, mas não foi o caso de Alceu, que logo estava passeando pela cidade. La Paz, apesar da altitude, fica no fundo de um vale e sua paisagem impressiona. Não só pela neve que cobre os picos ao redor, mas também pela pobreza que sobe os morros. A cidade, no entanto, era apenas passagem para o verdadeiro objetivo da viagem: as ruínas incas de Machu Picchu, no Peru, uma das cidades mais intrigantes do globo e o principal sítio arqueológico do continente.
Os pesquisadores não sabem dizer ao certo o que foi Machu Picchu e poucos turistas imaginam o que encontrarão lá. As expectativas dos visitantes variam de discos voadores até portais para outras dimensões. Mas a cada dia cresce o número dos que vão ao lugar por uma razão mais prática: o medo de que o local desmorone. Tudo graças à notícia, divulgada em março de 2001, de que a cidade-santuário pode estar prestes a desaparecer. Segundo geólogos da Universidade de Kioto, Japão, as ruínas se movem 1 cm por ano em direção a um abismo. Esse movimento – que em termos geológicos é considerado muito rápido – pode levar a qualquer momento a uma reação em cadeia que destruiria a cidade por completo. Alceu, que sonhava com Machu Picchu desde os tempos em que vendia artesanato em feiras hippies na adolescência, não poderia deixar de visitar a meca dos esotéricos e místicos.
Era preciso chegar lá rapidamente e da forma mais interessante: pela caminhada de quatro dias na famosa trilha inca, uma das grandes rotas de peregrinação do mundo.
De La Paz, outro avião até Cuzco, no Peru, a cidade mais antiga das Américas, tão velha que é difícil saber exatamente quando foi construída. Parece estranho que não se conheçam detalhes tão cruciais de uma das maiores cidades incas, mas a principal razão dos mistérios desse povo é que eles não tinham escrita e grande parte do seu legado se perdeu. Além disso, muitas das histórias registradas foram modificadas pelos espanhóis ou pelos próprios governantes nativos. Os arqueólogos acreditam que a região é habitada desde 3000 a.C. e que, por volta de 1000 a.C., já existia por ali um povoado fixo. Cuzco cresceu entre os séculos XI e XII, quando se tornou a capital inca. Em 1532, ano em que os espanhóis chegaram à região, ela era o centro religioso, político e cultural de um império que se estendia entre o norte do Equador e a região central do Chile, composto por mais de 12 milhões de pessoas. Em suas ruas começavam todas as estradas e dali saíam os exércitos para conquistar os demais territórios.
Os conquistadores europeus, que tiveram a sorte de chegar na região em um momento de crise política, só conseguiram derrubar esse império depois de 40 anos.
Cuzco guarda até hoje rastros das civilizações pré-colombianas. A base de muitas casas são as paredes incas feitas com pedras perfeitamente encaixadas e sem argamassa, sobre as quais ergueram-se construções em estilo colonial espanhol. O quíchua, a língua dos incas, ainda é falado nas ruas por muitos moradores. Cuzco é um lugar de ruas estreitas, habitantes bem-humorados e garotos de bochechas vermelhas que abordam os turistas para pedir dinheiro: “Un sol, amigo!” Sol é o nome da moeda peruana.
“Com a desculpa de me preparar para a subida a Machu Picchu, fiz um passeio por uma região próxima a Cuzco chamada Vale Sagrado”, diz Alceu. O nome é uma referência à enorme quantidade de templos, palácios, fortalezas e santuários incas e pré-incas que se encontram por ali, ao redor do Rio Urubamba, que, milhares de quilômetros depois, se junta a outras correntes de água para formar o Rio Amazonas. As ruínas deixam entrever uma arquitetura sofisticada. O lugar está repleto de crianças com roupas coloridas típicas da região, vendendo folhas de hortelã para cheirar ou se oferecendo para posar para fotos em troca de algumas moedas. O que mais impressiona são os terraços que os incas construíam para plantar. Era uma sofisticada tecnologia agrícola que incluía camadas de terra, pedregulhos e adubo para aumentar o rendimento da plantação e permitia plantar nos muitos terrenos inclinados – mas férteis – da região, alguns deles em altitudes de até 5.000 m.
Chega o momento de começar a peregrinação a Machu Picchu. O ônibus sai de Cuzco e leva Alceu, nove outros brasileiros e mais dois guias – um brasileiro e um peruano – até o começo da trilha, o quilômetro 88 da estrada de ferro para o Vale Convención. No caminho, uma pausa para contratar um chefe de cozinha e carregadores que levassem as barracas, refeições e demais equipamentos da viagem. Os guias escolhem dez entre os mais de 30 homens que se empurram para conseguir a vaga. Pelas normas do governo peruano, nenhum carregador pode levar mais de 25 quilos. A medida distribui o dinheiro e a comida dos turistas entre um número maior de peruanos e evita os abusos de quando esses trabalhadores erguiam até 40 quilos nas costas durante os quatro dias de caminhada.
Caminhar os 12 km do primeiro dia de trilha é fácil e agradável. Mulheres vestidas em trajes típicos vendem comida e souvenirs ao longo do caminho e não cobram para posar para fotos. Elas estão presentes em toda a trilha, mas o preço dos quitutes aumenta à medida que os viajantes avançam pelo caminho. No final, já estão custando o dobro. Outra distração são os carregadores, que pedem passagem com o seu cheiro forte e respiração ofegante e passam velozmente com suas enormes bagagens. A facilidade com que sobem é explicável: apenas as pessoas que nasceram na altitude, ou que se mudaram para lá ainda pequenas, conseguem se acostumar totalmente com o ar rarefeito. Os demais devem se contentar com a fadiga enquanto avançam sobre o chão de terra batida. A paisagem andina é um espetáculo, com picos cobertos de neve e lhamas paradas na beira da estrada. Por volta das quatro e meia, a excursão chega às ruínas de Wayllabamba, onde o grupo almoça arroz, frango e batata.
As batatas são o principal legado dos incas para a humanidade. Acredita-se que elas eram cultivadas naquela região há mais de 1 800 anos e que os espanhóis, impressionados com o novo alimento, trataram de espalhá-lo ao redor do mundo. “A qualidade da comida surpreendeu. Naquele fim de mundo, longe de qualquer estrada, eu não esperava grande coisa, mas o sabor era ótimo”, diz Alceu. O jantar, sopa também de batatas, é servido 5 km adiante. “Foi quando percebemos que toda refeição por lá tinha coentro”, diz Alceu, repuxando o rosto. De barriga cheia, resta entrar nas barracas montadas pelos carregadores ou se maravilhar com o céu estrelado dos Andes.
O dia seguinte começa às seis da manhã com uma caneca de chá de coca, chamado pelo guia peruano de “chá acordador”. Cada dose possui menos de 5 miligramas de cocaína – uma quantidade pequena demais para produzir os efeitos da droga. Mesmo assim, a bebida é um santo remédio para sair da barraca no frio matinal e aliviar os efeitos da altitude. Tomá-la no segundo dia, o mais difícil da viagem, é essencial. Alceu e sua trupe têm pela frente uma assustadora ladeira de 10 km, que sobe mais de 1.000 m de altura. É possível ver a maior parte do percurso a ser vencido a partir do acampamento, no fundo do vale. O objetivo é chegar aos 4.200 m de altitude de Warmiwanusqa, o ponto mais alto do trajeto. Depois de um chocolate quente e um pão com biscoito, é hora de enfrentar a montanha.
A caminhada fica mais difícil à medida que a excursão avança ladeira acima. A falta de oxigênio obriga a parar para recuperar o fôlego a cada meia dúzia de passos. A baixa pressão, no entanto, deixa mais fácil inspirar e expirar o ar. “O esforço seca a garganta. É preciso tomar água de minuto em minuto”, diz Alceu. Depois, achar um banheiro é muito fácil: moitas não faltam à beira da estrada. Não é a maneira mais confortável de se aliviar, mas a paisagem torna agradável até esses momentos difíceis. Tomar banho, sim, é complicado. Alguns lugares oferecem chuveiros aos turistas, mas o mais comum é se lavar apenas com um pano molhado ou encarar os córregos da região, com a temperatura peculiar das águas vindas do degelo das neves andinas. “Eu, por exemplo, tomei banho no rio e quase fiquei congelado”, diz Alceu.
Aos poucos, o grupo vai chegando às redondezas do templo de Runkuraqay, o local do segundo acampamento. A subida deixou todos exaustos e só resta a eles mergulhar em seus sacos de dormir. O espetáculo, dessa vez, é o gigantesco pico nevado que aparece através da porta da barraca.
O terceiro dia começa com o tradicional chá de coca e uma surpresa. O cozinheiro, trajando um uniforme de mestre-cuca, preparou panquecas cobertas com doce de leite para o café da manhã. O jantar nesse dia também é diferente: pimenta recheada. “Ninguém avisou, mas o negócio queimava a goela”, diz Alceu. O cozinheiro se esforça para que o grupo reponha a energia gasta com a caminhada, mas o seu empenho não é suficiente: Alceu, por exemplo, perdeu 8 quilos. Quatro durante a trilha e outros três em exercícios preparatórios. O quilo restante ficou por conta de uma infecção intestinal que só deu o ar da graça no Brasil (quando voltou ao trabalho, Alceu estava, de fato, saradíssimo, para inveja dos colegas de cintura mais aquinhoada). Pelo jeito, caminhar até Machu Picchu deixa não só o espírito, mas também o corpo mais leve.
O caminho começa a mudar a partir do terceiro dia. A vegetação rasteira dá lugar a uma floresta tropical, com enormes árvores, cipós, orquídeas e diversos tipos de pássaros. O que mais impressiona, no entanto, são as calçadas e escadas que cobrem o caminho a partir desse ponto. São as mesmas estradas incas que impressionaram os espanhóis séculos atrás. Elas percorriam mais de 25.000 km entre quase todas as vilas do império, com incríveis túneis e pontes pênseis, transportando exércitos, mercadorias, tributos e uma rede de mensageiros muito semelhante aos correios atuais. A maior parte desses caminhos foi destruída no século XVI pelos espanhóis ou pelos próprios incas, para deter o avanço dos invasores. É sobre um dos poucos trechos remanescentes desse impressionante monumento que marcham agora Alceu e o pequeno exército de turistas que o acompanha.
A proximidade de Machu Picchu faz crescer em todos o misticismo. “Você fica pensando sobre o que levou os incas a construir tudo aquilo e tentando imaginar como era a vida naquela época”, diz Alceu. O acampamento nesse dia é montado à beira de um penhasco, próximo às ruínas de Phuyupatamarka, onde se pode dormir com mais tranqüilidade. A maioria das excursões, por questões de segurança, prefere descansar mais adiante, bem próximas de Machu Picchu. O impressionante número de estrelas convence Alceu, três brasileiras e um guia a passar a noite a céu aberto, protegidos apenas por sacos de dormir. O espetáculo, no entanto, tem seu preço: o frio de alguns graus negativos. “Vesti todas as roupas que tinha levado e, de vez em quando, precisava esfregar pés e mãos para me aquecer”, diz Alceu.
O grupo mal conseguia conter a ansiedade no quarto dia de caminhada. A última atração antes de chegar à cidade sagrada dos incas são as ruínas de Winaywayna, repletas de barracas de turistas. “À primeira vista, o que mais impressiona são o paredão de terraços e o sofisticado sistema hidráulico dos incas”, diz Alceu. Até hoje não se sabe a origem da água que alimenta algumas das fontes que jorram por lá. É como se a trilha inca estivesse preparando todos para a sua principal atração, que está logo adiante, após uma escadaria. Por orientação do guia, o grupo atravessa de olhos fechados a entrada do santuário – chamada de Porta do Sol –, tira uma foto e só então vê a cidade, por inteiro, à sua frente. Depois de quatros dias de expectativa, a primeira vista que se tem de Machu Picchu é grandiloqüente. Uma das mulheres da excursão, como é comum entre os turistas que passam por ali, começa a chorar.
Machu Picchu (que em quíchua quer dizer “velho pico”) é uma das poucas cidades incas que permanecem intactas até hoje. Mesmo assim, não existe ainda uma teoria que a explique definitivamente. Sabe-se que foi construída por volta do ano 1300 e permaneceu habitada até o final do século XVI. Apesar de os rumores a respeito de uma cidade perdida nos Andes persistirem nos séculos seguintes, o santuário só foi descoberto em 1911 – sim, há menos de um século – pelo explorador americano Hiram Bingham. O grande número de templos que existe no lugar leva a crer que Machu Picchu tinha alguma função religiosa. Das 135 ossadas encontradas ali, 109 eram femininas, o que estimulou a teoria de que se tratava de uma residência das Virgens do Sol, mulheres escolhidas desde crianças para servir religiosamente ao Império Inca. As acclahuasi – casas onde elas residiam – existiam em muitas das cidades peruanas, mas supõe-se que Machu Picchu era, de alguma forma, especial, algo como um harém do próprio imperador.
Por outro lado, as construções de diferentes estilos, os observatórios e as fazendas experimentais sugerem que a cidade era uma espécie de universidade, onde se pesquisava a astronomia, a engenharia e a agricultura. O fato de os espanhóis, mesmo reunindo muitas informações sobre os incas, nunca a terem descoberto, leva a outra hipótese: a maior parte dos incas desconhecia a existência da cidade, restrita apenas a uma elite. Há também quem acredite que Machu Picchu era uma cidade como outra qualquer, que se manteve distante dos espanhóis graças à sua posição privilegiada. Escondida no meio dos Andes, ela não pode ser vista nem mesmo do Rio Urubamba, que flui logo abaixo.
Mesmo conhecida no mundo inteiro e repleta de turistas, Machu Picchu ainda hoje guarda seu encanto. A acústica da praça central permite chamar a cidade inteira com um só grito. Uma vez por ano, por volta do solstício de inverno (23 de junho), os raios solares que atravessam a entrada da cidade incidem diretamente sobre um painel no Templo do Sol – um exemplo da sofisticada astronomia dos incas. Alceu sobe até Wayna Picchu (em quíchua, “jovem pico”), a montanha que aparece ao fundo em todos os cartões postais do santuário. O caminho é uma escada estreita e perigosa, que passa por ruínas de templos e postos de guarda, e leva a uma vista diferente do santuário. “Sem o Wayna Picchu ao fundo, Machu Picchu não parece ser a mesma.”
Fim da visita. A volta de ônibus pela rota tradicional, uma estrada que liga Machu Picchu a Cuzco, começa em um declive acentuado em ziguezague. Logo na primeira curva, um garoto peruano com trajes típicos acena para o ônibus. “Buenas tardes!”, grita. A condução segue em frente e, duas curvas depois – surpresa! –, lá está o mesmo garoto. “Goodbye!”, diz, arrancando risos de alguns turistas. Quando ele aparece pela terceira vez, na próxima curva, já conquistou a simpatia de todos. As saudações se repetem em diversas línguas até o fim da estrada sinuosa, quando ele entra no ônibus e recompensa o fôlego com as gorjetas dos turistas. A excursão segue então para Aguas Calientes, a estação mais próxima de Machu Picchu que, convenientemente, tem termas naturalmente aquecidas para aliviar o cansaço.
Mas a viagem de Alceu não acaba aqui. “A impressão que Machu Picchu deixa na gente é tão forte que decidi ficar mais tempo em terras peruanas”, diz. Embarcou rumo ao Lago Titicaca, onde passou um dia entre os uros, povo que vive em ilhas flutuantes feitas de palha. Enfrentou estradas bloqueadas por camponeses em conflito ao sair de ônibus do Peru para voltar à Bolívia. Alceu diz que ainda se sentia grogue quando seu avião passou pelas belas montanhas ao redor de La Paz, em direção a São Paulo. Mas o que o atordoava dessa vez era a certeza de que, por mais tempo que gastasse ali, jamais conheceria todos os segredos que os Andes têm a revelar.