As bactérias são nossas parceiras. Temos 100 trilhões delas trabalhando em nosso sistema digestivo, da boca ao intestino. Os fungos também são bastante úteis no processamento de alimentos — além de, em diversos casos, nos servir de comida. Estes dois tipos de micro-organismos se mostraram fundamentais para a existência de dezenas de alimentos muito importantes ou simplesmente deliciosos: iogurtes, vinho, picles, azeite, vinagre, salame, presunto. Sem falar na interminável lista de queijos — só a França alega produzir mais de 300 tipos, inclusive alguns “podres” demais para quem não foi criado à base de roquefort.
A ação dos micro-organismos é mais do que conhecida na produção tradicional de comida, mas só recentemente a vanguarda da gastronomia lhe dedicou a devida atenção. Hoje, o estudo do processo fermentativo é tendência entre chefs inovadores, que buscam formas de desenvolver sabores inéditos.
Tudo começou com cerveja, pão e vinho — trindade que disputa o título de alimento fermentado mais antigo conhecido pela humanidade.
Cerveja e pão são grãos fermentados: a diferença fundamental está na quantidade de água usada para prepará-los. A cerveja tem 6 mil anos de idade — possivelmente mais — e surgiu, ao que tudo indica, na Mesopotâmia. É resultado da fermentação de cevada. Já o pão surgiu no Egito, como a evolução de uma pasta de cereais conhecida desde 10 mil a.C., que teria sido atacada pela mesma levedura, acidentalmente — não se sabe quando o processo, relativamente comum em depósitos de alimentos, se tornou rotineiro e controlado. Os dois alimentos eram tão importantes que serviam de moeda: entre os egípcios, os trabalhadores das obras das pirâmides recebiam sua remuneração diária na forma de três pães e duas canecas de cerveja.
As evidências mais antigas de fabricação de vinho foram encontradas na região do Cáucaso, onde hoje se encontra a Geórgia, e datam de 8 mil anos atrás. Do ponto de vista microbiológico, a transformação é similar à do pão e à da cerveja. O que muda é a fonte de açúcar que alimenta o fermento. Saem de cena o trigo, a cevada e o centeio, entram as uvas da espécie Vitis vinifera.
A fermentação segue um roteiro mais ou menos fixo nos três casos, assim como no queijo brie ou no hákarl — iguaria islandesa feita de tubarão “maturado” por vários meses. A história começa assim: bactérias e fungos se apoderam de alimentos frescos para se alimentar, criando colônias que se multiplicam assexuadamente em velocidade espantosa. Essas criaturas coordenam uma série de reações químicas que liberam substâncias que alteram aroma, cor, textura e sabor da comida. Até aqui, o processo não difere em nada do apodrecimento puro e simples.
Só que as substâncias resultantes da fermentação — entre as mais comuns estão gás carbônico, etanol, ácido acético e ácido láctico — transformam o ambiente de forma peculiar, deixando-o inabitável para outros micro-organismos. Para a levedura, é uma estratégia de defesa contra concorrentes unicelulares. Para o homem, é um fenômeno que garante alguma segurança alimentar: não raro, os micróbios barrados pelo pH extremo ou pelo álcool são patogênicos. O que começou como apodrecimento se converte em técnica de preservação do alimento.
O fermento cria ambiente hostil a invasores patogênicos: isso preserva o alimento
Além de grãos e frutas, a fermentação é aplicada com sucesso em produtos de origem animal. É ela que transforma o leite em dezenas de alimentos diferentes. A bactéria Lactobacillus bulgaricus, por exemplo, faz a diferença entre o iogurte e o leite estragado. E uma série de fungos, em especial o Penicillium roqueforti e o Penicillium camemberti (nomeados em homenagem ao roquefort e ao camembert), trabalham na confecção dos queijos. Eles convertem a lactose do leite em ácido láctico, o que garante o nível certo de acidez. O resto do serviço é feito por enzimas — elaboradas com a ajuda de bactérias ou extraídas de estômagos bovinos — que coagulam o leite, separando a parte sólida e o soro.
São os fungos em rápida multiplicação que formam as veias azuis e verdes do roquefort e do gorgonzola. Eles também respondem pela textura de alguns embutidos de carne de porco.
A descoberta do processo fermentativo não foi exclusivo das civilizações antigas que deram origem à cultura ocidental. Ele aparece com força em culinárias muito antigas de outras partes do mundo. É o caso do phan pyut, batatas apodrecidas e temperadas com várias especiarias, típicas da Índia. Ou do maeng man chom, ovos de formigas fermentados e temperados com sal, pimenta e alho, da Tailândia. No Brasil, à época da chegada dos portugueses, a nação tupinambá já se embriagava com o cauim — tipo de cerveja ou vinho feito com milho, mandioca ou outros vegetais mastigados e cuspidos pelas mulheres da tribo no vaso de fermentação.
“A parceria com micro-organismos permitiu diversificar a dieta e, principalmente, armazenar alimentos por períodos mais longos”, afirma a especialista em produção industrial de alimentos Barb Stuckey, autora de Taste: Surprising Stories and Science About Why Food Tastes Good (“Sabor: Histórias Surpreendentes e a Ciência sobre por que a Comida é Gostosa”).
Quando você compra um saquinho ou um tablete de fermento biológico, está levando para casa uma colônia adormecida de criaturas conhecidas também como mofo ou bolor — o bom fungo Saccharomyces cerevisiae, nosso parceiro há milênios na fabricação de cerveja, pão e vinho. Para fazê-la acordar, basta um pouco de alimento (o açúcar presente na farinha, por exemplo) e água. Mas é claro que o padeiro do faraó não usava cubos de fermento Fleischmann: a existência das leveduras só foi descoberta no fim do século 18, quando também começou seu cultivo para abastecer a indústria cervejeira. Até hoje há padeiros, cervejeiros e vinhateiros que trabalham com fermentos selvagens — os responsáveis pelo gosto ácido do pão italiano, por exemplo —, presentes na matéria-prima ou no ambiente.
A revelação de que seres invisíveis poderiam ser isolados para construir sabores revolucionou a produção de alimentos. A indústria usa os micro-organismos em uma gama enorme de produtos. Fungos e bactérias aparecem ostensivamente em itens como as famosas bebidas com lactobacilos — que prometem fazer bem para a flora intestinal, mas estão longe de ser indispensáveis. Ou então fazem participações discretas onde pouco se espera sua presença: é o caso dos micróbios usados em refrigerantes para produzir ácidos que simulam sabores cítricos. Folhas de chá, grãos de café e de chocolate também são fermentados — ainda que por pouco tempo — para ganhar os sabores que conhecemos.
Usada largamente na produção tradicional de alimentos e na indústria, apenas recentemente a fermentação chamou a atenção da alta gastronomia. O trabalho coordenado de cozinheiros famosos e pesquisadores de renome está desenvolvendo, em laboratório, novos sabores a partir do controle do processo de apodrecimento. O caso mais exemplar é a parceria do chef coreano-americano David Chang com microbiologistas da Universidade Harvard.
Shoyu transcendental
Por enquanto, o Momofuku Kitchen Lab (batizado em referência à cadeia de restaurantes de Chang) acumulou mais fracassos que sucessos desde sua inauguração, em Nova York, no ano de 2010. Mas o espírito se mantém, incansável: um grupo de cozinheiros e pesquisadores explora microbactérias para criar molhos de soja e missô — pasta de grãos fermentados usada na culinária japonesa — revolucionários.
O laboratório Momofuku não é um espaço high-tech. Longe disso. No lugar de centrífugas e microscópios de alta definição, o que se vê são barris com molhos concentrados e em fermentação e panelas de pressão gigantescas — uma delas explodiu, cheia de feijões que cobriram o teto do lugar. (Para o registro: eles estavam sendo cozidos até o ponto de formar uma pasta, que receberia uma carga de bactérias com o objetivo de criar um chili con carne fermentado.)
Os resultados mais promissores estão na área dos missôs, feitos não à base de soja e arroz — como manda a tradição —, mas de lentilha, semente de girassol, batata-doce e grão-de-bico. O setor de shoyu anda passos mais lentos. Depois de 21 tentativas falhas, o chef já conseguiu criar um molho de soja com sabor de pizza.
Os pesquisadores de Harvard colaboraram com Chang estudando em detalhes a atuação dos micróbios em queijos. Mas eles têm sua própria linha de pesquisa, em um espaço próprio, um laboratório culinário que envolve de químicos a microbiólogos. O projeto dos professores conta ainda com palestras e oficinas com chefs do porte de Ferran Adrià — o catalão que ergueu o premiadíssimo restaurante El Bulli, onde praticou uma culinária de cientista maluco até 2011.
Experiências com micróbios incluem shoyu sabor pizza e purê de gafanhotos
David Chang e o time de universitários não estão sozinhos. No laboratório do restaurante Noma, de Copenhague, Dinamarca, o chef René Redzepl está usando bactérias para fermentar gafanhotos, por seis semanas, em um ambiente a 40 ºC, até transformá-los em purê. Na última década, o movimento de desenvolvimento da manteiga — agora tratada com fungos, como os queijos, para ganhar novos aromas — ganhou força e se difundiu pelo mundo.
A pesquisa com micro-organismos parte de um pressuposto que pode ajudar na hora de inventar na cozinha: para aproveitar ao máximo o potencial de fungos e bactérias, é necessário repensar procedimentos de segurança alimentar. Alguns deles podem ser excessivos.
Geladeira para quê?
Em 2011, o empresário americano Michael Ruhlman, autor do livro Elementos da Culinária de A a Z, causou polêmica ao descrever em seu blog a maneira como lida com o caldo de galinha caseiro — feito com carcaça do animal, cozida por várias horas em um caldeirão cheio d’água, à qual se acrescentam alho, cenoura e pimenta.
Ele deixa o líquido sobre o fogão uma semana, sem levá-lo à geladeira. Todos os dias, aquece um pouco por dez minutos para preparar sopas e molhos. Crítico das limitações à criatividade gastronômica impostas pelo zelo com a segurança alimentar, Ruhlman afirma: o tempo de reaquecimento é o suficiente para deixar o caldo totalmente seguro — e com um sabor mais interessante do que se ele fosse mantido refrigerado. Os micro-organismos que ele desenvolve, apenas para serem exterminados no fogo mais tarde, ajudam no desenvolvimento de novos sabores.
O também americano Peter Snyder, consultor de segurança da indústria de alimentos há quatro décadas, concorda com o blogueiro aparentemente irresponsável. “Manter o caldo em temperaturas superiores a 2 ºC é receita garantida para multiplicar as bactérias causadoras do botulismo: elas dobram de quantidade a cada 90 minutos em temperatura ambiente. Mas, ao aquecer o produto adequadamente, o cozinheiro inativa as bactérias perigosas e neutraliza os efeitos nocivos que ele mesmo causou.”
Snyder é uma das vozes que criticam o rigor das regulamentações dos órgãos americanos de segurança alimentar — como a obrigatoriedade, para cozinhas comerciais, de manter a comida na geladeira por pelo menos seis horas antes de reaquecê-la e servi-la novamente.
Ainda assim, ele ressalta que alguns cuidados na cozinha continuam sendo fundamentais: “Existem atitudes que podem, de fato, matar ou provocar doenças graves, como cozinhar com as mãos sujas por não as ter lavado depois de ir ao banheiro. Aquecer pouco a comida da geladeira também é perigoso, porque a temperatura baixa, inferior a 70 ºC, ou o pouco tempo no fogo podem não matar as bactérias.”
Mas, com um pouco de espírito aventureiro e as receitas certas (para proporções, procedimentos e assepsia), é possível colocar os micro-organismos para desenvolver alimentos fermentados em uma cozinha doméstica. Farinha e água, mantidos em um pote à temperatura ambiente por dez ou 12 dias, geram uma cultura de fermento para pães e pizzas. Repolho branco amassado com sal — e mantido em um pote selado por um mês — se transforma em chucrute. Uma série de legumes, incluindo cebola, batatinha, cenoura e pepino, podem ser mantidos em conservas. Para produzir iogurte caseiro, basta ferver leite, misturar com um potinho de iogurte natural e colocar para descansar em um ambiente morno.
“Os micro-organismos podem ser usados a nosso favor, desde que com os cuidados mínimos”, diz Barb Stuckey. “Se os respeitarmos e conhecermos, podemos enriquecer muito nossa experiência gastronômica diária.”
PENICILLIUM ROQUEFORTI
Um dos múltiplos fungos usados na fabricação de queijos mora nos veios azulados do roquefort, do gorgonzola, do stilton e de outras delícias emboloradas.
PENICILLIUM CAMEMBERTI
Este fungo está presente na casca que recobre queijos como o camembert e o brie — os chamados queijos de mofo branco, cremosos e com sabor intenso.
LACTOBACILLUS BULGARICUS
Uma das várias espécies de bactérias empregadas para fazer derivados de leite — e por isso denominadas lactobacilos —, age na fabricação do iogurte.
SACCHAROMYCES CEREVISIAE
É a principal levedura (fungo) usada em pães e vinhos. Nas cervejas, atua nas bebidas do tipo ale: as lagers são fermentadas com o Saccharomyces pastorianus.