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Não existe gene gay. Porque não é assim que os genes funcionam.

O arco-íris da sexualidade está enraizado no DNA, mas nada é tão simples: não há um único gene que ligue ou desligue quem somos.

Por Bruno Vaiano Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 12 abr 2023, 14h20 - Publicado em 20 set 2019, 17h37

Até que ponto o comportamento de alguém está nos genes? E até que ponto é adquirido? Esse é um dos quebra-cabeças mais complicados da ciência. E um estudo que saiu no periódico Science em 30 de agosto de 2019 fornece uma peça. Após analisar o material genético de 492 mil pessoas, uma equipe de cientistas da Europa e dos EUA derrubou a ideia de que existiria um “gene gay” – muito disseminada no imaginário popular. Na verdade, as linhas de código do nosso genoma estão salpicadas de trechinhos que, sozinhos, determinam uma parcela minúscula do comportamento sexual de um indivíduo – mas somados fazem uma grande diferença.

A primeira coisa a esclarecer é que os pesquisadores não coletaram meio milhão de genomas do zero. Eles já estavam disponíveis de antemão em duas fontes: a empresa privada 23andMe, que oferece testes de ancestralidade, e o UK BioBank, um banco público com dados sobre a saúde de meio milhão de cidadãos britânicos – incluindo seus DNAs. Por um lado, isso permitiu analisar uma amostra enorme. Por outro, não era uma amostra afinada com as necessidades específicas do estudo.

Outro esclarecimento é que o estudo, na prática, não buscou genes, e sim polimorfismos de nucleotídeo único (conhecidos pela sigla em inglês SNP). Para entender o que são SNPs, precisamos de uma revisão rápida.

Um gene é um pedacinho de molécula de DNA. A molécula é organizada como um colar de miçangas. Essas miçangas são chamadas bases nitrogenadas e vêm em quatro tipos: A, T, C e G. Essa sequência de letrinhas é como um código Morse, e guarda as instruções para produzir uma proteína. Ou seja: seu genoma é um enorme manual de química, em que cada gene explica como montar uma das proteínas que constituem seu corpo.

Os SNPs são simplesmente essas letrinhas que mudam de pessoa para pessoa. Por exemplo: os pesquisadores descobriram que a presença de uma letra G no lugar de T em uma certa posição do cromossomo 11 aumenta em 0,4% a chance de um homem fazer sexo com outros homens. Outras quatro mudanças de letrinha similares, localizadas nos cromossomos 4, 7, 12 e 15, têm efeitos parecidos. Algumas valem só para homens; outras, só para mulheres; outras, para ambos os sexos. E vale reforçar: o efeito de cada SNP isolado é minúsculo.

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É possível especular até certo ponto qual é o resultado dessas mudanças de letrinha. Por exemplo: o já mencionado SNP do cromossomo 11 fica próximo ao gene OR5A1 – que produz uma proteína associada ao olfato. Isso poderia mudar a sensibilidade a alguns cheiros. Mas essa é uma conexão vaga, claro. É que o objetivo do estudo era encontrar correlações entre SNPs e comportamento – e não explicar o porquê dessas correlações.

Esse estudo não é um ponto final no assunto. Na verdade, é só o começo. Estudos futuros poderão analisar com mais profundidade o DNA de um número maior de pessoas – e encontrar, assim, muitos outros SNPs. “Esses 500 mil indivíduos foram suficientes para entender só uma pontinha do iceberg”, diz Diego Rovaris, especialista em genética do comportamento humano.

Um beijo entre dois homens precisa ser visto por crianças com a mesma naturalidade que um beijo entre o príncipe e a princesa.

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Vamos dar uma ideia do quão pequena é a pontinha. Os cinco SNPs, combinados, explicam menos de 1% do comportamento sexual. Mas sabemos que esses SNPs são só os que foram significativos com a amostra de 492 mil pessoas (que, acredite, ainda é pequena). Então dá para fazer um cálculo, chamado herdabilidade molecular, que dá uma ideia de qual seria essa porcentagem se a gente tivesse uma amostra de milhões de pessoas. E esse cálculo prevê que os SNPs explicariam algo entre 8% e 25% da variação no comportamento sexual.

Por fim, há o cálculo da herdabilidade total. Esse, além de considerar SNPs – ou seja, só mudanças de letrinha de DNA –, considera também as interações entre os genes, fatores herdáveis externos aos genes etc. A herdabilidade total do comportamento sexual foi calculada em 35%.

Conclusão? A determinação do comportamento sexual é algo cheio de sutilezas. “O efeito de genes nos corpos é como o efeito de fumaça de cigarro nos pulmões”, explica Richard Dawkins no livro O Capelão do Diabo. “Se você fuma muito, aumenta as chances de ter câncer. Mas não é todo mundo que fuma que terá câncer. E há pessoas que não fumam e terão câncer. Vivemos em um mundo estatístico.”

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Além dos dados em si, há a maneira como os autores do estudo interpretaram esses dados. Por exemplo: eles afirmam que seus achados não corroboram a ideia da escala Kinsey – que prevê um degradê de comportamentos possíveis entre alguém que é puramente heterossexual e puramente homossexual, estando os bissexuais no meio. Mas outros geneticistas, ao fazer uma leitura própria dos resultados, discordam, e enxergam a escala ali (até porque, pessoas bissexuais obviamente existem). Isso é uma demonstração de como o conhecimento científico é construído: com diálogo e debate.

É bom esclarecer que, na hora de garantir direitos a uma pessoa homossexual, não importa qual parcela de seu comportamento é explicada pelos genes e qual não é. As preferências de cada um, no fim das contas, são algo tão profundo e característico quanto a cor da pele ou dos olhos. Não existe cor de pele certa ou errada; do mesmo jeito, não existe sexualidade certa ou errada. Um beijo entre dois homens precisa ser visto por crianças com a mesma naturalidade que um beijo entre o príncipe e a princesa.

Ao longo da história, os homossexuais foram ameaçados com todo tipo de pretexto. Hoje, os ultraconservadores parecem considerar a homossexualidade uma escolha, que seria induzida pela doutrinação “marxista” nas escolas ou por HQs de super-herói – a estupidez da cura gay está aí para provar.

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Nessa situação, é importante dizer que o comportamento é em alguma medida hereditário, e que não existe cura para algo que não é doença. Na década de 1930, porém, o argumento de que a homossexualidade era hereditária foi justamente o utilizado por eugenistas e nazistas para castrar e matar essas pessoas – e tirar seus genes de circulação. Ou seja: a origem biológica da homossexualidade é irrelevante para o debate ético e moral. Infelizmente, os homofóbicos vão continuar cuidando do sexo alheio com o mesmo ímpeto de sempre.

Agradecemos os geneticistas Nelson Fagundes e Diego Rovaris por explicar o método utilizado no estudo e analisar suas conclusões minuciosamente. 

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