Não foi só em Chernobyl: a URSS perseguiu milhares de cientistas
Conheça a história de Dmitri Belayev – um dos 3 mil biólogos acusados por Stálin de "acreditar" em genética e seleção natural.
Chernobyl, que retrata com precisão o desastre nuclear de 1986, já é uma das séries mais bem-avaliadas da história do banco de dados IMDB – atualmente, com 9,5, empata com Breaking Bad e Band of Brothers. A última fala da série é um monólogo do físico Vasily Legasov, perseguido pela KGB após revelar uma falha no projeto dos reatores nucleares RBMK às autoridades.
“Ser um cientista é ser inocente. Nós estamos tão focados em nossa busca pela verdade que não percebemos o quanto são poucas as pessoas que realmente querem que nós a encontremos. Mas a verdade está sempre lá, não importa se nós a vemos ou não, se nós escolhemos vê-la ou não. A verdade não se importa com nossas necessidades e desejos, não se importa com nossos governos, ideologias ou religiões. Ela vai esperar. E este é o presente Chernobyl. Em situações em que eu antes temia o preço da verdade, agora eu só pergunto: qual é o preço das mentiras?”
Legasov foi só um de muitos cientistas perseguidos pelo totalitarismo soviético. O caso mais famoso talvez seja o de um biólogo.
Em 1948, Dmitri Belayev foi declarado inimigo do Estado e demitido de um laboratório estatal em Moscou. Ele e seu irmão mais velho eram acusados de uma infração severa no regime stalinista: estudar genética e a teoria da evolução de Darwin. O irmão morreu em um gulag. Dmitri, por sua vez, escapou e se exilou na Sibéria. Outros 3 mil biólogos eram culpados da mesma infração, e tiveram destinos parecidos.
O motivo da perseguição era um lacaio de Stálin, o camponês Trofim Lysenko. Lysenko nasceu um camponês pobre. Ganhou projeção como líder popular durante os surtos de fome na Ucrânia na década de 1930. Não tinha formação acadêmica, mas elaborou uma hipótese: simplificadamente, a de que bastava expor às plantações de trigo ao frio que a planta se tornaria resistente às temperaturas baixas.
A hipótese era lamarckista; evidentemente errada. Plantas não aprendem a lidar com o frio só porque foram expostas a ele. Mas Stálin gostou dessa história: um homem do povo, com pinta de sindicalista, que era bom no palanque e, ainda por cima, menosprezava a teoria de Darwin – que estava sendo usada pelos eugenistas alemães para justificar os campos de concentração. Assim, o ditador deu a Lysenko um cargo de diretoria na Academia de Ciências, e ao final da 2º Guerra ele desfrutava de uma autonomia razoável para exonerar (e fuzilar) quem bem entendesse.
Belayev sabia que Lysenko era um embuste, mas sabia também que estava com a corda no pescoço, de maneira que continuou seus estudos de hereditariedade com discrição. Em 1958, cinco após a morte de Stálin, Lysenko perdia influência. Belayev, já gozando de certa liberdade, pôde iniciar um experimento abertamente inspirado por Darwin.
Ele selecionou, dentre 130 filhotes de uma ninhada de raposas selvagens, os mais dóceis. Então, cruzou esses espécimes e repetiu o processo. A ideia era domesticar as raposas selecionando artificialmente as mais meigas. Simular, em poucas gerações, o amansamento que transformou lobos ferozes em cães submissos a seus donos, ainda na pré-história.
Deu certo. Duas décadas, depois as raposas já comiam na mão dos criadores; exigiam cosquinha na barriga e abanavam o rabo. Como consequência dos novos traços comportamentais, mudaram também traços físicos: em vez de exibir a pelagem ruiva característica, os exemplares mais dóceis nasciam com manchas pretas e brancas, como cães da raça Border Collie. As orelhas, antes eretas, em alerta, passaram a cair sobre os olhos.
Essa é uma revelação importante. Demonstra que nem todo traço tem, necessariamente, uma utilidade de sobrevivência: ele pode predominar entre os membros de uma população simplesmente porque está associado a outros genes que determinam traços mais importantes do ponto de vista seletivo. Até hoje, esse experimento de seleção artificial é um dos que melhor exemplificam a lógica darwinista. E a repressão de Lysenko, um dos casos mais vergonhosos da ciência do século 21.