Não somos máquinas de sobrevivência
A seleção natural é uma faca de dois gumes. Os mesmos genes que nos ajudam a gerar descendentes também podem complicar nosso envelhecimento.

Um dos maiores equívocos de quem tenta entender a evolução dos seres vivos é achar que humanos, sabiás ou cogumelos foram moldados pela seleção natural para ser máquinas de sobrevivência. Sobreviver não passa de um meio, que só existe para servir ao verdadeiro fim: a reprodução. E é por isso que, em última instância, o envelhecimento afeta tantas espécies por aí.
Estranhou o raciocínio? É um tanto contraintuitivo, de fato, mas ideias desse tipo, desenvolvidas por gigantes da biologia como o ganhador do Nobel Sir Peter Medawar (1915-1987) e o americano George C. Williams (1926-2010), hoje são amplamente aceitas como explicação para a mortalidade de seres vivos como nós.
Nenhum organismo dispõe de recursos ilimitados. Todos estão sujeitos a ficar sem comida, a enfrentar mudanças catastróficas no ambiente ou a encarar predadores. E é virtualmente impossível construir um corpo invulnerável a tudo isso. Se você não morrer de “morte morrida”, vai acabar morrendo de “morte matada”, como diziam os cangaceiros.
Há um jeito de contornar isso, porém: transmitir o seu material genético para um ou muitos descendentes. Um bom investimento na reprodução funciona como um bilhete para a imortalidade por meio da prole.
Beleza, mas acontece que todo gene – ou seja, todas as regiões funcionais do DNA – tem seus prós e contras. Pode ter efeitos que ajudam o organismo a se reproduzir com mais eficiência no curto prazo, mas que, mais tarde na vida, tornam-se arriscados ou mesmo deletérios.
Pense na proliferação celular, por exemplo: a capacidade que as células têm de criar cópias de si mesmas. Isso é ótimo na hora de produzir espermatozoides. Mas a proliferação celular exagerada também é um dos fatores por trás do câncer. E, às vezes, os mesmos genes podem estar envolvidos em ambas as coisas.
E é aqui que as duas pontas dessa história finalmente se amarram. Desde que, na juventude do organismo, determinado gene favoreça a reprodução de forma significativa, não importa se ele tiver algum efeito negativo na maturidade ou na velhice.
Afinal, quanto mais o tempo passa, maior a chance de aquele indivíduo acabar morrendo, por uma série de outros fatores. Os biólogos costumam dizer que a seleção natural deixa de “enxergar” os efeitos daquele gene depois que a fase reprodutiva aconteceu. E, com isso, teriam surgido os aspectos deletérios do envelhecimento.
Reinaldo José Lopes é jornalista, com mestrado e doutorado pela USP. É especializado em ciência – tema que aborda há mais de 20 anos em publicações como Folha de S.Paulo, G1 e Super.