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Niels Bohr: O Sherlock da física atômica

As pistas que ele descobriu no interior do átomo abriram caminho para a avalanche tecnológica que moldou a vida moderna. Também influenciaram profundamente a visão de mundo contemporânea, contra a opinião do próprio Einstein.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h49 - Publicado em 31 jul 1992, 22h00

Flávio Dieguez e José Tadeu Arantes

Em novembro deste ano se comemoram três décadas da morte do cientista dinamarquês Niels Bohr, Prêmio Nobel de 1922, e considerado, depois de Einstein, o maior físico do século. Em 1913, estabeleceu o marco inicial da Física do átomo, ensinando como calcular as órbitas dos elétrons no seu interior. Nos anos 20, inspirou e liderou a geração de físicos de várias nacionalidades cujo esforço levou à Mecânica Quântica — que revolucionou os conceitos da ciência clássica e, ao lado da relatividade einsteiniana, fundou a física deste século.Às vésperas da Segunda Guerra Mundial, Bohr foi além do átomo e mostrou como calcular a energia liberada pela quebra, ou fissão, do próprio núcleo atômico — o primeiro passo para a construção dos artefatos nucleares. Mais tarde, depois de participar dois anos do projeto de produção da bomba, Bohr se conscientizou da terrível perspectiva que ela abria para a humanidade. Já em 1944, tentou, inutilmente, persuadir o primeiro-ministro inglês Winston Churchill e o presidente americano Franklyn Delano Roosevelt da necessidade de negociações internacionais, incluindo a União Soviética, para tratar da questão.

Em plena década de 50, contaminada pela “guerra fria” entre Estados Unidos e União Soviética, empenhou-se na luta pelo uso pacifico da energia atômica (foi o primeiro a receber o prêmio Átomos para a Paz, em 1957). Em carta pública à ONU, clamou pela construção de um “mundo aberto”, convencido de que o livre trânsito de pessoas e idéias era indispensável ao controle da energia nuclear. Bohr foi uma das mais festejadas celebridades da história da ciência. A mansão com que foi premiado em 1931 pela Real Academia Dinamarquesa de Ciências e Letras tornou-se local de peregrinação obrigatório para grandes cientistas, artistas e chefes de Estado em visita à Dinamarca. Símbolo de sua autoridade, um divertido cartum publicado na imprensa dinamarquesa mostra-o já velhinho, quase achatado pelo peso das medalhas, comendas, diplomas e demais honrarias que recebeu ao longo da vida. Se Einstein desempenhou na ciência um papel semelhante ao de Picasso nas artes, Bohr pode ser comparado a outro grande inovador da pintura, Wassily Kandinsky. A analogia se justifica. Embora revolucionário, Picasso é herdeiro de uma longa tradição de arte figurativa. Suas imagens, extraordinariamente originais, ainda estão associadas a objetos que nos são familiares: homens, cachimbos, guitarras, frutas. Já Kandinsky, ao recriar a pintura abstrata, rompe totalmente com essa tradição.

Os signos que cobrem suas telas não se referem ao mundo que julgamos conhecer a partir do senso comum, mas a um outro nível de realidade. Com a teoria da relatividade, Einstein revolucionou conceitos fundamentais da Física, mas até o final de sua vida ele se manteve fiel a um pressuposto da visão de mundo clássica: o de que as leis da natureza determinam vigorosamente os fenômenos, e que o cientista pode conhecer tais leis com total objetividade. Foi exatamente isso que Bohr abandonou na chamada interpretação de Copenhague da Mecânica Quântica.

Nela, se postula que há uma incerteza impossível de evitar quando se medem grandezas físicas como a velocidade ou a energia. Isso, como também e a interferência do observador no fenômeno que pretende observar, são inerentes ao processo de conhecimento. Não se trata de uma deficiência científica, mas de uma limitação natural da capacidade de conhecer. No entanto, toda a tradição racionalista apoia-se na distinção rígida entre sujeito e objeto. Isto é, entre aquele que pensa e aquilo que é pensado. A física clássica tratava essa distinção como óbvia: ninguém, em sã consciência, confundiria a maçã que cai de uma árvore com o ilustre cérebro do inglês Isaac Newton.

Mas quando se chega à fronteira do conhecimento, como ocorreu na formulação da teoria atômica, essa distinção já não parece tão clara, dizem os cientistas. Bohr teve a percepção disso antes mesmo, talvez, de ouvir falar de átomos. Foi através do livro As aventuras de um estudante dinamarquês. do escritor Poul Martin Moler, que leu na juventude e do qual jamais se separou. Nele, há um engraçado personagem dado a divagações filosóficas. Metido a pensar sobre o fato de estar pensando, se dizia dividido numa série infinita de eus. “Não sei em qual parar. Torno-me confuso como se estivesse encarando um abismo sem fundo e o pensamento acaba em horrível dor de cabeça.”É possível que Bohr se visse nesse personagem — ou, pelo menos, essa era a crença do físico Léon Rosenfeld, colaborador íntimo e biógrafo do cientista. A aguda sensação de que a realidade estava sempre além de sua capacidade de descrevê-la, fazia com que escrever um texto científico fosse para ele verdadeira tortura, apesar de ser conferencista brilhante, quando falava de improviso.Não se deve imaginar, porém, que Bohr fosse um gênio atormentado. Há poucos exemplos na história da ciência de personalidade tão equilibrada. O astrônomo alemão Johannes Kepler, por exemplo, é visto por muitos como um hipocondríaco, toldo pelo complexo de inferioridade e problemas de dinheiro.

O italiano Galileu Galilei recebe epítetos de polemista arrogante, vaidoso e perseguido por suas idéias. Newton teria sido celibatário ressentido e vingativo, e Einstein uma criança mal ajustada, que mais tarde enfrentou complicada crise conjugal.Nada parecido se ouve de Niels Henrik David Bohr. Nascido em Copenhague, Dinamarca, em 7 de outubro de 1885, ele teve uma infância segura e feliz, em ambiente familiar caloroso, culto e muito bem respaldado economicamente. O pai, Christian Bohr, professor de Fisiologia da Universidade de Copenhague, era cientista de renome internacional. A mãe, Ellen Adler Bohr, pertencia a uma das mais ricas e ilustres famílias judias da Dinamarca. O irmão mais novo, Harald, antes de se tornar matemático, destacou-se nacionalmente como jogador de futebol.Ainda estudante na Universidade de Copenhague, Bohr recebeu a medalha de ouro da Real Academia Dinamarquesa de Ciências e Letras. Aos 26 anos, já era doutor, com uma tese sobre o movimento dos elétrons nos metais, trabalho em que começa a apontar a inadequação da Física clássica para lidar com fenômenos em escala atômica. Sua formação prosseguiria em grande estilo, com uma bolsa da Fundação Carlsberg para estudar em Cambridge, Inglaterra.

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Aí esperava trabalhar com nada menos que Joseph Thomson, descobridor do elétron, em 1896, e Prêmio Nobel de Física de 1906. Em 1912, Bohr se muda para Manchester e se reúne ao grupo de físicos que, liderados por Ernest Rutherford, avançava às apalpadelas no interior do átomo.

Rutherford, natural da Nova Zelândia, imaginara o átomo como um minúsculo sistema solar, no qual o núcleo atômico fazia o papel do Sol e os elétrons, o papel dos planetas. Esse modelo contradizia as leis do eletromagnetismo clássico, e a maioria dos físicos da época, em vez de repensar a teoria vigente, preferia simplesmente, varrer o incômodo modelo de Rutherford para baixo do tapete. O jovem Bohr, porém, aceitou o formidável desafio e aos poucos ganhou confiança, como se deduz das cartas diariamente escritas à noiva, Margrethe Norlund, na Dinamarca.Em 26 de maio de 1912, por exemplo, ele conta que assistira a uma apresentação da peça Otelo, do inglês William Shakespeare, e ficara em tal estado de excitação mental que não conseguia dormir. Assim, escreveu a Margrethe: “Em meus pensamentos errantes e sonhos sem nexo, sinto o tempo todo que há algo crescendo em minha mente”. No dia 28, Bohr afirma: “Creio que talvez tenha resolvido uma coisinha. O que posso fazer com isso e o que pode decorrer daí não sei em absoluto”.Junho, julho e agosto, num ritmo frenético, Bohr trabalha até concluir que não é o modelo de Rutherford que está errado. São as leis da física clássica que não se aplicam aos fenômenos atômicos. Depois da maratona intelectual, Bohr volta à Dinamarca e se casa com Margrethe, sua companheira de toda a vida, amiga e confidente, mãe de seus cinco filhos homens: Christian, Hans, Erik, Aage e Ernest. Christian, jovem de talento científico e artístico, morreria afogado em 1934, quando uma tempestade o arrancou do barco Chita. Foi a maior tragédia vivida por Bohr, que precisou ser agarrado por amigos para não se atirar às ondas enfurecidas atrás do filho.

Aage seguiria a carreira do pai, e foi também agraciado com o Prêmio Nobel, em 1975. O físico Henrique Fleming, professor titular do Departamento de Física Matemática da Universidade de São Paulo, divide a trajetória de Bohr em duas etapas nitidamente demarcadas. “Na primeira, caracterizada pela criação do modelo atômico, ele trabalhou de maneira convencional.” Ou seja: partiu de dados experimentais, elaborou uma teoria capaz de explicá-los e enfim procurou comprová-la.”Na segunda etapa, dominada pela construção da mecânica quântica, seu papel foi principalmente o de líder, de catalisador do trabalho coletivo de uma geração mais jovem de cientistas.” A descrição de Fleming revela o trabalho de um mestre dedicado: Bohr submetia as idéias dos jovens físicos a um questionamnento severo e, para ajudá-los, traduzia palavras acessíveis a árdua matemática da nova Mecânica. “Foi um epistemologista, um filósofo da ciência do mais alto nível.” O Nobel, em 1922, ajudou a consolidar o papel de líder que viria a ter.Em torno dele se aglutinaram físicos do porte de Werner Heisenberg (alemão), Wolfgang Pauli (austríaco), Oskar Klein (sueco), Hendrik Kramers (norueguês), George Gamow e Lev Landau (russos), George de Hevesy (húngaro) e John Slater (americano). Com Heisenberg, principal responsável pela matemática da Mecânica quântica, a interação foi especialmente rica e devemos a ele saborosos relatos da intimidade de Bohr — como o que envolve a figura do físico austríaco Erwin Schrödinger em tragicômico episódio. Foi ele o autor da equação que, finalmente, permitia descrever o movimento quântico dos elétrons — que ora se comportavam como ondas, ora como partículas.O problema é que Schrödinger não pensava como Bohr e seus colaboradores.

Ele imaginava que as equações da Física deveriam determinar a órbita real de um elétron — e não uma simples região onde era maior a chance de o elétron estar localizado. Ao saber da divergência, Bohr convidou Schrodinger à capital da Dinamarca e as discussões começaram já na estação de trem, prosseguindo por vários dias. Quando Schrodinger adoeceu e teve de ficar de repouso, o debate continuou à cabeceira da cama. Só terminou com um ataque de nervos do pobre convidado. “Se tivermos que aceitar tais idéias, então lamento jamais ter tido qualquer coisa a ver com a teoria atômica.”Disputas à parte, a interpretação probabilística foi rapidamente aceita pela imensa maioria dos cientistas. Nessa época, uma nuvem negra obscureceu a nova fase da vida de Bohr: a ascensão do nazismo na Alemanha. Ele passou a trabalhar ativamente na ajuda aos cientistas de origem judia, perseguidos pelas leis racistas de Hitler. Em 1943, porém, sob ameaça de prisão imediata, Bohr, Margrethe e outros membros da família tiveram que fugir para a Suécia durante a noite, em barco providenciado pelo movimento de resistência dinamarquês e pilotado pelo próprio cientista, que, dias depois, era levado para a Inglaterra, num vôo conturbado que quase lhe custou a vida.A biografia de Niels Bohr termina oficialmente na manhã de 18 de novembro de 1962, quando um ataque cardíaco lhe tirou a vida, aos 77 anos. Mas talvez se deva encerrar essa história décadas antes, numa tarde ensolarada, quando a interpretação da mecânica quântica chegara à completa maturação. Num passeio de barco com amigos, Bohr fala das dificuldades da linguagem e de como era gratificante incorporar essa limitação à teoria atômica, por meio da matemática. Nesse momento, um de seus velhos conhecidos o interrompe: “Niels, não há nada de novo nisso. Você nos dizia exatamente a mesma coisa quando éramos jovens”

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(SUPER número 5, ano 6)

Cautelosa conquista do átomo

Para Joseph Thomson o átomo era construído mais ou menos como um pudim de passas: uma massa compacta de carga elétrica positiva, salpicada de “caroços” de carga negativa, os elétrons. Ernest Rutherford mostrou, porém, que os átomos não são maciços: se fosse assim, os átomos de uma folha metálica bloqueariam partículas emitidas por elementos radioativos, como o rádio ou o urânio. Como a maior parte das partículas atravessa o metal, Rutherford concluiu que a carga positiva e quase toda a massa estariam concentradas num núcleo central (como o Sol no sistema solar). O núcleo seria responsável pelo rebatimento das poucas partículas que, por acaso, corriam na sua direção. A sua volta, num espaço vazio comparativamente grande, girariam os pequenos elétrons, entre os quais as partículas podiam passar. Esse modelo estava de acordo com a experiência, mas contrariava uma regra clássica: cargas que giram emitem radiação, ou seja, perdem energia e não têm como contrabalançar a atracão do núcleo.

Despencam sobre ele em fração de segundo, levando à conclusão de que os átomos não podem existir. Coube a Bohr consertar esse evidente engano ao juntar o deficiente modelo de Rutherford com a descoberta dos chamados quanta de energia. Em primeiro lugar, ele reconheceu que o elétron não pode ter qualquer quantidade de energia, que só está disponível na natureza em pacotes de tamanho definido — os quanta. Se uma órbita exige dois quanta e meio de energia, ela não será ocupada. Assim se entende por que os elétrons ocupam certas órbitas e não outras, perfeitamente legitimas à primeira vista. Foi um enorme sucesso — diante da imensa dificuldade de analisar os átomos, entidades submicroscópicas e numerosíssimas. O modelo quântico de Bohr esclarecia em parte o problema da perda de energia ao postular que, quando o elétron está numa órbita permitida, ele não emite radiação. Apenas se receber um quantum do meio exterior, poderá saltar para uma órbita mais afastada; depois, ao retornar, ele devolve ao meio exterior o quantum que havia recebido na forma de luz visível e outros tipos de energia eletromagnética, como microondas ou raios X. A análise dessa radiação revelava evidentes saltos descontínuos, ou quantizados. Assim, inaugurou-se a utilíssima física atômica dos dias de hoje. Ela valeu a Bohr carinhosa admiração de grandes cientistas, como o russo George Gamow, que ilustrava feitos de Bohr desenhando-o como Mickey Mouse. Seus estranhos conceitos ainda hoje perturbam os físicos, como revela uma piada do teórico Daniel Greenberger, em entrevista recente à publicação americana Scientific American: “Einstein dizia que, se a teoria quântica está certa, então o mundo é louco. Einstein estava certo. O mundo é louco”.

Mundo de dupla personalidade

Até o final do século passado, se imaginava a luz mais ou menos como um fluido: algo que se pode dividir em pedaços cada vez menores, sem limite. Na escala do átomo, porém, percebe-se que não é bem assim: um raio de energia luminosa reparte-se em “grãos” muitíssimo pequenos, mas que não podem ser subdivididos além de certo ponto. São os quanta (plural latino de quantum), nome que receberam do primeiro físico a calcular seu valor, o alemão Max Planck, em 1900. Coube a Einstein, logo em seguida, deduzir que a energia, como qualquer outra forma de matéria é composta por unidades indivisíveis — um tipo de átomo. Mas, em certas circunstâncias, a energia ainda se comporta à moda fluido: ela se propaga como ondas no mar. O detalhe é que não há mar; apenas energia no vácuo. Em 1924, o príncipe e físico francês Louis de Broglie mostrou que a mesma dualidade era encontrada nos tradicionais corpos da Física, como os elétrons: eles também agiam como inexplicáveis ondas sem mar.

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A partir daí, surgiria a teoria quântica completa, graças a físicos como os alemães Werner Heisenberg e Max Born, o austríaco Wolfgang Pauli, o inglês Paul Dirac e outros. Uma das colunas de sustentação da nova teoria foi o chamado princípio da indeterminação, de Heisenberg, que introduziu um novo meio de calcular valores tradicionais, como posição e velocidade. Ele revelou que tais valores não podiam ser obtidos, ao mesmo tempo, com toda precisão: quando se mede a posição quase exata de uma partícula-onda, o valor de sua velocidade se torna incerto, no sentido de que muitos valores são igualmente possíveis. Por isso, não se podem entender as órbitas dos elétrons como rotas bem definidas. Em vez disso, as equações determinam regiões em que é maior ou menor a probalidade de se encontrar um elétron. Bohr resumiu as novas regras em seu princípio de complementaridade: corpúsculos e ondas são como duas faces dos objetos atérmicos. Se quisermos conhecê-los, devemos examinar as duas faces. Mas é impossível olhá-las ao mesmo tempo.

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